O continente africano vive uma terceira onda de casos de COVID-19 impulsionada, entre outros fatores, pela propagação da variante Delta do vírus SARS-CoV-2. Mais presente na África do Sul, a cepa com maior capacidade de transmissão do novo coronavírus até agora segue se espalhando no continente e preocupa as autoridades locais.
Confirmando as expectativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), os números de novos casos de COVID-19 já ultrapassaram o pico da segunda onda e crescem a uma velocidade inédita no continente africano. Nas seis semanas anteriores ao dia 27 de junho, os casos cresceram na África a uma taxa semanal recorde de 25%. No mesmo período, as mortes causadas pela doença aumentaram em cerca de 15% em 38 países africanos.
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A terceira onda na África – média de casos confirmados por milhão de habitantes:
“A velocidade e a escala da terceira onda na África é diferente de tudo o que vimos antes. O aumento vertiginoso da propagação de novas variantes coloca a ameaça na África em um novo nível”, disse em um comunicado a Dra. Matshidiso Moeti, diretora regional da OMS na África.
O país sul-africano segue como o epicentro da pandemia no continente, onde a variante Delta já se tornou dominante. A nação é responsável por cerca da metade das novas infecções detectadas na África. Novos picos de casos também foram registrados em países como Argélia, Marrocos, Zâmbia, Uganda, Tunísia, República Democrática do Congo e Namíbia.
Pelo menos 16 dos 55 países africanos já identificaram a presença da variante Delta, segundo o escritório da OMS para a África, que estima que a nova cepa seja entre 30% e 60% mais transmissível que as anteriores. A organização também calcula que a demanda por oxigênio no continente já está 50% maior do que no primeiro pico da pandemia.
A falta de infraestrutura hospitalar e o ritmo lento da vacinação deixam a região em uma situação delicada diante da nova onda. Assim como na explosão de casos observada na Índia, onde a variante Delta foi detectada pela primeira vez, a situação africana é uma preocupação para o mundo inteiro, que pode pagar um preço alto pela escassa oferta de vacinas para os 1,3 bilhão de africanos.
Fatores comuns explicam números da pandemia na África até aqui
Apesar da situação crítica atual, os números disponíveis apontam que a África foi o continente menos impactado pela COVID-19 até o momento. Mesmo os dados sobre a terceira onda da doença na região mostram um quadro consideravelmente mais brando do que o do resto do mundo. Atualmente, a média de casos diários na África é de 38 mil, enquanto na Europa, é de quase 79 mil.
Média de casos diários na África e na Europa:
Em entrevista à Alma Preta Jornalismo, o médico epidemiologista Marcio Sommer Bittencourt, professor da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que, apesar das diferenças entre os países africanos, há fatores comuns na região que justificam “uma boa parte” do menor impacto da pandemia registrado na África até aqui.
“De forma geral, o primeiro problema do continente africano é que tem menos testagem, não tem recursos e estrutura para testar. Então, com certeza, o subdiagnóstico deles – como é o caso da Índia e de grande parte do sudeste asiático – é importante. Com certeza estão diagnosticando menos”, explica Bittencourt.
A falta de estrutura tem sido uma das principais preocupações das autoridades sanitárias africanas diante da pandemia. Um estudo recente publicado na revista científica The Lancet mostra que, como reflexo da infraestrutura de saúde local, a taxa de mortalidade para pacientes de COVID-19 em países africanos tem sido maior do que no resto do mundo.
O pesquisador Marcio Bittencourt aponta ainda que a faixa etária da população africana, a mais jovem do planeta, também serviu como um fator atenuante sobre os números da pandemia até aqui. “Por ser um continente, um grupo de países com a população com a média muito baixa de idade, com pessoas muito jovens, você tem menos casos graves, menos internações e menos óbitos”, indica o professor.
Bittencourt também acrescenta que fatores de mobilidade em partes do continente servem de freio para os surtos da pandemia, uma vez que o vírus é carregado pelas estradas e aeroportos. Apesar disso, o médico alerta que isso não significa que a transmissão é interrompida, mas apenas que pode diminuir a velocidade dos surtos.
Vacinação lenta e riscos para o mundo
Em termos de aplicação de doses de vacina, a África está muito atrás do resto do planeta. Conforme dados do site Our World in Data, ligado à Universidade de Oxford, somente 54,3 milhões de doses de vacinas contra a COVID-19 foram aplicadas no continente africano. Apenas 16,7 milhões de pessoas na África estão totalmente vacinadas.
Os números colocam a África atrás, inclusive, da América do Sul, que soma, hoje, cerca de 200 milhões de doses aplicadas – 110 milhões somente no Brasil.
Proporção de habitantes que tomaram ao menos 1 dose da vacina em cada continente:
O epidemiologista Marcio Bittencourt alerta que o ritmo lento da vacinação na África e em outros lugares configura um risco para o controle da pandemia. “A vacinação lenta vai atrapalhar todos os lugares. A primeira onda da COVID-19 foi relacionada à mobilidade […] na Europa, Estados Unidos, América Latina, além de Rússia e Oriente Médio. Agora a gente vai ver uma segunda leva de COVID-19 circulando e recirculando nos países mais pobres que não têm acesso à vacina”, explica o professor.
No caso do continente africano, mais de seis meses após o início da vacinação na maioria dos países, apenas 2,83% dos africanos receberam pelo menos a primeira dose da vacina. Na Europa, que tem uma população equivalente a pouco mais da metade da africana, a mesma estatística alcança 43,17%.
“A gente vai ver ondas tardias, mais persistentes, mais recorrentes e mais repetidas: uma segunda onda, uma terceira onda tardia, uma quarta onda, alguma coisa assim, ainda mais tardia, mais lenta ou mais repetida em países que não conseguem vacinar”, aponta Bittencourt, afirmando que esse padrão deve ocorrer principalmente na África e nas regiões mais pobres da Ásia.
Para a imunização, hoje os países africanos dependem principalmente do programa COVAX, da OMS, e de doações. Diante do quadro delicado tanto para o continente africano como para o mundo, Bittencourt acredita que a comunidade internacional pode agir para tentar reverter o quadro africano. “A comunidade internacional pode doar vacinas para a África, pode vender barato, pode ajudar na logística de distribuição, como a gente sempre fez em outras medidas humanitárias”, conclui.
A Alma Preta Jornalismo enviou perguntas para o escritório regional da OMS na África e também para o Centro para Prevenção e Controle de Doenças da África, órgão da União Africana. Até a publicação deste texto, a reportagem não obteve respostas.