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O que restou da relação Brasil e África são resquícios da aproximação de governos anteriores, avaliam especialistas

Segundo professores de relações internacionais, ligação com o continente africano foi se enfraquecendo a partir do governo da presidente Dilma (PT), o que foi aprofundado no mandato de Bolsonaro (PL)

Foto ilustra texto sobre relações entre Brasil e Africa. A imagem mostra uma sala de conferência cheia de pessoas.

Foto: Imagem: Pixabay

21 de janeiro de 2022

Com um histórico de uma maior aproximação em governos passados, nos últimos anos e sobretudo durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro (PL), as relações entre Brasil e África não tiveram novos avanços diplomáticos. Em 2019, havia um temor de que essas relações diminuíssem e ficassem mais afastadas diante de uma política externa que não indicava alinhamento com uma agenda Sul-Sul.

Na posse de Bolsonaro nesse mesmo ano, notou-se os poucos representantes africanos presentes na cerimônia, o que já indicava o afastamento do continente nas relações internacionais com o governo. Segundo Alexandre dos Santos, professor de África no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), as relações diplomáticas entre o Brasil e o continente africano se sobressaíram a um patamar nunca visto antes na história durante o governo Lula (PT) e começaram a diminuir um pouco no governo Dilma, caindo durante a posse de Temer e mais ainda no atual governo.

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“A gente se distanciou muito do continente, porque não temos nenhum tipo de alinhamento ideológico, o que foi imposto pelo governo Bolsonaro e pelo Ernesto Araújo quando estava à frente do Itamaraty. Então, muito ao contrário dessa aproximação, embaixadas no continente africano foram fechadas”, pontua o professor.

Em documento disponibilizado pelo Ministério das Relações Exteriores sobre repartições consulares do Brasil no mundo e atualizado em 27 de julho do ano passado, são identificadas 34 embaixadas brasileiras na África, considerando os países que efetivamente possuem essas representações diplomáticas em seus territórios.

As embaixadas brasileiras de Freetown (Serra Leoa) e Monróvia (Libéria) foram fechadas em 2020 e estão sendo exercidas cumulativamente pela unidade na cidade de Acra, em Gana. Na época, Bolsonaro justificou o fechamento por motivos de economia e que não representava rompimento das relações com os países.

De acordo com Alexandre dos Santos, o que se tem hoje em termos de relações entre as duas regiões são projetos costurados em governos anteriores que valorizaram o aumento dessa aproximação.

“Do Michel Temer pra cá, a nossa ligação com o continente africano ainda são os resquícios de projetos que foram colocados em andamento pelo presidente Lula e que a presidente Dilma ainda conseguiu manter. Depois, os presidentes Michel Temer e Bolsonaro deram pouca atenção. Então, essas relações que foram costuradas antes ainda continuam, porque têm um mínimo de estrutura que as mantêm vivas, mas um novo tipo de relação a gente não está construindo com o continente africano”, explica o professor. 

Alexandre dos Santos também destaca que a única aproximação entre o governo atual e representantes africanos, até então, ocorreu durante a visita, no ano passado, do Sissoco Embaló, presidente da Guiné Bissau, mas que apenas mostrou um alinhamento ideológico entre os dois chefes de Estado.

Sissoco Embaló e Bolsonaro.

Sissoco Embaló e Bolsonaro | Crédito: Isac Nóbrega/ PR/ Agência Brasil

Relações atuais remetem à década de 1990

Com a posse de Bolsonaro a partir de 2019, surge a preocupação de que as relações internacionais entre Brasil e África se tornem algo similar aos anos de 1990, década em que o foco era a aproximação com países do norte global, excluindo relações com pátrias menos “populares”, como as pertencentes ao continente africano. É o que explica o professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Flávio Francisco, doutor em História Social.

