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‘Não podemos avançar se evitarmos nosso passado’, diz embaixador da África do Sul sobre colonialismo

Para Vusi Mavimbela, é de suma importância a valorização da diáspora afro-brasileira, bem como o turismo entre os dois países e as relações de comércio

Imagem: Reprodução/Embassy Brasília

Foto: Imagem: Reprodução/Embassy Brasília

9 de dezembro de 2021

“Decidi, durante meu mandato, ter como projeto prioritário o renascimento, desenvolvimento e fortalecimento das relações entre a África do Sul e a diáspora afro-brasileira”, diz o Embaixador Sul-Africano Vusi Mavimbela, em entrevista exclusiva à Alma Preta Jornalismo

De acordo com ele, a África do Sul é um país muito consciente sobre a composição racial do Brasil e a respeito da diáspora africana, boa parte concentrada em Salvador (BA). Vusi relembra que a União Africana (UA) declarou a década de 2021-2031 o período voltado às raízes, uma decisão que foi informada após uma avaliação de que a temática constitui uma importante potência econômica, social, política e cultural.

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Segundo o embaixador da África do Sul, o turismo é com certeza um ponto central da indústria de seu país, sendo reconhecido como uma prioridade nacional. Mavimbela ressalta que, a partir deste setor, o objetivo é estimular o crescimento econômico e a transformação da sociedade sul-africana, aspecto que foi impactado pela pandemia do novo coronavírus. Nesta conversa, ele explica sobre sua percepção política e também ressalta a importância de homenagear e manter viva a história de seu país. Confira na íntegra:

Alma Preta Jornalismo (APJ): Atualmente não há voos diretos entre o Brasil e a África do Sul, o que impede a conexão de pessoas dos dois países. Qual a perspectiva de uma empresa retomar a rota GRU-JNB em breve? Quais são as expectativas sobre as futuras chegadas do Brasil à África do Sul no cenário pós-pandêmico?

Vusi Mavimbela (VM): Turismo é com certeza um ponto central da indústria da África do Sul e tem sido reconhecida como uma prioridade nacional, realizando um trabalho intensivo com potencial de estimular o crescimento econômico e a transformação da sociedade sul-africana.

Antes da pandemia, o Brasil era um dos cinco principais mercados de turismo para a África do Sul, que cresceu substancialmente desde 2016. Isso certamente não teria acontecido sem os voos diários da South African Airways e da Latam, e com certeza do trabalho muito ativo e de promoção feito pela nossa agência de turismo em São Paulo (South African Tourism), assim como as nossas missões diplomáticas no Brasil.

A suspensão dos voos diretos entre Joanesburgo e São Paulo, como um resultado dos lockdowns da pandemia, afetaram sem dúvidas as relações entre pessoas dos dois países. Além disso, esses voos não conectavam apenas o sul do continente africano ao Brasil, mas ao resto da América do Sul.

Estamos em contato direto com as duas companhias aéreas para que eles retomem os voos diretos assim que possível. South African Airways está focada nos voos regionais, por todo o continente africano. A Latam ainda não estabeleceu uma data para a volta dos voos, mas esperamos que isso aconteça no período de réveillon.

Eu também gostaria de lembrar que brasileiros não precisam de visto para entrar na África do Sul em estadias menores de 90 dias. A África do Sul está aberta para o Brasil, tanto para viajantes de negócios quanto para lazer, e esperamos que os visitantes brasileiros continuem a visitar o país.

Nós acreditamos que mesmo sem um voo direto, a África do Sul ainda é um destino atrativo para os viajantes brasileiros. É uma experiência com ótimo custo benefício, excelente gastronomia, vinhos incríveis, praias maravilhosas, grandes viagens de aventura, opções infinitas de safáris, experiência única de ver pássaros e uma grande gama de outras opções turísticas. Temos incontáveis localidades de herança cultural atraentes.

APJ: De 2003 a 2015, o Brasil adotou uma política externa com foco nas relações Sul-Sul. A partir de 2016 e, principalmente, quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente, o governo brasileiro se voltou para o norte global, priorizando as relações com os Estados Unidos. Quais as reais perspectivas de estreitamento dos laços entre a África do Sul e o atual governo brasileiro?

VM: O Brasil e a África do Sul continuam a ter relações cordiais em todos os níveis e houve uma série de compromissos de alto nível sob a atual administração. Os presidentes Cyril Ramaphosa e Jair Bolsonaro já se encontraram em várias ocasiões desde que assumiram o cargo.

É claro que muitas das nossas atividades e trocas de visitas têm sido dificultadas pela pandemia. No entanto, as relações bilaterais continuam a crescer e estamos focados em aumentar o comércio e o investimento, e o contato interpessoal através do turismo, formação e intercâmbios culturais.

“Estamos também encorajando ativamente mais empresas brasileiras a investir na África do Sul e também para que mais empresas sul-africanas se estabeleçam no Brasil”.

