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“É africano?”: brasileiros negros compartilham suas experiências raciais pelo mundo

Imigrantes negros tendem a receber uma identificação generalizada por conta do tom de pele; especialistas apontam apagamento identitário e falta de entendimento do Brasil como um país diverso racialmente 

Imagem mostra três rostos distintos de pessoas negras com fundo laranja e preto

Foto: Ilustração: I'sis Almeida / Alma Preta Jornalismo

28 de abril de 2022

Para brasileiros negros, que vivenciam inúmeras vulnerabilidades no país, ir para exterior, muitas vezes, é sinônimo de acesso à uma vida melhor. No entanto, a busca por diferentes perspectivas pode representar também novas experiências raciais pelo mundo, de acordo com as diferentes culturas de cada nacionalidade. 

Em recente entrevista à Alma Preta Jornalismo, o cantor e ator Seu Jorge desabafou sobre um episódio que passou nos anos 2000, quando esteve na Itália para gravar uma produção audiovisual. Ele relata que, mesmo se identificando enquanto brasileiro, por ser um negro retinto, as pessoas prontamente o associavam à uma nacionalidade africana.

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Mesmo com o passar dos anos e a intensificação do debate racial pelo mundo, este tipo de identificação pré-determinada por meio da cor da pele segue. Lucas Marques, de 28 anos, em um intervalo do almoço, quando ainda trabalhava no Rio de Janeiro, decidiu ir à uma agência de intercâmbio para entender novas possibilidades de trabalho. Por não falar inglês, o destino sugerido a ele foi Dublin, na Irlanda, onde está desde 2017.

Marques, hoje, é dono da página Pobre na Irlanda, que conta com mais de 100 mil seguidores. Com humor, ele relata sua vivência enquanto pessoa negra e brasileira fora do país. Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, o influencer afirma que sofreu um choque cultural com a chegada, mas para a sua surpresa, em comparativo com a vivência carioca, se sentiu menos discriminado.

“É algo que de vez em quando me pego falando lá na página. Da surpresa que tive de como a discriminação racial, implícita ou explícita, é muito menor aqui. No Rio, além dos diversos apelidos que tive, por ser um negro retinto, eram constantes as puxadas de bolsa para o lado quando me viam ou abordagens policiais por eu ser, só por ser, um ‘corpo suspeito’. Estava anestesiado já, sabe? Aqui, ninguém me olhou de cima a baixo ou me seguiu nos corredores de loja”, explica.

No entanto, ao ser questionado sobre como é identificado em relação ao seu tom de pele, a história de Lucas se assemelha à relatada por Seu Jorge. “Não é uma ou duas vezes, quase sempre há essa assimilação básica do meu tom de pele à minha origem. Para eles, eu não sou dado como brasileiro, jamais. Primeiro, que já chegam falando francês comigo, uma língua muito usada pelos países que foram colonizados aqui fora. Outra, é a tentativa de descobrir de qual país de África eu sou. Engraçado, é que em primeiro, segundo, terceiro e demais graus, que eu saiba, não tenho parentes, mas meu fenótipo, para eles, é sinônimo dessa determinação”, conta. 

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 Dono da página ‘Pobre na Irlanda’, com mais de 100 mil seguidores, Lucas Marques afirma que há uma identificação rasa sobre e generalizada sobre seu país de origem. Entre as práticas, nativos e turistas de países vizinhos, em sua maioria, falam francês ao vê-lo |(Imagem: Reprodução/Instagram) 

O influencer afirma que ainda há um entendimento de que ele, aos olhos das pessoas de outras nacionalidades, é tido como “muito preto para ser do Brasil”. O jovem afirma que a situação se repete até em encontros casuais, ao conhecer pessoas novas, possíveis pretendentes ou novos amigos. 

