Um dos principais argumentos de quem não consegue melhorar a rotina alimentar é o alto custo dos alimentos naturais. Muitas vezes, eles realmente custam mais do que os processados e ultraprocessados, por exemplo, e um dos motivos para essa diferença de preços é a carga tributária, que parece privilegiar aqueles cujo consumo frequente impacta negativamente a saúde. Uma das soluções para este problema é a aplicação do princípio da seletividade dos impostos e de campanhas de conscientização dos riscos, como tem acontecido há algumas décadas com o cigarro, por exemplo.
“O avanço do consumo de ultraprocessados, aqueles produtos com excesso de nutrientes críticos como sal, gordura, açúcar, aditivos e conservantes é seguramente uma das principais razões que contribui para o crescimento da obesidade e doenças relacionadas com a diabetes”, afirma a especialista Marília Albiero, coordenadora de inovação e estratégia da ACT Promoção da Saúde, que tem como foco promover políticas públicas de saúde através de ações de advocacy realizadas por meio do trabalho em redes e mobilização da mídia.
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A piora no hábito alimentar dos brasileiros tem conexões com problemas econômicos, sociais e políticos. O desenvolvimento da obesidade e das doenças crônicas, sobretudo entre a população negra e periférica, está relacionado também com condições de vida desfavoráveis para uma rotina de práticas saudáveis.
“Além das baixas condições de praticar atividade física, a população negra e periférica tem cada vez menos acesso a uma alimentação saudável, seja pelo orçamento familiar ou porque vive no que chamamos de desertos alimentares. A alimentação saudável está cada vez mais cara, enquanto que os alimentos ultraprocessados são mais baratos e encontrados com facilidade em todos os lugares”, aponta Marília.
A coordenadora da ACT lembra também que a alimentação saudável é considerada um direito humano no Brasil, que deve ser assegurado pelo Estado através de um conjunto de políticas que promovam seu maior acesso e disponibilidade.
Tributação de alimentos ultraprocessados
A economista Vilma Conceição Pinto, especialista em contas públicas, acredita que um ajuste nas regras de tributação pode ajudar a combater os danos causados pelos maus hábitos alimentares. “Por meio do aumento dos tributos, você consegue desestimular o consumo de determinados produtos. Além disso, pode vincular os recursos para estimular ações que também incentivem a redução do consumo desses produtos por meio de outras políticas públicas”, diz.
Um exemplo que já existe é a legislação de tributação dos combustíveis, a CIDE Combustível (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico). “O valor que o governo arrecada é direcionado para manutenção das estradas e programas ambientais”, aponta a economista.
No caso do cigarro, por exemplo, a elevação dos impostos e as campanhas de conscientização ajudaram no combate ao tabagismo e na redução no número de casos de câncer. Está em andamento no CongressoNacional uma proposta de criação de CIDE para cigarros com previsão de arrecadação de até R$3,8 bilhões por ano para financiar campanhas anti-tabagistas.
O risco dos ultraprocessados e a população negra
Os alimentos ultraprocessados, em sua maior parte, são feitos de derivados de alimentos com ingredientes sintetizados como corantes, conservantes e derivados de açúcar e óleo. Por isso, não sofrem a sazonalidade que atinge os produtos in natura como frutas, verduras e legumes. Além disso, os produtos ultraprocessados têm ingredientes que provêm de modelos de produção ambientalmente insustentáveis – como as monoculturas de soja, trigo ou milho, que causam danos ao solo e sistemas hídricos por conta do uso de agrotóxicos, por exemplo.
“Saber o que se está comendo e qual o impacto disso na sua vida faz parte dos cuidados com a saúde que a população negra precisa ter”, pontua a nutricionista Jussara de Oliveira Romualdo, especialista em Gestão Pública e integrante do Instituto Afro Amparo e Saúde.
Dados de 2018, do Ministério da Saúde, indicam que a taxa de obesidade entre mulheres negras era de 21,8% contra 19,6% de mulheres brancas. A diabetes mellitus tipo II atinge as mulheres negras 50% mais do que as mulheres brancas.
“É preciso entender os hábitos, a rotina, a cultura e o comportamento social da pessoa para então sugerir novas escolhas alimentares. Os ultraprocessados são mais práticos, agradam ao paladar, porém, o ideal é o alimento in natura”, lembra a também nutricionista Marina de Souza Costa.
De acordo com a profissional, aos poucos é possível adaptar a rotina para criar um modo de vida mais saudável e sem consumo excessivo de alimentos ultraprocessados. “Um hábito não se muda de um dia para o outro. Podemos começar com o consumo de embutidos duas vezes por semana e ir reduzindo. Aos poucos, a saúde e a disposição vão melhorando e a pessoa se anima em continuar a mudança alimentar”, diz.
O acesso à alimentação de qualidade piorou na pandemia. Em 2021, segundo a Pnad, pesquisa de amostragem feita nos domicílios pelo IBGE, 29,8% das famílias formadas, em sua maioria, por pessoas negras, estão na chamada insegurança alimentar, enquanto que entre as famílias brancas este índice é de 14,4%.
A insegurança alimentar é um conceito usado pelos pesquisadores para definir uma situação em que a família não tem acesso a alimentos de qualidade, de forma regular e permanente, com a quantidade adequada para todos, sob o risco de faltar comida ou renda para outras necessidades essenciais.