Também queremos garantir que mais itens da África do Sul sejam exportados para o Brasil, em apoio à industrialização da África do Sul. Os setores chave para a cooperação são a agricultura, a defesa, a infraestrutura e a energia (biocombustíveis e etanol). Em geral, as relações continuam numa trajetória ascendente e existe um grande potencial para uma cooperação mais profunda e alargada entre os dois países.

APJ: Mineração e turismo são algumas das principais indústrias da África do Sul. Mas nos dois casos, as empresas, em sua maioria, estão sob propriedade de brancos. Quais são as políticas governamentais sendo postas em prática para diversificar e capacitar a economia para negros? Quais são as futuras diretrizes a esse respeito?

VM:  A triste realidade é que depois de 27 anos de democracia, as desigualdades estruturais e sociais ainda existem na África do Sul. Embora a desigualdade tenha sido reconhecida há tempos como um importante desafio para reparação, muitas políticas que objetivam enfrentá-la foram implantadas, mas tiveram sucesso limitado, a desigualdade ainda persiste.

Recentemente, as políticas governamentais voltadas para essas desigualdades históricas passaram a se concentrar em setores específicos da sociedade para atingir melhores resultados. As intervenções que fazem parte do Plano da África do Sul para Reconstrução e Recuperação Econômica – 2020 South African Economic Reconstruction and Recovery Plan (ERRP), está baseado nos objetivos de promover a participação de pessoas negras, mulheres, jovens, e pessoas com deficiência, em todos níveis econômicos.

A Carta da Mineração exige dos detentores do direito de mineração na África do Sul, de empoderar os grupos historicamente desfavorecidos no país, garantindo que eles tenham o mínimo de participação acionária na companhia que tem os direitos da mina. A terceira edição da Carta da Mineração, que virou legislação em 2018, garante que 30% das ações tenham de passar para pessoas de grupos historicamente desfavorecidos.

A agricultura é um setor em particular em que a transformação é central para mudar as desigualdades históricas e criar grande inclusão. O governo está finalizando um Plano Mestre para o Setor da Agricultura (Agriculture and Agro-processing Sector Master Plan), que adota uma abordagem de joint venture (junta duas ou mais empresas) entre os parceiros sociais que o sustentam, destacando o papel das parcerias público-privadas na agricultura para promover a transformação e garantir o crescimento sustentável.

Conectado a isso está a questão da terra, um ponto sensível na África do Sul devido à remoção forçada de pessoas negras das suas terras pelo apartheid. O governo agora está focado em fornecer acesso equitativo à terra por meio, por exemplo, da “Uma casa, um hectare” (The One Household, One Hectare) iniciativa que tem o objetivo de promover às pessoas sem terra na África do Sul o acesso à terra e a promoção para atingir a transformação agrária. Outros programas similares existem nos demais setores da economia.

APJ: O racismo ainda é um problema na África do Sul atualmente?

VM: O racismo é com certeza um problema global, em todos os aspectos da vida, inclusive no esporte, infelizmente. Os negros africanos são a maioria da população do país (79,3%) e também constituem a maioria das pessoas pobres na África do Sul. Portanto, é provável que haja africanos negros em empregos de salário mínimo, inclusive na indústria de serviços.

Para completar, o ar cosmopolita de cidades da África do Sul, particularmente Joanesburgo e Cidade do Cabo, tem atraído muitos imigrantes de outros países do continente africano que são empregados nas áreas de atendimento e serviços da indústria. Eles vêm principalmente de lugares como Zimbábue, Malawi, República Democrática do Congo, Etiópia e países do Oeste da África.

Isso também não é algo único na África do Sul. Em algumas partes da Europa Ocidental e nos Estados Unidos é comum achar imigrantes, a maioria da Europa Oriental, do México e da África trabalhando em serviços da indústria. Esses são imigrantes que estão procurando melhores condições de vida, que muitas vezes aceitam trabalhos na indústria do turismo.

“O que é central para a África do Sul é a necessidade de acelerar o ritmo das mudanças estruturais econômicas. Isso também inclui o nosso setor educacional, onde nós precisamos aumentar o número de estudantes negros graduados nas universidades, além de dar suporte para que eles tenham ferramentas e habilidades necessárias para entrar no mercado de trabalho”.

educacçao africaCréditos: Embassy of South Africa

APJ: Você fez parte de uma geração que lutou contra o Apartheid. Você pode compartilhar algumas de suas memórias daquela época de luta? Como o movimento foi relevante para derrubar o regime opressor?

VM: Uma das memórias mais vivas que tenho é o bombardeio do treinamento político e militar da ANC (African National Congress) em Novo Catengue, em Angola, no dia 14 de Março de 1979, pelas forças aéreas da África do Sul. Cerca de 400 bombas foram lançadas no campo que recebia cerca de 500 combatentes e 15 instrutores cubanos, que estavam conduzindo treinamento militar.