“Já aceitei de que não há uma preocupação em entender a história, a diversidade vinda da diáspora, e vontade deles em pesquisar sobre nós e a vastidão de possíveis origens, sabe? Acredito que o pensamento colonizador, mesmo diferente de épocas atrás, ainda segue como norte para nossa identificação. Todas as vezes, em conversas, vejo que é preciso pontuar que o Brasil vai além do Rio e São Paulo e que, sobre a negritude, é preciso falar sobre colorismo”, finaliza.

Já o diretor de criação, Willian Alecrim Zumba, 26, também negro e retinto, em viagem por intercâmbio a Toronto, no Canadá, em 2019, encontrou uma comunidade brasileira grande, o que possibilitou uma inclusão maior no ambiente acadêmico e de trabalho. Entretanto, Willian conta que, em rodas de conversa que não fossem com brasileiros, era perceptível os estereótipos que as pessoas nativas utilizavam para lerem suas ações e suas ideias expostas. 

“Era bem frustrante ser reduzido a um personagem fabricado do brasileiro, negro e retinto. Uma hora, eu deveria estar acostumado com animais e insetos, por vim do Brasil, outra hora era inferiorizado pela barreira da língua, ou a hipersexualização, da pessoa brasileira ser vista como mais ‘aberta’ e ‘hospitaleira’, o que se era somado com o fato do tom da pele, que muitas vezes, sabemos, nos definem como máquinas sexuais. Enfim, um ruído constante”, relata. 

Também exposto à hipersexualização, o modelo pernambucano Fernando Moura, 25, reitera que as práticas de discriminação explicítas, fora do país, são menores do que as vividas no Brasil. Entretanto, ele aponta certo desconforto no ambiente profissional.

“Na minha vivência, ainda não aconteceu de me questionarem enquanto nacionalidade ou duvidarem de onde eu sou, por sempre ser uma informação dada em uma conversa inicial e ali acaba o assunto sobre. Mas o que é fato e constante é a percepção deles de que todos os negros, independente da nacionalidade e especificidades, são parecidos. Todos os trabalhos aqui, que eu pego, eles sempre apresentam uma referência de homem negro famoso e sempre me associam a um. Em um trabalho recente, eles aplicaram barba no meu rosto por, simplesmente, me acharem parecido com Michael B. Jordan. Nada a ver, sabe?”, reflete. 

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O modelo pernambucano, Fernando Moura, 25, conta que não sofreu racismo ou xenofobia no país que atualmente trabalha, a Coreia do Sul. No entanto, explica que os contratantes sempre o assemelha à outros homens negros famosos apenas pelo tom da pele ou fenótipos (Imagem: Reprodução/Instagram)

Leia também: Como é ser um intercambista negro?

Colorismo

 Victor Duarte, 28, é intercambista em Budapeste, na Hungria. Sitiado em uma região conhecida pelo conservadorismo e por uma maioria branca, ele conta que episódios de racismo são mais velados, mas que não deixa de presenciar olhares discriminatórios, sendo visto, por vezes, como uma “atração”.

“Aqui, o racismo misturado com xenofobia é muito difícil de discernir, principalmente para mim que não sou retinto. Além da hipersexualização, que é fato e é como a imagem do Brasil é tida aqui fora, o que incomoda bastante, principalmente as mulheres negras brasileiras, eu tenho que lidar, por vezes, com uma não identificação enquanto pessoa negra. Aqui, as pessoas não me leem como negro por terem como a pele retinta como característica que nos definem”, explica.

Pensamento é partilhado pelo mestre em literatura, Davidson Santos, 30, que reafirma a dificuldade de identificação do que é racismo e o que pode ser xenofobia. Ele reitera que corpos negros e brasileiros são vistos como “mais abertos” a se relacionarem o que, em diversas situações, podem ser lidos como pessoas mais dispostas a atenderem os desejos dos nativos. 