“Há a sensação de que em muitos aspectos estamos voltando para a década de 1990, em que o presidente Fernando Collor dizia que era mais interessante para o Brasil ser o último entre os primeiros, ou seja, ter um papel de país periférico com uma relação com os países europeus e com os países do norte, como os Estados Unidos, do que ser o primeiro entre os últimos: o país protagonista, mas que traz como países estratégicos os pertencentes ao Caribe, à América Latina e África”, avalia.

O professor pontua que, a partir desta perspectiva, os esforços construídos para a aproximação com países da África Ocidental, desde a década de 1960, mais uma vez, podem perder espaço na agenda internacional do Brasil. A aproximação com o continente africano, que surge em um momento pós-guerra (Segunda Guerra Mundial) e se fortalece com o processo de descolonização dos povos, dá ao Brasil uma chance de planejar uma nova agenda para a África, retomando as relações com os países do continente.

Nos anos 1990, as restrições no orçamento internacional e a crise econômica levaram o Brasil a desenvolver um enfoque mais seletivo, voltado para a África do Sul. Informações do Itamaraty mostram que devido ao aumento da vulnerabilidade externa, o Brasil realizou ajustes a fim de se reacomodar em função dos meios disponíveis, mais limitados que no passado. O objetivo continuou a ser a diversificação das relações internacionais para conseguir um maior protagonismo na cena mundial.

A partir disso, o Brasil pôde ampliar seus horizontes para outros contextos, entre os quais estavam a América Latina, o Mercosul e as organizações multilaterais – particularmente as comerciais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC). No âmbito multilateral, houve fomento da cooperação com os países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral e também com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

As viagens presidenciais e as visitas de alto nível revelam a direção das opções, assim como os convênios e acordos assinados com África do Sul, Namíbia, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Nigéria.

Essa diminuição da ênfase na política africana e o avanço da política seletiva podem ser explicados a partir do programa de modernização liberal implementado por Fernando Collor de Mello (1990-1992), que visava reforçar os laços com o Primeiro Mundo e se voltar para a América Latina e o Mercosul.

Já com Itamar Franco, que sucedeu Collor em 1992, o neoliberalismo foi atenuado e houve uma tímida tentativa de retomada com a política africana, priorizando os países de língua portuguesa e a região da África Austral, com eixo na África do Sul.

Com o governo de Fernando Henrique Cardoso e sua diplomacia presidencialista, a visão de desenvolvimento foi substituída por uma ideia neoliberal que considerava a aproximação com o Terceiro Mundo obsoleta, segundo o artigo ‘O Brasil na África ou a África no Brasil? A construção da política africana pelo Itamaraty‘. De acordo com o texto, África não estava entre as prioridades do novo governo e apenas alguns países eram mencionados e recebiam algum tipo de importância.

“Se a gente pegar a história, ela é marcada por distanciamentos e duas fases de aproximação. Uma em 1963, até meados de 1985, e uma outra de 2003 até 2010, porque o próprio governo Dilma [Rousseff – PT] começa a desarticular a agenda também”, relembra Flávio Francisco.

Lula retoma relações com África, mas isso não dura muito tempo

Desde a chegada de Lula ao poder, em 2003, a política africana brasileira recuperou seu lugar. O presidente fez oito viagens ao continente africano e recebeu dezenas de visitas de alto nível. O objetivo era contribuir para a diversificação das relações exteriores do Brasil como parte de uma estratégia que procurava potencializar seu protagonismo internacional.

No início dos anos 2000, Flávio Francisco avalia o surgimento de um maior engajamento no governo Lula com os países do continente africano que, segundo ele, “era muito acima da média”. Ele explica que essa reaproximação envolve muitas esferas, como cooperação técnica, indo para além das relações comerciais.

“Há aumento no número de parceiros, mantendo aqueles que eram estratégicos, como Angola, Nigéria e África do Sul. Na gestão Lula, havia grande agenda do Brasil com a África, a fim de se projetar como uma potência média no sistema internacional. Ou uma potência do Sul global”, pondera.

