“Não há dúvidas de que o impacto foi enorme. O Apolo entrou em contato com outras crianças apenas aos dois anos. Diversos estudos correlacionam a interação social ao desenvolvimento cognitivo, psicomotor e emocional”, ressalta Humberto Baltar, de 44 anos.
Professor e palestrante da disciplina “Paternidades Pretas” na pós-graduação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), Humberto é pai de Apolo, hoje com seis anos. Assim como o filho, é neurodivergente.
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Para o professor, a impossibilidade de sair de casa durante o período de isolamento social teve impacto decisivo no desenvolvimento das crianças nascidas durante a pandemia, como o seu filho. “O livre brincar ou correr e explorar espaços é fundamental ao aprimoramento das habilidades físicas e sensoriais”, destaca.
“Passamos o ano de 2020 todo em casa e só fomos sair com o Apolo em 2021. Não há como precisar a influência da pandemia do diagnóstico do autismo no nosso filho, mas sem dúvida alguma, o prejuízo causado pela ausência do contato com outras pessoas foi perceptível”, defende.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou oficialmente a Covid-19 como uma pandemia. Cinco anos depois, a crise sanitária matou ao menos 7 milhões de pessoas, sendo 715 mil brasileiras.
As marcas deste período ficaram na memória de Humberto. “Foi perturbador conviver com a incerteza, especialmente no período pré-vacina. As unidades básicas da minha região não deram conta. O posto mais próximo teve várias baixas por Covid-19”, recorda.
Os primeiros anos de cuidado com o filho foram atravessados por medo, solidão e a ausência de redes de apoio — um cenário intensificado pela pandemia.
“O mais difícil foi enfrentar os cuidados diários sem ter com quem compartilhar experiências — como dar banho, aliviar cólicas, lidar com assaduras ou decifrar o choro do Apolo. Precisei aprender tudo isso sozinho, entre o medo e o isolamento”, relembra.
Em 2020, quando Apolo tinha apenas um ano, a rotina familiar foi completamente transformada. A esposa de Humberto, Thainá Baltar, de 36 anos, engenheira da Petrobras, passou a trabalhar em turnos de 12 horas para reduzir a circulação de pessoas na empresa. “Ela saía às 5h30 e só voltava às 20h30. Fiquei responsável pelo cuidado integral do nosso filho”, conta.
Sem apoio presencial, ele se voltou para os saberes ancestrais africanos, que lhe ofereceram referências de masculinidades e paternidades afetivas. Foi essa experiência que inspirou a criação do coletivo Pais Pretos Presentes, espaço de acolhimento e troca entre cuidadores negros.
“Mais uma vez, o repertório ancestral africano me deu referências de masculinidades e paternidades afetivas, presentes e amorosas para me inspirar e amparar diante da solidão do isolamento social”, acrescenta.

Impacto socioeconômico e perdas na aprendizagem
A pandemia de Covid-19 provocou efeitos profundos e duradouros na vida das crianças brasileiras — impactos que foram ainda mais severos entre aquelas em contextos de maior vulnerabilidade social.
Para a epidemiologista Dandara Ramos, professora adjunta do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), os efeitos da crise sanitária atravessaram múltiplas dimensões do desenvolvimento infantil, alcançando desde a esfera socioeconômica até questões neurológicas, emocionais e educacionais.
Segundo a especialista, “em primeiro lugar, é preciso considerar o impacto que a pandemia teve na camada socioeconômica, especialmente por conta das medidas de distanciamento social”.
De acordo com a epidemiologista, a crise afetou com mais força os trabalhadores informais, populações quilombolas e moradores de periferias, que viram suas fontes de renda diminuírem drasticamente.
“Esse impacto foi, em certa medida, compensado pelos auxílios e intervenções federais e locais, mas os choques de renda foram muito significativos”, afirma. Dandara lembra que as perdas econômicas na primeira infância tendem a ter efeitos duradouros, influenciando o desempenho escolar, a transição para a adolescência e até o futuro no mercado de trabalho.