Em 2018, por exemplo, 39% da população branca consumia frutas e hortaliças, ao menos, cinco vezes por semana. Entre a população negra, este índice era de 29%.
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O perigo das bebidas açucaradas
A tributação de produtos não-saudáveis como tabaco, álcool e alimentos com alto teor de sal, açúcar e gordura têm entrado com mais força na agenda global, conforme destaca Marília, coordenadora da ACT Promoção da Saúde. “Além de ser uma recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde), o banco mundial tem apoiado fortemente esta medida para a redução das doenças relacionadas ao consumo destes produtos, ressaltando os ganhos adicionais como geração de ganhos de produtividade e aumento de recursos para os governos”, pondera.
Um dos focos dessa batalha tributária contra os produtos que colocam em risco a saúde da população são as bebidas açucaradas, como os refrigerantes e sucos de caixinha.
Segundo a ACT, no Brasil, cerca de 13 mil adultos morrem por ano devido ao consumo de bebidas açucaradas e 721 mil crianças têm obesidade ou sobrepeso por causa do consumo de refrigerantes ou suco de caixinha. Por ano, um adulto consome 61 litros de bebidas açucaradas e uma criança 88 litros. O SUS (Sistema Único de Saúde) chega a gastar R$2,9 bilhões no atendimento a pessoas com doenças provocadas pelo consumo de bebidas açucaradas anualmente.
“Os subsídios dados pelo governo à indústria de refrigerantes é um bom exemplo para falarmos das desigualdades tributárias no Brasil. A Zona Franca de Manaus, onde se produz o xarope dos refrigerantes, é apenas um dos mecanismos para a indústria de bebidas adoçadas receberem incentivos fiscais, de fato, toda a cadeia de produção recebe algum tipo de incentivo. Mesmo que indiretamente, o governo está financiando a obesidade”, detalha Marília.
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Um estudo da campanha “Tributo Saudável” aponta que uma taxação de 20% nas bebidas açucaradas iria reduzir o consumo em 19%, aumentar a arrecadação em quase R$5 bilhões e gerar cerca de 69 mil empregos.
Uma lata de refrigerante de 350 ml tem cerca de 37 gramas de açúcar, o equivalente a mais de sete colheres de chá. “O IPI e ICMS deveriam ser orientados pelos princípios da seletividade ou da essencialidade, quanto mais essencial para a população, menor a carga tributária; e quanto mais supérfluo, maior o imposto”, acredita André Felix Ricotta de Oliveira, advogado, professor e doutor em Direito Tributário.
Segundo Oliveira, que é presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/SP, a tributação no Brasil precisa acompanhar as práticas dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
“A tributação sobre o consumo vai na contramão dos países da OCDE. Nos países desenvolvidos, a tributação sobre o consumo, em especial sobre os alimentos, é reduzida para incentivar o consumo interno. No Brasil, a tributação sobre os alimentos fica em torno de 23%. Na Alemanha, é 7%”, afirma o advogado.
Ele cita como exemplo a água mineral. “Na prática, o princípio da seletividade não é respeitado. A média do ICMS para água mineral é de 18%. Então, a água mineral não é essencial? É um produto supérfluo? Não. O princípio da seletividade está desrespeitado. A água é tão tributada quanto a cerveja ou a cachaça. A alíquota de ICMS é a mesma e em alguns estados é sujeita ao regime de substituição tributária, o que aumenta o preço para o consumidor final”.
Procurada pela Alma Preta Jornalismo, a Afrebras (Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil) afirmou acreditar que a criação de tributos ou taxas sobre o setor de refrigerantes é” ineficaz e discriminatória”.
“Nossos associados, que recolhem anualmente bilhões de reais em impostos e empregam direta e indiretamente milhões de brasileiros, já sofrem com uma carga tributária exorbitante, uma das mais altas da América Latina. Isso sem contar que, em outros países, esse tipo de taxação já tem apresentado resultados ruins. No México, por exemplo, a carga tributária subiu para 28% após o sugar tax e não surtiu efeitos no consumo de refrigerantes”, sustenta a associação, em nota.
Diferentemente dos especialistas ouvidos pela reportagem, a Afrebras diz que já foi comprovado que as bebidas açucaradas não aumentam o risco de obesidade entre os brasileiros.
“Pesquisa do Ministério da Saúde apontou aumento de 72% no índice de obesidade entre 2006 e 2019. Na contramão desses dados, a frequência do consumo regular de refrigerantes e bebidas açucaradas caiu 51,5% de 2007 a 2019. Ou seja, não existe correlação direta entre consumo de refrigerantes e obesidade, uma doença multifatorial. Desta forma, atribuir a responsabilidade a um único produto é uma simplificação perigosa que dificulta a solução do problema. Assim, defendemos que aumentar imposto não gera saúde”, considera a associação.
Este conteúdo é resultado de uma parceria entre a Alma Preta Jornalismo e a ACT Promoção da Saúde, organização não governamental que atua na promoção e defesa de políticas de saúde pública, especialmente nas áreas de controle do tabagismo, alimentação saudável, controle do álcool e atividade física. Esse trabalho é realizado por meio de ações de advocacy, que incluem incidência política, comunicação, mobilização, formação de redes e pesquisa, entre outras.