E para se estabelecer nesse status de potência, o Brasil dependia de criar uma aproximação não somente com os países da América Latina, mas também com países do continente africano, segundo Flávio Francisco. “O Brasil procurava se projetar, mas essa projeção dependeria também da aproximação com países que não tinham individualmente grande força, mas quando se coloca todos juntos, a base de apoio se torna relevante. E o que acontece depois de 2010 é que todo esse processo vai se desarticulando”, avalia.

O doutor em História Social explica que Lula era o agente principal da diplomacia presidencial entre Brasil e África, com participação ativa na condução da agenda no continente. Entretanto, sua sucessora Dilma Rousseff não deu continuidade ao trabalho.

“E, a partir do momento em que já vai aparecendo no horizonte a crise econômica, momento em que é necessário fazer ajustes de cortes e reorganização da agenda econômica do Brasil durante o governo Dilma, começa-se a fechar algumas embaixadas no continente”, destaca.

Desmanche

A partir do recuo de Dilma, o processo de colaboração com África vai se desmanchando, de acordo com o doutor em História Social. Flávio relembra que isso se intensifica após Michel Temer (MDB) assumir o poder em 2016, levando tudo o que aconteceu até os dias de hoje.

“O atual ponto é de apenas manter relações comerciais, mas sem necessariamente ter um engajamento político. Aliás, é isso que, por exemplo, era o discurso do governo Temer, de que essa projeção no continente africano era uma projeção ideológica, política. E ela não tinha nenhum tipo de repercussão econômica para o Brasil”, relembra.

A política brasileira, comandada por Temer, entendia que o ideal era reduzir a relação do Brasil com África e colocar os países dentro de uma “normalidade”, segundo Flávio Francisco.

“Normalidade para eles era, basicamente, manter algumas cooperações, que já são históricas, alguns programas que já têm cerca de 30 anos, que envolvem intercâmbio com as forças armadas brasileiras. Cooperação técnica na área militar, na área da saúde, na área de educação, mas nada muito além disso”, explica.

Com Bolsonaro no poder, de acordo com Flávio Francisco, a diminuição nas relações entre África e Brasil se intensifica. Segundo o professor, a nomeação de Marcelo Crivella para a embaixada da África do Sul demonstra a visão bolsonarista sobre como os laços com o sul global serão tratados: ideologicamente.

“O descuido do governo Bolsonaro é com tudo. A indicação do Crivella para ocupar essa função de representar o Brasil na África do Sul indica muito isso: uma pessoa que não tem nenhum tipo de conhecimento ou expertise para mediar uma relação entre os sul-africanos e os brasileiros. Um dos poucos momentos em que a gente viu uma tentativa de engajamento de fato do Bolsonaro de exercer uma diplomacia presidencial com um país africano foi quando envolveu uma igreja evangélica”, salienta.

De acordo com Evan Bernardi, coordenador da Afrochamber (Câmara de Comércio Afro-Brasileira), atualmente, em termos comerciais, as relações com a África seguem intensas, apesar da pandemia de Covid-19 e das crises política e econômica que o Brasil atravessa desde 2015.

“A África é um Continente que sempre demanda muitos produtos do mundo todo, seja em serviços, matéria prima ou produtos manufaturados. É um continente em franca expansão, com diversos países com verdadeiras explosões econômicas. Historicamente, o Brasil contribui muito com o continente em setores como agricultura, na saúde, com a instalação da primeira fábrica de medicamentos de Moçambique, e em mineração, educação e infraestrutura também”, pontua.

De acordo com o representante da AfroChamber, o Brasil é e seguirá sendo grande parceiro econômico do continente africano, independentemente de idas e vindas políticas no Brasil e em países da África. “Seguimos com nossa agenda comercial bastante sólida e cada vez mais ampla. É evidente que o incentivo político por parte do governo é de grande valia, e é sempre importante contar com o apoio dos governos federais e locais no fomento das relações comerciais, mas a iniciativa privada tem seguido sua agenda de desenvolvimento econômico”, finaliza.

Leia também: ‘Não podemos avançar se evitarmos nosso passado’, diz embaixador da África do Sul sobre colonialismo

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