O clique é rápido, quase que automático. Em poucos segundos, os pequenos estão diante de uma avalanche de vídeos, jogos e conteúdos recomendados por algoritmos que, muitas vezes, não consideram sua identidade, nem sua proteção.
Com o aumento do acesso das crianças pequenas ao mundo digital, torna-se ainda mais urgente discutir quem essas tecnologias estão enxergando — e, principalmente, quem elas deixam de enxergar.
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Para as crianças negras, esse debate é ainda mais crítico — além dos riscos já conhecidos da exposição precoce às telas, elas enfrentam a ausência de representações positivas e o impacto silencioso do racismo algorítmico.
A presença de crianças no ambiente digital cresce a cada ano, mas a garantia de seus direitos nesse espaço ainda é um desafio. Nos últimos dez anos, o uso da internet por crianças pequenas deu um salto expressivo no Brasil.
Segundo a edição mais recente da pesquisa TIC Kids Online Brasil, publicada em fevereiro de 2025, o acesso à rede entre bebês de até dois anos passou de 9% em 2015 para 44% em 2024. Já entre crianças de 3 a 5 anos, a presença online cresceu de 26% para impressionantes 71% no mesmo período.
Racismo algorítmico e os riscos da exclusão nos mundos digitais
No cenário digital cada vez mais presente na vida das crianças, os algoritmos e os sistemas de recomendação de conteúdo vêm moldando o que se consome — e, por consequência, como se enxerga o mundo.
Para crianças negras, esse filtro invisível pode significar apagamento ou reforço de estereótipos nocivos. “Os algoritmos funcionam baseados na repetição de padrões”, explica Rodrigo Carreiro, diretor de pesquisa do Aláfia Lab, iniciativa de Salvador (BA), cujo foco é transformar as tecnologias para construir oportunidades para um mundo mais justo.
Segundo Carreiro, os algoritmos operam com base em padrões de uso individuais e coletivos, o que acabam refletindo as desigualdades estruturais da sociedade. “É difícil ter uma noção exata de como eles funcionam, até porque variam de plataforma para plataforma”, pondera.
O especialista pontua que os efeitos são sentidos com clareza, isto é, a reprodução automática de um mundo que invisibiliza ou distorce corpos e histórias negras. As mídias digitais, aponta o pesquisador, são hoje espaços centrais de sociabilidade, onde se aprende, se comunica e se forma identidade.
Para as crianças, que já nascem imersas nesse universo, a influência é ainda mais intensa. “Os estímulos digitais são intensos e contínuos, justamente numa fase da vida em que a criança está formando seu repertório emocional”, afirma.
Segundo Carreiro, isso significa que a baixa representatividade ou a representação negativa de pessoas negras nas redes não é apenas um problema simbólico — é um fator que afeta diretamente a construção da autoimagem e da autoestima infantil.
O chamado racismo algorítmico — quando sistemas automatizados replicam ou aprofundam discriminações raciais — também impacta diretamente a experiência de crianças negras na internet.
“Na prática, isso está nos sistemas de reconhecimento facial, que em muitos casos falham em reconhecer rostos de pessoas negras; na moderação de conteúdo automatizada, que tem apresentado problemas em censurar conteúdos legítimos que visam debater o tema do racismo; na perpetuação de estereótipos pelos próprios algoritmos de recomendação”, exemplifica.

O que pode ser feito para diminuir o impacto do racismo algorítmico?
Diante desse cenário, o pesquisador defende mudanças estruturais nas plataformas digitais. Reformular algoritmos com parâmetros mais inclusivos é um primeiro passo, mas não o único.
Ele propõe também a criação de mecanismos de moderação humana mais atentos ao contexto das postagens, bem como a produção de relatórios de transparência que tragam dados específicos sobre diversidade e combate ao racismo.
“É essencial abrir espaço para a colaboração com especialistas em diversidade, inclusão e combate ao racismo para desenvolver políticas e ferramentas eficazes”, ressalta.
A responsabilidade, no entanto, não é apenas das grandes empresas de tecnologia. Pais e educadores também podem (e devem) atuar para minimizar os efeitos do racismo digital na infância.
Carreiro destaca duas frentes principais, que consistem no incentivo à navegação responsável, com estímulo ao consumo de conteúdos diversos, e a educação midiática constante. Além disso, reforça a importância de um trabalho emocional de base.
“É preciso ajudar essas crianças a criar repertório emocional para lidar com os problemas inevitáveis do racismo, de forma que se construa um lastro de empoderamento para responder a essas questões”, acrescenta.
Direitos digitais das crianças esbarram na falta de regulamentação e fiscalização
Apesar de o Brasil contar com legislações como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), garantir os direitos digitais das crianças ainda é um desafio complexo.
A avaliação é de André Lopes, professor de Direito na Universidade Católica de Brasília, que aponta falhas tanto na aplicação das leis como na criação de normas específicas para proteger o público infantil no ambiente online.
