Violência policial impõe ciclo de traumas a crianças negras desde a primeira infância

Especialista alerta que traumas de violência não tratados podem gerar comportamentos de risco e comprometer a adaptação social e emocional ao longo da vida
Uma mulher e uma criança passam diante de soldados do Exército Brasileiro enquanto se posicionam em um posto de controle durante uma operação no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em 1º de abril de 2015.

Uma mulher e uma criança passam diante de soldados do Exército Brasileiro enquanto se posicionam em um posto de controle durante uma operação no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em 1º de abril de 2015.

— Yasuyoshi Chiba/AFP

26 de abril de 2025

A violência policial nas periferias do Brasil afeta profundamente o desenvolvimento emocional e psicológico das crianças na primeira infância, gerando traumas com impactos duradouros. O medo constante, a insegurança e a perda de familiares ou conhecidos em ações policiais criam um ambiente de instabilidade emocional, dificultando o aprendizado, a socialização e a construção da autoestima. 

Estudos indicam que crianças expostas a episódios recorrentes de violência podem desenvolver distúrbios como ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático, comprometendo o bem-estar e o futuro. O impacto se torna ainda mais preocupante se observado os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2024. 

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Segundo a publicação, pessoas negras têm 3,8 vezes mais chances de morrer em ações policiais do que pessoas brancas. Essa disparidade reflete um padrão histórico de criminalização da população negra e de políticas de segurança pública que reforçam desigualdades raciais. 

O levantamento mostra que, assim como nos anos anteriores, a maioria das vítimas era negra (pretas e pardas), representando 82,7% das mortes em 2023. Esse número reforça um ciclo de violência que atinge diretamente as famílias negras e impacta a infância, tornando o luto e o trauma parte da rotina de muitas crianças.

Em 2023, foram registradas 6.393 mortes em decorrência de intervenções policiais, resultando em uma taxa de 3,1 mortes por 100 mil habitantes. Embora o número represente uma pequena redução em comparação a 2022, quando a taxa foi de 3,2 por 100 mil habitantes, o cenário a longo prazo revela uma tendência alarmante — desde 2013, houve um aumento de 188,9% nas mortes provocadas por ações policiais. O que significa que, apesar das pequenas variações anuais, a letalidade policial segue crescendo e impactando a vida de milhares de famílias.

Como a violência policial afeta o desenvolvimento infantil

Segundo a psicóloga Thamiris Camargo, da Clínica Revitalis, especializada no atendimento de crianças, adolescentes e jovens, “a psicanálise mostra que a infância é um período em que a criança está formando sua identidade e emoções. Quando ela passa por uma experiência traumática, como a violência policial, isso afeta profundamente a forma como ela vê o mundo”. 

De acordo com a profissional de saúde, o medo e a insegurança se tornam sentimentos frequentes, pois o trauma não é facilmente processado pela mente infantil e pode permanecer influenciando seu comportamento ao longo da vida.

Para ela, os sinais desse impacto variam de acordo com cada criança, mas há alguns sintomas comuns. “Crianças traumatizadas podem apresentar medo constante, comportamentos agressivos, ou até voltar a fazer coisas de quando eram mais novas, como molhar a cama”, explica.

A especialista ainda argumenta que, enquanto comportamentos típicos da infância tendem a desaparecer com o tempo, os sintomas do trauma permanecem e afetam diferentes aspectos da vida da criança, se manifestando tanto em casa quanto na escola.

O estresse tóxico provocado pela exposição recorrente à violência tem efeitos diretos no cérebro em desenvolvimento. Thamiris esclarece que esse tipo de estresse “afeta o desenvolvimento do cérebro, especialmente em crianças pequenas, dificultando a capacidade de processar emoções e aprender a lidar com elas”. 

Mencionado pela especialista, o estresse tóxico consiste na exposição de uma criança a situações adversas de maneira intensa e prolongada, sem a possibilidade de receber apoio e o cuidado adequado para lidar com as dificuldades. Especialistas exemplificam a condição como o estado de alerta constante do corpo e da mente, sem ter a chance de se recuperar ou relaxar.

A psicóloga alerta que essa exposição pode gerar dificuldades emocionais duradouras, comprometendo a capacidade da criança de lidar com frustrações e desafios do dia a dia. Segundo Camargo, os impactos do trauma são ainda mais evidentes no ambiente escolar, onde crianças expostas à violência policial enfrentam obstáculos no aprendizado e na socialização.

“O trauma afeta a capacidade da criança de se concentrar e se relacionar com os outros. Ela pode se sentir insegura e não confiar nos colegas ou professores, o que dificulta a interação social e o aprendizado”, destaca. 

Um parente carrega o brinquedo favorito de Agatha Sales Felix, de oito anos, que foi morta por uma bala perdida durante uma operação policial no Complexo do Alemão, durante seu funeral no Rio de Janeiro, em 22 de setembro de 2019. Foto: Carl de Souza/AFP

Um parente carrega o brinquedo favorito de Agatha Sales Felix, de oito anos, que foi morta por uma bala perdida durante uma operação policial no Complexo do Alemão, durante seu funeral no Rio de Janeiro, em 22 de setembro de 2019. Foto: Carl de Souza/AFP

A violência e seus efeitos no desenvolvimento cerebral 

A professora sênior do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e membro do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), Maria Beatriz Linhares, é autora do estudo “Prevenção de violência contra criança”, publicado em 2023.

