O Partido dos Panteras Negras ganha ares de mítico para alguns grupos do movimento negro e para setores da esquerda em todo o mundo. A organização viveu diferentes fases, tinha uma diversidade interna de visões políticas, e sofreu repressão ilegal do FBI, que somadas a erros estratégicos dos dirigentes, definiram o fechamento do partido. A reportagem conta com entrevista de Emory Douglas, Ministro da Cultura do grupo, e Raquel Barreto, primeira a se debruçar sobre o tema no doutorado no Brasil.
Texto / Pedro Borges
Imagem / Mosca Santana
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Em 15 de Outubro de 2017, o partido dos Panteras Negras atinge a marca de 51 anos de sua fundação. Apesar do fim do grupo datar de 1982, e os últimos anos dos Panteras terem sido de uma entidade com poucos seguidores, o legado e a influência de uma das principais manifestações políticas da comunidade negra no século XX permanecem.
Figuras como Huey P. Newton, Kathleen Cleaver, Bobby Seale, Ericka Huggins, Eldridge Cleaver e Fred Hampton compõem o imaginário do ativismo anti-racista em todo mundo.
O Alma Preta conversou com pesquisadores, ativistas e com o ex-Ministro da Cultura dos Panteras Negras, Emory Douglas, para entender quais foram as influências, fases, e singularidades que compõem a história do partido.
Raquel Barreto, a primeira pesquisadora a se debruçar sobre o tema no doutorado no Brasil, foi outra fonte importante. A doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que as pessoas dialogam com muita paixão sobre os Panteras Negras, que há em torno da organização ares míticos, e que é preciso compreender os diferentes momentos da entidade e a diversidade política do grupo.
As influências
A década de 1960 viu as nações do chamado “terceiro mundo” se rebelarem. A Guerra Fria colocou nos lados opostos os modelos econômicos capitalista, representado pelos Estados Unidos da América (EUA) e a Europa Ocidental, e o socialismo, figurado pela antiga União Soviética (URSS), China, e na América Latina, por Cuba. O tensionamento entre as propostas políticas capitalistas e socialistas estimulou o crescimento de organizações de cunho marxista em todas as partes do mundo.
Algumas das experiências políticas desse período histórico vão compor o imaginário dos Panteras Negras. Entre elas, destaque para a Revolução Cubana, de 1959, coordenada por Che Guevara e Fidel Castro, e para os movimentos que lutavam pelo fim do domínio europeu no continente africano. Franz Fanon, psicanalista e um dos nomes que se mobilizou na luta contra o colonialismo francês e pela liberdade da Argélia, era outra grande referência para o partido.
A Guerra Fria propiciou um capítulo à parte para o fortalecimento do imaginário revolucionário dos Panteras Negras, a Guerra do Vietnã. A pequena nação asiática impunha derrotas bélicas à principal potência militar do mundo. A mensagem deixada pelos vietcongues de que “sim, é possível derrotar os EUA” vai motivar as ações políticas de parte de juventude negra americana da época.
A justificativa dos Estados Unidos para atacar o Vietnã e outras nações no mundo era e ainda é marcada pela ideia de levar a liberdade para fora do país. Essa premissa foi questionada pelos Panteras Negras, porque para eles, a comunidade negra era uma colônia dentro dos EUA e não gozava de liberdade e nem de direitos.
O pedido de mudanças da juventude nos anos 1960 também vai inflar os Panteras. A Guerra do Vietnã motivava o dilema “Não faça guerra, faça amor”, na mesma medida em que crescia a segunda onda do feminismo e os movimentos de contra-cultura se espalhavam pelo mundo, como o Hippie e o de estudantes na França.
“A imaginação histórica do momento, 1966, permitia sonhar em mudanças revolucionárias e transformadoras”, afirma Raquel Barreto.
Emory Douglas, ministro da Cultura dos Panteras Negras, que ingressou no Partido em 1967, era o responsável pelo jornal The Black Panther e pela identidade visual da organização. Em entrevista ao Alma Preta, o ex-integrante do Comitê Central dos Panteras Negras diz que a produção artística do movimento bebeu das mesmas fontes que construíram a linha política do grupo.