Devido ao serviço de inteligência e as informações recebidas algumas semanas antes, nós antecipamos o ataque aéreo, tomamos as precauções e trocamos o lugar planejado e deixamos o campo durante o dia. O ataque aéreo destruiu todo o campo e todos os nossos pertences, mas as perdas em vida se resumiram a dois combatentes da ANC e um instrutor cubano.

As Defesas de Bomba de Canberra da África do Sul também foram atingidas por uma equipe antiaérea do nosso campo, causando uma batida no sul de Angola. Esse incidente aconteceu dois anos depois de todos os combatentes treinados, inclusive eu, terem sido envenenados por um agente infiltrado do Apartheid, que tinha o objetivo de matar quantos combatentes fosse possível. O governo do Apartheid era poderoso e tinha muitos recursos e, por isso, eles eram capazes de realizar diversos ataques similares em diferentes regiões do sul da África, além disso, eles podiam perseguir e eliminar ativistas por meio de assassinatos. Nós tínhamos que estar ligados o tempo todo.

“Um dos dias mais importantes na minha vida foi em 11 de Fevereiro de 1990, quando Nelson Mandela foi libertado da Prisão Victor Verster. Naquele momento, eu estava exilado na Zâmbia, na companhia de alguns ativistas. Nosso grupo ligou uma televisão do lado de fora, embaixo de uma árvore, para assistir esse momento histórico”.

Nós estávamos sentados e angustiados, e finalmente, depois de uma grande jornada, Nelson Mandela, acompanhado da sua esposa Winnie Mandela, caminhou livre. Lágrimas escorreram sobre o rosto de todos nós, chocados por ver o rosto de alguém que não víamos há 27 anos.

Estátua de Nelson Mandela | Créditos: Embassy of South AfricaEstátua de Nelson Mandela | Créditos: Embassy of South Africa

Diante de nós em 1990, estava um senhor de 71 anos, gentil, com o cabelo grisalho, sem barba e muito mais magro. O governo do apartheid teve sucesso em garantir que apenas algumas pessoas pudessem ver ou ouvir Mandela durante o seu período na prisão, numa tentativa de diminuir o apoio e sua reputação. De fato, o contrário ocorreu, sua invisibilidade ajudou a elevar seu status como um ícone internacional e o nome mais reconhecido na luta contra o apartheid. Logo após a libertação de Mandela, retornei para a África do Sul, depois de 14 anos no exílio.

APJ: O Museu do Apartheid em Joanesburgo, na África do Sul, retrata essa parte da história do país em detalhes. O Brasil, por outro lado, não tem um museu sobre escravidão. Pelo contrário, tem estátuas que homenageiam figuras escravocratas. Como é importante manter memórias dos erros do passado?

VM: O ex-presidente Thabo Mbeki disse em 1988: “A menos que sejamos capazes de responder à pergunta, quem nós fomos, não seremos capazes de responder à pergunta, o que nós seremos?”. Ele destaca assim que o passado e os aspectos significativos da história são essenciais para compreender o presente e para definir o nosso futuro.

O colonialismo, o apartheid e o movimento de libertação fazem parte da composição genética de todos sul-africanos, define de onde viemos, quem somos e para onde vamos. Simplesmente não podemos avançar se não compreendermos ou não abordarmos o nosso passado, ou pior ainda, se o evitarmos.

Laços no teto do Museu do Apartheid | Créditos: Embassy of South AfricaLaços no teto do Museu do Apartheid | Créditos: Embassy of South Africa

A preservação da nossa história é um recurso especial para lidar com as percepções conflituosas na memória social da nossa nação, para proteger os direitos das pessoas e para promover uma identidade nacional. Lugares como o Museu do Apartheid constituem uma rica e inestimável fonte de informação e conhecimento sobre todo o povo da África do Sul durante esse passado terrível. Mais do que contar uma história sobre opressão, os registros oficiais também revelam a resistência do povo ao domínio colonial e às administrações do apartheid.

Eles documentam todos aqueles aspectos das experiências da nação que haviam sido negligenciados, particularmente dos membros da sociedade que haviam sido marginalizados na epoca do apartheid e que, consequentemente, sofrem desvantagens estruturais. Estas experiências correm o risco de ser esquecidas, a menos que sejam preservadas, protegidas e partilhadas publicamente.

Os jovens de hoje são os líderes de amanhã e devem ser educados para apreciar plenamente a importância de sustentar a democracia da África do Sul, preservando os os valores e princípios constitucionais, porque foram feitos muitos sacrifícios para os alcançar. Nas palavras do filósofo e poeta espanhol, George Santayana: “Aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo.”

Leia também: ‘Ômicron: variante evidencia desigualdade vacinal no continente africano’

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