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Como é ser um intercambista negro?

13 de março de 2018

Baixa presença de negros nas universidades resulta em participação pequena em intercâmbios universitários. O Alma Preta conversou com estudantes negros que tiveram essa experiência

Texto / Thalyta Martina
Imagem / Acervo pessoal dos entrevistados

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Fazer intercâmbio dá chance ao participante de viver muitas histórias, agregar experiência ao currículo e ao crescimento pessoal, além de permitir ter visão mais ampla de mundo. Além disso, quem o faz adquire uma série de saberes para ter condições de resolver situações complicadas de modo autônomo.

Uma das formas mais consagradas de intercâmbio é o universitário. As universidades públicas e parte das privadas oferecem aos seus estudantes a possibilidade de estudar em outra instituição de ensino superior em diferentes países, com culturas distintas da brasileira.

Negros fazem intercâmbios?

A ressalva vem à tona ao se recordar que a universidade, em especial a pública no Brasil, é um privilégio da classe média branca. De acordo com pesquisa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o percentual de negros com idades entre 18 e 24 nas universidades brasileiras mais do que dobrou desde 2005, mas, ainda assim, está significativamente abaixo do número de estudantes brancos no espaço acadêmico público ou privado – 5,5% dos jovens negros estavam na universidade em 2005, ao passo que 12,8% compunham o nível superior em 2015.

Para citar um exemplo, dados da COMVEST (Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp) de 2017 mostraram que, em 2016, o número de estudantes pretos, pardos ou indígenas matriculados na Unicamp (Universidade de Campinas) foi de 726 estudantes. Isso corresponde a 22,4% do total de vagas. O percentual de brancos matriculados nesse mesmo ano foi de 77,6%, equivalente a 2.517 estudantes.

A experiência do intercâmbio parece ser também privilégio de uma raça que não constitui metade da população brasileira, a branca. De acordo com dados do MEC (Ministério da Educação), até 2015 os afrodescendentes responderam por 25,23% das vagas oferecidas pelo Ciência sem Fronteiras. A etnia foi incluída no formulário de inscrição do programa em 2013.

Por esse motivo, o Alma Preta decidiu investigar como são os intercâmbios feitos por jovens negros.

Teófilo Reis, doutorando em sociologia e integrante do Núcleo de Consciência Negra e da Frente Pró-Cotas da Unicamp, atribui esse fato à desigualdade de acesso ao ensino superior. Segundo ele, há alguns anos as universidades eram espaços quase exclusivamente brancos e a política de cotas é fundamental para possibilitar o ingresso de pessoas negras historicamente excluídas do espaço universitário. “Temos, portanto, um diagnóstico de que a situação melhorou, porém ainda há muito trabalho a ser feito”, afirma.

Intercâmbio de negros e brasileiros

A jornalista Priscilla Geremias foi em 2014 para Bogotá, na Colômbia. Ela ficou estudando por seis meses na Universidad Del Rosario, instituição religiosa e particular. Nas salas onde havia entre 20 e 30 alunos, ela era a única mulher negra. No grupo de integração da universidade, a maioria dos intercambistas era oriunda da Europa, branca e com boa condição de vida.

Priscila no Museu Botero, em Bogotá, na Colômbia

Priscilla Geremias no Museu Boreto, em Bogotá, na Colômbia (Foto: arquivo pessoal)

Priscilla contou ao Alma Preta que enfrentou lá os mesmos desafios de ser jovem negra no Brasil. “A mulher negra brasileira carrega o estereótipo da mulata que samba, dança funk, é sensual e beija todo mundo. Quando eu falava que era brasileira, o tratamento já mudava e era quase como uma atração”, explica.

Ela explicou que o racismo lá não era explícito, mas velado, como os olhares estranhos, comuns em “lojas que você entra e as pessoas te olham como se você não pudesse comprar”, e as explicações que as pessoas faziam suas colegas de casa colombianas, e também negras, darem sobre o que elas estavam fazendo na capital – “muitas vezes, elas tinham de provar que estavam ali para estudar e não para se prostituir”.

Na universidade, a jornalista não presenciou nenhuma discussão sobre questão racial. Contudo, temas como violência, drogas e tráfico apareceram na disciplina “problemas colombianos” – mas sem qualquer perspectiva racial.

Priscilla acha que há no Brasil mais oportunidades para pessoas negras se conscientizarem sobre o racismo e se ajudarem por causa do debate mais abrangente. “A gente cria uma roda de apoio. Existem grupos de pessoas negras que podem me apoiar para buscar oportunidades. Lá, eu não conseguiu esse contato”.

“Eu me descobri mulher negra na universidade. Dois anos depois fiz intercâmbio, passei a me ver de outra forma e passei a saber como os [cidadãos] de fora me veem como mulher negra e brasileira. Por isso, carreguei mais a minha história, refleti sobre o lugar de onde vim e comecei a ponderar que tipo de beleza eu tinha, o que eu achava bonito e o porquê.”

Priscilla afirma que se sente privilegiada por ter conseguido fazer intercâmbio. Ela conseguiu juntar dinheiro para somar ao valor da bolsa de estudos que a faculdade concede, e ela entende que isso não está ao alcance de todos. “Por mais que tenha conseguido a bolsa, não é um dinheiro suficiente para arcar com todos os custos de uma viagem desse porte. Eu fazia estágio antes de ir e tinha a ajuda dos meus pais para tudo. Sabemos que não são todas as pessoas que podem fazer isso.” Em outubro, Priscilla irá à África do Sul estudar inglês com um outro olhar sobre ser negra.