Seus desenhos e traços foram influenciados por aquilo que era produzido pelos artistas dos movimentos políticos de libertação na África, Ásia, América Latina e da Palestina, e também pelas produções da comunidade negra americana.
“Todas esses movimentos influenciaram meu trabalho. Mas no partido dos Panteras Negras, a arte era um reflexo da comunidade. Então o impacto e a influência também vinha da comunidade, ao ouvir os problemas deles, as dores, e os sofrimentos”, conta Emory Douglas.
No ambiente interno, os EUA viviam momentos de mudanças. Em 1964, o movimento pelos direitos civis norte-americanos, liderado por Martin Luther King Jr., havia conquistado para os cidadãos negros os mesmos direitos concedidos aos cidadãos brancos. Na prática, era o fim das Leis Jim Crow, legislação que permitia e garantia na constituição a segregação racial entre brancos e negros.
A conquista de Martin Luther King foi muito importante, sobretudo, para a população negra do Sul do país, de acordo com Flávio Thales, professor de Ciências Humanas e Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). Era ela quem mais sofria por conta das Leis Jim Crow, e quem mais se identifica com a promulgação da Lei dos Direitos Civis.
A historiadora Raquel Barreto acrescenta que naquela altura, a população negra no Sul do país era pequena, se comparada à do Norte, e que esta enfrentava uma outra modalidade de racismo.
No Norte, a violência sofrida pela comunidade negra era mais próxima daquilo que se chama hoje de racismo institucional. A legislação não permitia de maneira aberta a manifestação do racismo, mas a sociedade estruturada na segregação racial incentivava essa prática por parte das instituições.
Um exemplo era o mercado imobiliário. A classe média negra não conseguia acesso ao crédito e não tinha suporte financeiro para morar em bairros mais nobres, habitados por uma maioria de brancos. Apesar da impossibilidade de se viver em outras regiões das grandes cidades, Raquel Barreto conta que essa barreira fez a comunidade negra ter uma interação maior, apesar das diferenças de classe social.
Outro exemplo era a ação policial. Mesmo que sem a presença marcante de brancos sulistas com os trajes da Ku Klux Klan, a violência dos agentes de segurança direcionada sobretudo contra homens negros era uma realidade constante.
Se o racismo se configurava de uma maneira distinta na região Norte, cabia à comunidade negra pensar em diferentes estratégias de luta. “A ideia de não-violência não faz nenhum sentido porque a questão de brancos sulistas se articulando, de pegar um cara, enforcar o sujeito, não é mais comum em Los Angeles”, afirma Flávio Thales.
O pesquisador da UFABC acrescenta que o próprio Martin Luther King Jr., nas suas passagens pela grandes cidades do Norte, percebia que o método da não-violência dialogava mais com o modelo racial da região Sul do país.
Não à toa, a expectativa criada em torno da Lei dos Direitos Civis gerou frustração para a comunidade e os ativistas negros, em especial, da região Norte. As poucas mudanças sentidas por aqueles que continuavam a enfrentar a violência policial, vão fazer uma geração de jovens abandonar a estratégia da não violência.
Flávio utiliza como exemplo o ativista Stokely Charmichael, uma importante liderança da Coordenação do Comitê Estudantil de Não-Violência (SNCC), organização de juventude do movimento de Martin Luther King Jr.. Depois de ser preso inúmeras vezes, Charmichael decide por abandonar a não-violência como prática de enfrentamento ao racismo.
“Ele é uma, entre várias figuras da época, que vai fazer essa transição, que saem dessa cultura política da não-violência, que tinha como símbolo o Martin Luther King Jr., e vão começar a fazer um discurso, que é do Black Power”, conta Flávio. À Stokely Charmichael se atribui a criação do movimento Black Power.
O Black Power começou a nomear, a partir de 1966, uma série de grupos, movimentos e indivíduos, que apesar de díspares, possuíam características em comum. Esse movimento foi outro impulsor dos Panteras Negras. A estética do “Black is beautiful”, ou “O negro é lindo” em português alimentou um movimento que viria a ter uma série de organizações. A mais importante delas foram os Panteras Negras.