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Atualmente morando em Budapeste, na Hungria, o intercambista Victor Duarte, relata que, para pessoas com tom de pele mais claras vivendo fora do país, é difícil de discernir atos de discriminação racial de xenofobia | (Imagem: Reprodução/Instagram)

Como episódio marcante, ele relembra de um intercâmbio para Portugal, em 2013, período em que investiu em uma nova formação para sua área. Além dos estereótipos associados aos brasileiros, como um todo, ao sexo, futebol e samba, uma fala fez com que ele refletisse mais.

“Tinha um professor dessas aulas que, além de exaltar um certo patriotismo português, baseado nas conquistas e até nos processos de colonização, sempre buscava inferiorizar nossos corpos, negros e brasileiros, que estavam em sala de aula e que ele tinha conhecimento disso. Uma das frases que me chocou e que me abriu os olhos sobre como nós éramos vistos, foi quando ele proferiu a frase ‘vocês são aquilo que a gente possibilitou que vocês construíssem’. Isso mexeu muito comigo”, desabafa. 

Apagamento

Segundo o internacionalista, Marcone Ribeiro, a identificação rasa vista nos relatos anteriores se dá por um apagamento histórico, da não compreensão de como o brasileiro se constitui, principalmente, a partir da ótica de construção de identidade racial. 

“Essa narrativa de que somos miscigenados, felizes e plurais é vendida ao exterior e as pessoas acabam não tendo a compreensão de que o país é diverso e que, quando entra na pauta de negritude e discussão racial, há também uma gama de diversidade. Quando eles se deparam com pessoas que atiçam no olhar essa visão negritude ‘África’, desassociam do Brasil”, explica. 

Para Marcone, a não compreensão de como o Brasil se constitui enquanto camadas raciais versa sobre uma falta de conhecimento. Em contrapartida, o especialista ressalta a importância de mais brasileiros negros se apropriarem de suas histórias e origens para lidarem com esse tipo de situação. Mesmo não sendo obrigatória e de exclusivo papel, o internacionalista propõe um processo de reeducação contrária ao que é posto pela mídia. 

“É preciso e urgente uma nova roupagem da discussão do que se é Brasil e suas camadas raciais dentro e fora do nosso país. Vejo como necessidade, de educação básica mesmo, introduzirmos o que se é colorismo, com intuito de fortalecer a nossa concepção própria de quem somos. Nós, infelizmente, não temos uma identidade consolidada, muito menos por sermos um país plural. O que vem de África? O que vem da Europa? O que a gente pode dissociar quando precisa falar? Nós não temos essa compreensão tanto para quem está dentro do Brasil, como para quem está fora”, pontua. 

A mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e pesquisadora das relações raciais e branquitude, Izabel Accioly, relata uma vivência dos tempos dedicados aos estudos no interior de São Paulo. Natural de Fortaleza, passou anos na instituição citada anteriormente, onde conviveu com diversos estudantes de África e relembra um caso que atinou para reflexões enquanto colorismo e nacionalidade. 

“Lembro de uma situação em que a caixa perguntou se queria meu CPF na nota e uma mulher branca, vendo a situação, interveio  e me elogiou por ‘falar português muito bem’. Respondendo que era brasileira, ela prontamente respondeu que eu parecia com tais estudantes africanos que – deixavam – estudarem aqui, mesmo não sendo uma negra de pele retinta. Isso me trouxe diversas reflexões de como a cor da pele comunica que sou uma pessoa afrodiásporica”, conta.

Para Izabel, pessoas negras vivem em um processo comum desde a afrodiáspora. “É interessante que nos fortalecemos enquanto povo dentro dessa perspectiva de ligação com a nossa ancestralidade, mas, de certa forma, isso traz uma percepção sobre quem somos, sobre a nossa nacionalidade, muitas vezes, de modo secundarizado. Por isso, acredito que o racismo impede que essa percepção da nossa nacionalidade ocorra. É, sim, um tipo de prática de racismo, certamente. Sem dúvidas, há uma falta de embasamento sócio cultural quando isso se estabelece e de entendimento, até mesmo, histórico e isso precisa ser revisto”, defende.

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