Veio a público, recentemente, a notícia sobre o indeferimento da concessão do título de doutor honoris causa a Nei Lopes pela Congregação da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). O pedido havia sido apresentado por um ex-aluno da Nacional, o advogado Eloá dos Santos Cruz, e foi rejeitado pelo colegiado que acolheu o parecer da professora Ana Lucia Sabadell, frustrando o requerimento que ainda deveria ser objeto de análise em outras etapas.
Pensamos ser esta uma boa oportunidade para compartilhar algumas reflexões sobre a necessidade de atualização do ensino jurídico, com vistas a transformar em ações concretas o discurso antirracista e igualitário. Registramos que nossas luzes não se voltam para intencionalidades individualizadas que voluntariamente ou não produzem resultados indesejados. Algumas reações após o indeferimento sinalizaram pontos importantes nesse sentido. Porém, consideramos necessário retomá-los porque a construção de um sistema jurídico inclusivo é um permanente devir.
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Como ex-alunas da instituição e filhas do requerente, nos percebemos como observadoras privilegiadas, lugar este que, por evidente, não nos atribui o monopólio sobre o tema. O afeto que nos relaciona à questão tem, para além da dimensão tradicional, a perspectiva de Spinoza daquilo que nos movimenta e mexe profundamente com nossas almas.
Apesar de há muito tempo alguns setores reconhecerem a necessidade da interdisciplinaridade para uma boa formação profissional, o Direito tem sido resistente em incorporar seriamente contribuições de outras áreas do conhecimento na formação de seus profissionais. O resultado é perceptível a qualquer um que tenha olhos de ver: um sistema de justiça que não trata com igual dignidade e respeito pessoas negras e indígenas; apagamento dos saberes construídos fora dos eixos europeu e norteamericano ou em formatos que rompam com a lógica da modernidade. Como bem escreveu Audre Lorde: “Os patriarcas brancos nos disseram: ‘Penso, logo existo’. A mãe negra dentro de cada uma de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: ‘Sinto, logo posso ser livre’. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a implementação da liberdade.”.
A negativa da FND ao pedido de reconhecimento honoris causa a Nei Lopes com base no argumento de que suas produções não são relevantes no campo do Direito causa perplexidade diante de um programa de pós-graduação que inclusive tem linha específica de “Direito e Arte”.
Se essa linha de argumentação em si já se mostra frágil, o caso de Nei Lopes, no entanto, carrega conotações específicas. Isso porque é notório o fato de que historicamente os feitos de pessoas negras foram confinados a espaços restritos, qual seja o campo dos esportes e das artes, uma lógica que afirma uma hierarquia de saberes e reconhece como “legítima” apenas a genialidade atribuída a determinadas atividades.
Obviamente essas definições não dão conta da experiência humana, da presença negra no continente americano ou da grandeza de suas potências. A definição do que é “importante” nesses termos está mergulhada em uma racionalidade excludente por natureza. Não fosse a coragem daqueles que ousam romper com essa lógica, a existência de muitos seguiria inviabilizada.
O título de doutor honoris causa, pela definição prevista no regulamento da UFRJ, é reconhecimento a “personalidades nacionais e estrangeiras de alta expressão”, que deve contar, na primeira etapa, com parecer favorável e minuciosamente justificado aprovado pela Congregação. Se é certa a presunção de que a avaliação sobre a pertinência de uma indicação é melhor conduzida por aqueles que fazem parte do campo de atuação do indicado, portanto mais aptos a analisarem os argumentos em defesa da concessão do título, isso não implica em que haja qualquer exigência de produção ou atuação específica de um ponto de vista de divisão disciplinar estrita para que tal consideração seja legítima e bem fundamentada. Afinal, as trajetórias de “alta expressão”, como regra, extrapolam as formalidades das divisões disciplinares, espraiando-se em várias frentes. Seus impactos são imensuráveis.
Mais do que isso, a percepção de que a obra de Nei Lopes não impacta – ou tem o potencial de impactar – diretamente a reflexão jurídica faz apenas ressaltar a visão estreita que ainda assola o campo do Direito e faz parecer que é concebível alguma prática jurídica descolada do mundo em que esta é exercida. É de conhecimento geral o quanto as articulações entre distintas áreas esteve no cerne de teorias jurídicas incontornáveis. Em específico, podemos lembrar do encontro entre as análises de raça e gênero para pensar o impacto desproporcional da norma sobre sujeitos concretos, apenas para citar brevemente. Afinal de contas, olhar e compreender a realidade que nos cerca é fundamental para a prática jurídica e, como escreveu Silvio Almeida: “grandes mestres no direito também são grandes mestres na observação da vida e da sociedade”.