O jornalista Jeferson Batista contou ao Alma Preta que sua experiência foi boa e não sofreu nenhum tipo de racismo ou preconceito enquanto esteve fora. Ele foi a Portugal em 2015 e estudou na Universidade de Lisboa, onde pôde conviver com algumas pessoas negras do continente africano e uma brasileira que vinha de outra universidade brasileira, que também estavam fazendo intercâmbio. Segundo ele, algumas pessoas do continente africano relataram situação de racismo em restaurantes. “Ser negro é difícil em qualquer lugar do mundo e não seria diferente em Portugal”, afirma.

Apesar da experiência pessoal boa em Portugal, em viagens por alguns países da Europa, de maioria branca, ele percebeu olhares estranhos e reações diferentes quando entrava em um trem, ônibus ou em qualquer outro lugar público. “Na época não dei muita atenção, mas hoje vejo que sofri algum tipo de racismo ali ou xenofobia… Não sei”.

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Jeferson Batista em Amsterdão (Foto: arquivo pessoal)

Jeferson concorda que poucos afrodescendentes fazem intercâmbio. “Mas isso é pelo fato de que poucas pessoas pretas ou pardas estão na universidade. Acho que isso já mudou um pouco e pode melhorar ainda mais, com [programas como] Prouni, Sisu e as cotas. Com mais negros na universidade, acho que teremos mais pessoas negras fazendo intercâmbio, não é?”

Com toda luta para conseguir fazer intercâmbio, Jeferson sente-se privilegiado por ser negro e pelo contexto da educação brasileira. “Quando você olha pro ensino superior, parte muito pequena da população consegue alcançar. Para mim, estar na universidade é um privilégio. Essa ideia se estende para o intercâmbio”.

Iacy Correia está na França desde setembro de 2017, fazendo mestrado em comunicação e territórios na Universidade Paul Sabatier, em Toulouse. De pele retinta, ela explica que a maioria das pessoas pensa que ela é de algum país africano. “Existe um estereótipo de que brasileiros são negros mestiços e de pele clara. Quando descobrem que eu sou brasileira, o tratamento muda, entra o estereótipo ‘da mulher fácil’ e alguns demonstram ter intimidade que não existe”.

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Iacy Correia na França (Foto: arquivo pessoal)

Sobre o racismo, ela afirma que raça não é um assunto abordado em nenhuma esfera no país, mas é um problema social que existe naquela sociedade também. “É bem difícil. Na verdade, porque tem aquela questão de existir racismo na França, mas lá não fala sobre isso. Às vezes acontece algo e você não tem como se defender, pois você não conseguiu identificar aquilo.” Outra questão é que em uma sala de 17 alunos, ela é a única negra. Iacy explica que não é seguida em lojas ou olhada de modo diferente em muitos lugares, mas presencia isso com pessoas muçulmanas. Ela identifica o olhar que é similar ao que recebia no Brasil: as pessoas dessa religião recebem e sofrem xenofobia por parte de muitos franceses.

Com todas as questões, Iacy gosta de estar estudando fora. Ela é a primeira da família a fazer intercâmbio para aprender uma língua estrangeira e para fins acadêmicos, como o atual na França. O primeiro ela fez em Dublin, em 2012, para estudar inglês. O objetivo era turbinar a carreira após ter perdido oportunidades de emprego para pessoas que não tinham tanto conhecimento prático, mas tinham intercâmbio no currículo.

“É bem gratificante estar aqui e é prazeroso porque eu estou realizando um sonho”. O segredo apontado por ela é o planejamento. Quando decidiu ir para Dublin, ela procurou uma agência dois anos antes, de acordo com suas condições. Segundo ela, o planejamento foi essencial.

Ela também considera-se privilegiada por fazer mestrado fora do Brasil. Segundo a jovem, ela é menos privilegiada do que pessoas brancas, mas mais privilegiada do que a maioria das pessoas negras. “Eu vim de uma família financeira e psicologicamente estruturada. Isso me deu condições para realizar qualquer coisa, por mais difícil que seja.” Ela afirma que nunca precisou destinar o dinheiro para ajudar nas contas de casa e frisa esse privilégio. “É muito triste, porque percebo o quanto ainda faltam muitas coisas para as pessoas negras alcançarem oportunidades como essa. Eu sei o quanto é desigual”.

Patrícia Carvalho recém ingressou em um mestrado de literaturas africanas na Unicamp e falou ao Alma Preta do seu sonho de fazer intercâmbio. “Seria uma grande realização para mim, tanto pessoal como profissionalmente. Conhecer novas culturas e aprender efetivamente uma língua estrangeira seria um grande sonho, com toda certeza”. Ela afirma que está se dedicando na pesquisa para conseguir vaga em uma universidade angolana. “O país onde eu gostaria de fazer o intercâmbio é Angola, principalmente por causa da minha pesquisa, que é um comparativo entre a obra do Ondkaji e da escritora NoViolet.”

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Patrícia Carvalho (Foto: arquivo pessoal)

Ela acredita ser merecedora por todo esforço, mas reconhece que estar nesse ambiente acadêmico é ainda é um privilégio de poucos. “Sei que possuo privilégios por estar inserida nesse espaço da universidade e que possibilita o acesso a essas oportunidades, porém a caminhada para chegar aqui foi árdua. Então, apesar de reconhecer [esse privilégio], eu me sinto merecedora caso consiga.”

 

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