O especialista destaca que um dos principais gargalos está na ausência de uma regulamentação clara e eficaz voltada às crianças. “Ainda que existam marcos legais importantes, como o Marco Civil da Internet e a LGPD, sua aplicação específica para o público infantil carece de detalhamento e de uma fiscalização mais rigorosa.”
Além da fragilidade regulatória, o professor menciona outras ameaças recorrentes, como a coleta indevida de dados por plataformas digitais, muitas vezes feita sem o consentimento dos responsáveis ou com pouca transparência.
Segundo o especialista, outro ponto sensível é o uso abusivo de publicidade voltada ao público infantil, especialmente por meio de influenciadores mirins e algoritmos que exploram o comportamento online das crianças.
Para Lopes, a exposição a conteúdos violentos, sexuais ou discriminatórios também preocupa, assim como o avanço do cyberbullying e de práticas discriminatórias — problemas que afetam de forma ainda mais intensa crianças negras, indígenas e de outros grupos historicamente vulnerabilizados.
O docente também argumenta que essas ameaças exigem não apenas políticas públicas robustas, mas também ações de educação digital voltadas a pais, educadores e crianças.

Como garantir ambiente digital seguro e inclusivo para crianças negras
Para André Lopes, tornar esse ambiente mais seguro e inclusivo para as crianças negras exige uma combinação de educação, responsabilidade empresarial e políticas públicas eficazes.
“Ensinar crianças e responsáveis a identificar e denunciar práticas racistas online é um passo essencial para transformar o ambiente digital”, afirma. O professor defende que a educação digital precisa ser parte da formação básica, incluindo o debate sobre racismo, direitos digitais e cidadania desde os primeiros anos escolares.
Além disso, Lopes defende que as empresas de tecnologia devem assumir um papel mais ativo no combate à discriminação. Isso inclui o aprimoramento dos sistemas de moderação de conteúdo e o desenvolvimento de inteligências artificiais menos enviesadas.
Para o professor, ampliar a presença de personagens negros em jogos, vídeos, desenhos animados e demais conteúdos voltados ao público infantil é essencial para a construção de uma autoimagem saudável. “Valorizar a diversidade cultural nas produções digitais é uma estratégia poderosa para fortalecer a identidade de crianças negras”, afirma.
Do ponto de vista legal, Lopes é enfático: “Precisamos de uma legislação mais rigorosa, com sanções efetivas para plataformas que não protejam crianças contra discursos de ódio e discriminação racial”.
O docente também aponta a necessidade de criar ferramentas de controle parental que filtrem conteúdos prejudiciais sem reforçar barreiras de acesso ou limitar a pluralidade de vivências.
Na esfera das políticas públicas, o docente propõe a criação de um Observatório de Direitos Digitais Infantis, com foco na desigualdade racial. Esse espaço serviria para monitorar continuamente os impactos das tecnologias na infância e subsidiar ações de proteção.
“É necessário regulamentar o uso de algoritmos e exigir das plataformas transparência sobre como suas recomendações afetam diferentes grupos sociais”, acrescenta.
Lopes também destaca a importância de campanhas educativas sobre racismo digital, voltadas para toda a sociedade, e de uma atuação mais firme das agências reguladoras. “A fiscalização precisa ser mais rigorosa para garantir que os direitos das crianças negras sejam respeitados nos ambientes digitais”, afirma.
Para o professor, a construção de um ecossistema digital mais justo não se faz apenas com boas intenções. É preciso combinar inclusão, regulação e empatia para que todas as crianças, independentemente de sua cor ou origem social, possam navegar com segurança, dignidade e representatividade.
Guia destaca urgência de regulamentação para proteger crianças no ambiente digital
Lançado em 11 de março pelo Governo Federal, o guia “Crianças, adolescentes e telas: usos de dispositivos digitais” reforça a necessidade de políticas públicas e marcos regulatórios que garantam a proteção de crianças frente aos riscos associados ao uso excessivo de telas, à coleta inadequada de dados pessoais e à exposição a publicidade abusiva.
O documento oferece orientações específicas para famílias, cuidadores, tutores e responsáveis, com foco na promoção de um uso mais saudável e seguro das tecnologias digitais:
- Evitar o uso de dispositivos eletrônicos por bebês com menos de dois anos, exceto em situações pontuais, como chamadas de vídeo com familiares;
- Adiar ao máximo a posse de smartphones por crianças menores de 12 anos;
- Desencorajar o uso de redes sociais por crianças até 12 anos e respeitar as faixas etárias indicadas por cada plataforma;
- Acompanhar o consumo de conteúdo midiático pelas crianças, aproveitando esses momentos para promover interações, conversas e trocas significativas;
- Estimular o diálogo sobre os riscos e possibilidades do ambiente digital, ouvindo as crianças e adolescentes, e construindo, juntos, combinados familiares que promovam o uso equilibrado da tecnologia;
- Evitar qualquer prática de exploração do trabalho infantil no ambiente online, inclusive na forma de produção de conteúdo digital;
- Reduzir ou eliminar a prática do sharenting — a superexposição da vida das crianças nas redes sociais —, sobretudo em perfis públicos, para proteger sua privacidade e segurança.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.