Curiosamente, Nei Lopes formou-se por esta mesma instituição, a Nacional de Direito, em um tempo em que os diplomas afirmavam não o atual “bacharelado em Direito”, mas sim o “bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais”. Título esse que parecia expressar com mais objetividade essa incontornável correlação entre os campos de saberes. Nesse sentido, é certo que o pedido poderia ter sido feito ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais ou à Escola de Música. São todos campos do conhecimento onde o homenageado possui produção relevantíssima.
Ocorre que, ciente de todas essas questões, foi dirigido à Faculdade Nacional de Direito. Interessante notar que o título honoris causa concedido recentemente ao advogado Luiz Gama pela Universidade de São Paulo partiu de iniciativa do departamento de Artes e Comunicação daquela instituição. Esse caso revela que o ato de reconhecimento da grandeza das contribuições à humanidade, bem como da capacidade de agir diante das terríveis injustiças que assolam uma sociedade construída em bases racistas, violentas e excludentes, pode transcender as divisões tradicionais do saber.
A reativação da produção da intelectualidade negra, indígena e minoritária em geral tem sido evidente consequência das ações afirmativas implementadas nas últimas duas décadas no âmbito das universidades. Autores, conceitos e teorias há muito presentes são retomadas, relembradas, colocadas em contato com outros pensamentos, ampliando o leque de possibilidades. Esse impacto epistemológico não se restringe ao alunado negro, mas estende-se a todos aqueles verdadeiramente interessados na expansão do pensamento e na reparação das injustiças. Evidentemente esse processo não se dá sem percalços, o que não causa espanto em uma sociedade mergulhada em dinâmicas excludentes que não se desfazem num estalar de dedos. Os mecanismos estão aí sendo atualizados, como bem apontou José Jorge de Carvalho em seu seminal artigo, mas nunca deixam de ser confrontados de forma múltipla.
Ironicamente, a obra de Nei Lopes em boa parte voltou-se para registrar e mergulhar não apenas nas trajetórias – o que por si só já seria trabalho nobilíssimo -, mas sobretudo na produção ética, intelectual, técnica, linguística, etc., da população negra, um trabalho ativo contra a invisibilidade e o apagamento de pessoas que atuaram em diferentes áreas: restaurar uma dignidade usurpada e reativar as potencialidades que essas existências seguem reverberando.
Por ocasião do pedido de reconsideração endereçado à FND, reiterando o quanto já havia sido fundamentada e detalhadamente exposto no pedido original, Eloá dos Santos Cruz evoca as palavras de Eduardo Seabra Fagundes sobre a centralidade da Liberdade, e complementa:
“Se a Liberdade é ingrediente indispensável ao exercício do mister da Advocacia e se essa tem intrínseca e inerente relação de pertinência com o universo jurídico, como rejeitá-la? Quem, entre os Advogados e Juristas Brasileiros mais circunspectos cantou e poetizou melhor a Liberdade do que NEI BRAZ LOPES?”
Sendo assim, a pergunta insiste: será a comunidade jurídica capaz de engajar na produção e no reconhecimento de obras e trajetórias de “alta expressão” na mesma medida em que prega desde sempre a importância de uma formação interdisciplinar? Será capaz de reconhecer os feitos daqueles historicamente invisibilizados por essas mesmas instituições e que, apesar disso, foram autores de produções que ecoam através dos tempos e dão condições de impulsionar as coletividades? Será possível honrar e fazer justiça a essas existências?
É importante sublinhar que Eloá dos Santos Cruz, o autor do pedido, também foi formado pela casa. Aos 80 anos, 60 deles dedicados à Justiça, advogou pelo engajamento da FND, instituição onde ambos cursaram a graduação, no incontestável reconhecimento à obra do homenageado. É igualmente um homem negro que cotidianamente se defronta com a atualização dos modos já mais do que conhecidos de invisibilização e desrespeito às trajetórias de pessoas negras e de todos aqueles que escapam aos moldes hegemônicos. Basta dizer que, nesse caso, a ele sequer foi comunicada uma negativa formal do pedido apresentado há quase dois anos, em setembro de 2019.
Esse episódio nos evoca a brilhante e sensível definição de Justiça de Cornell West: o amor é como a justiça é servida em público. Haverá possibilidade de justiça para homens negros?
Adriana Cruz é Juíza Federal no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Penal. Professora da PUC-Rio. Bacharel em Direito pela FND (UFRJ).
Barbara Cruz é doutoranda e mestra em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Advogada formada pela FND (UFRJ).