Ela explica que a violência na infância afeta profundamente o desenvolvimento cerebral, impactando diversas áreas do cérebro. Além disso, cita estudo de Cuartas, da Universidade de Harvard, que mostra que crianças vítimas de violência física apresentam maior ativação em regiões do córtex pré-frontal, como o córtex cingulado anterior dorsal e o PFC dorsomedial.

“Esses achados sugerem que o apanhar com palmadas pode alterar as respostas neurais a ameaças ambientais de uma maneira semelhante a formas mais graves de maus-tratos. Os maus tratos na infância têm impacto negativo no desenvolvimento cerebral e afetam os sistemas de atenção aos estímulos ambientais”, explica. 

A especialista em desenvolvimento infantil, ressalta os impactos devastadores que a violência na infância pode ter sobre o desenvolvimento psicológico dos pequenos. Ela explica que a violência contra as crianças atua como um fator de risco significativo, capaz de comprometer o desenvolvimento saudável e adaptativo, podendo até mesmo “destruir recursos potenciais significativos”. 

Para ela, as práticas parentais violentas e coercitivas, como a punição física e as ameaças, têm um impacto direto no comportamento das crianças, resultando frequentemente em “comportamentos de desobediência” e problemas emocionais que se estendem para a fase escolar. 

“Crianças que receberam punição corporal e palmadas apresentam alterações comportamentais, do tipo agressividade”, explica Linhares. E ainda argumenta que são comportamentos que podem se traduzir em dificuldades de adaptação, problemas de aprendizado e até no surgimento de transtornos emocionais graves, como depressão, ansiedade e estresse pós-traumático.

Além dos efeitos gerais da violência, Linhares alerta para o impacto do racismo, que pode ser considerado uma “violência adicional”. Ela ressalta a relação entre condições sociais precárias e a exposição a violências, indicando que “viver na pobreza, ser negro e ser do gênero feminino” agrava os riscos psicológicos e de saúde. 

A professora esclarece como o estresse tóxico, causado por episódios de violência na infância, pode afetar profundamente o cérebro em formação. Linhares afirma que quando vivenciam essas adversidades, o organismo reage com uma “reatividade intensa e prolongada”, o que prejudica a capacidade do corpo de lidar com o estresse de maneira saudável. 

Ela destaca que as experiências adversas, como o abuso sexual, violência física ou psicológica, e a negligência, têm sérias consequências para o desenvolvimento da criança. Além disso, argumenta que o estresse prolongado e sem suporte emocional adequado pode prejudicar a saúde física e mental ao longo da vida. 

Para Linhares, as crianças afetadas podem desenvolver uma série de problemas, como obesidade, doenças imunológicas, gastrointestinais, pulmonares, cardiovasculares e até câncer. Além disso, “os efeitos na saúde mental incluem sintomas depressivos, comportamento agressivo, estresse pós-traumático e o uso de substâncias como nicotina, álcool e drogas ilícitas”, diz.

Ela salienta ainda que essas experiências de violência, quando não tratadas, podem levar a comportamentos de risco, como suicídio, e afetam a capacidade de adaptação social e emocional dos indivíduos ao longo de suas vidas. O impacto no cérebro em formação, portanto, é imenso, comprometendo as funções cognitivas e emocionais essenciais para o bem-estar e o desenvolvimento saudável.

Estratégias para minimizar danos psicológicos causados pela violência 

Maria Beatriz Linhares defende que a presença de um ambiente acolhedor e seguro pode minimizar os danos causados por traumas precoces. Ela destaca que políticas públicas eficazes são essenciais para combater a violência contra crianças e adolescentes no Brasil. 

Para ela, é fundamental criar planos de ação específicos para enfrentar a violência infantil, com a colaboração de gestores, técnicos e representantes das comunidades. Esses planos devem envolver diferentes áreas, como saúde, educação, assistência social e jurídica, com foco em soluções práticas para proteger as crianças.

A especialista também propõe a implementação de uma rede de proteção robusta, incluindo sistemas de apoio em serviços como CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência Social), e defende a aplicação rigorosa das leis que garantem os direitos das crianças, com a colaboração de profissionais das redes de saúde e educação.

Ela também destaca a importância de aplicar a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança, incorporando na prática da puericultura — área da medicina que se dedica ao cuidado e à saúde infantil — a vigilância do crescimento e desenvolvimento infantil, promovendo o desenvolvimento saudável e prevenindo agravos, incluindo as violências. 

“Além de notificações, denúncias e atendimento integrado, é fundamental desenvolver programas de prevenção à violência, especialmente os que focam no fortalecimento da parentalidade. Esses programas, que abordam o papel dos pais no cuidado das crianças, são essenciais para promover e fortalecer um ambiente familiar seguro, prevenindo e revertendo a violência contra os pequenos”, defende. 

Linhares acredita que no ambiente familiar, para prevenir as violências contra as crianças precisamos investir nos cuidadores. “Por isso, temos que focar na parentalidade, que se define como a soma de estratégias realizadas pelos pais ou cuidadores principais com função parental com o objetivo de promover o desenvolvimento da criança, priorizando sua segurança e estimulando suas capacidades para que ela tenha cada vez mais autonomia”, finaliza. 

Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.

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  • Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

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