Outro aspecto central apontado por Dandara Ramos diz respeito à escolarização. Ela ressalta que as perdas vividas pelas crianças durante a pandemia não se restringiram ao avanço escolar medido em números, mas afetaram, de forma profunda, a qualidade da aprendizagem.
“Muitas escolas migraram para o ensino remoto sem levar em conta as desigualdades presentes nos lares das crianças”, observa. A falta de infraestrutura adequada, o acesso precário à internet, a ausência de dispositivos eletrônicos e o baixo nível de letramento digital de muitos pais dificultam o acompanhamento das atividades escolares.
Como consequência, explica a pesquisadora, houve prejuízos significativos em áreas fundamentais como a alfabetização, o letramento da matemática e outras competências essenciais para o desenvolvimento educacional.
Efeitos na saúde e no desenvolvimento infantil
No campo da saúde, a profissional destaca que a pandemia trouxe desafios importantes. A chamada “Covid longa” ainda é uma condição pouco documentada em crianças pequenas, mas já há evidências de impactos neurológicos e desenvolvimentais.
Ela enfatiza que, por estar profundamente ligado ao ambiente familiar, o desenvolvimento infantil foi afetado de forma sistêmica. “Muitas crianças perderam mães ou pais durante a pandemia”, lembra. Essa orfandade, além de causar sofrimento emocional, compromete a estabilidade financeira, a segurança afetiva e até a continuidade da vida escolar dessas crianças.
Dandara Ramos acrescenta que os efeitos da pandemia na primeira infância “atravessam várias camadas do desenvolvimento: da dimensão mais estrutural e socioeconômica até o desenvolvimento da linguagem, da aprendizagem e do desenvolvimento motor”.

Desafios no comportamento e na socialização das crianças negras
Segundo Thamiris Camargo, psicóloga da Clínica Revitalis, especializada no atendimento de crianças, adolescentes e jovens, há diferenças claras na socialização e no comportamento de crianças negras que viveram o isolamento em contextos de maior vulnerabilidade.
Para a psicóloga, elas retornaram à escola mais retraídas, com dificuldades de confiar nos adultos ou de se inserir nos grupos, enquanto outras apresentaram comportamentos mais agitados e explosivos. “Tudo isso pode ser uma forma de expressar medo, frustração, ou até de tentar se proteger”, explica.
Ainda segundo a especialista, muitas dessas crianças ficaram expostas a situações de estresse dentro de casa, não tiveram acesso a estímulos adequados e, consequentemente, não tiveram espaços para elaborar o que estavam vivendo. Esses fatores se refletem no jeito de brincar, falar e se relacionar.
Escolas ainda falham em acolher crianças negras no pós-pandemia
Apesar do retorno às aulas presenciais já ser uma realidade consolidada, muitas escolas ainda não estão preparadas para acolher emocionalmente as crianças negras e reparar os danos causados pela pandemia de Covid-19.
Para Thamiris, o foco excessivo no conteúdo pedagógico tem deixado de lado questões fundamentais do desenvolvimento emocional. “A maioria das escolas ainda não está preparada, infelizmente. Muitas voltaram com foco só no conteúdo, sem pensar nas emoções das crianças”, afirma.
Segundo a psicóloga, ao ignorar os impactos emocionais e as experiências de exclusão racial vividas durante o isolamento, as instituições de ensino perdem a oportunidade de promover uma educação verdadeiramente inclusiva e reparadora.
No entanto, a psicóloga destaca que algumas escolas vêm buscando caminhos diferentes. Ela aponta práticas eficazes como projetos que valorizam a cultura negra, o fortalecimento da identidade das crianças por meio de atividades simbólicas e a escuta ativa das famílias.
“O que funciona mesmo é quando a escola entende que educar também é cuidar. E cuidar passa por reconhecer as dores, os silêncios, e também as potências dessas crianças”, ressalta.
Segundo ela, a transformação só acontece quando há uma escuta verdadeira, capaz de enxergar a história de cada aluno e responder a ela com sensibilidade.