A cidade de Oakland, berço da entidade, também apresenta singularidades que ajudam a explicar o surgimento do partido. O município cresceu de maneira significativa durante a Segunda Guerra Mundial por conta da construção naval bélica norte-americana.
A queda da produção de navios e o fechamento de postos de trabalho após o término da Segunda Guerra Mundial deixaram a população negra em condição de vulnerabilidade social.
“Você tem uma juventude negra em sua grande maioria sem perspectiva. Esse contexto econômico e social é outro fator importante”, descreve Raquel Barreto.
Flávio Thales destaca outro ponto para o surgimento dos Panteras Negras e o seu repentino sucesso, as características pessoais e políticas dos dois fundadores do partido, Bobby Seale e Huey P. Newton. Para ele, ambos eram “prodígios”, “carismáticos”, com vasta formação intelectual e política.
Bobby Seale (esquerda) e Huey Newton (direita), os dois fundadores do Partido dos Panteras
Os movimentos internacionais de libertação no mundo e especial em África, a Guerra do Vietnã, a Revolução Cubana, os movimentos de juventude e contra-cultura em todo o planeta, a especificidade do racismo no norte do país, a decepção com a Lei dos Direitos Civis, o surgimento do movimento Black Power, a situação social e econômica da cidade de Oakland e o perfil de Bobby Seale e Huey P. Newton são os fatores que vão possibilitar o surgimento dos Panteras Negras.
É nesse contexto que Huey Newton e Bobby Seale, com 24 e 30 anos respectivamente, constroem o Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, em 15 de Outubro de 1966.
O nascimento e a construção do mito
A história do partido pode ser dividida em quatro partes. A primeira, que vai de 1966 até 1971, é o período de ouro da entidade, quando Bobby Seale, presidente do grupo de 1966 a 1974, diz que a organização chegou a ter, em 1970, 45 sedes em todo o país e 5 mil filiados. Esse momento é também posto como representante de toda a história do partido, deixando de lado as singularidades de cada umas das fases.
Na primeira parte, dois discursos se aproximam, de maneira geral, ao grupo. No início, há um alinhamento maior ao “Black Power”, visão que se aproximava do nacionalismo negro e que entendia a comunidade negra como uma colônia dentro dos EUA.
A partir de 1969, os Panteras Negras se veem mais próximos a uma visão específica do marxismo, que Raquel Barreto apresenta como o Terceiro Mundismo, fincado na teoria e prática não dos pensadores e ativistas europeus, mas dos movimentos de libertação no continente africano, asiático e latino-americano.
“Quando nos declaramos marxista-leninista queremos dizer que estudamos e compreendemos os princípios fundamentais do socialismo científico e que retomamos estes princípios com vista a adaptá-los à nossa situação. E, portanto não abordamos com espírito fechado as ideias novas e a informação. Ao mesmo tempo, sabemos que, para resolver os nossos problemas ideológicos específicos, temos de confiar nas nossas próprias cabeças”, disse Eldridge Cleaver no seu livro, “A ideologia do partido dos Panteras Negras”.
Essa é a visão compartilhada por Emory Douglas, Ministro da Cultura dos Panteras Negras. “A minha visão política é um reflexo da visão política do partido. Nós tínhamos uma perspectiva e um ritmo, uma plataforma e um formato que nos guiava. Era basicamente uma concepção socialista e marxista, mas com uma interpretação no contexto urbano”, relata Emory Douglas.
O partido também vai se sustentar a partir do centralismo democrático. Os temas e as estratégias eram debatidos até o esgotamento, mas depois de decididas, as propostas eram tomadas sem questionamentos. Essa metodologia ganha mais força conforme há maior centralidade na figura de Huey Newton.
A primeira ação política dos Panteras Negras foi a autodefesa contra a violência policial, entendida como uma manifestação do racismo. Para enfrentar esse problema, decidiram por acompanhar as patrulhas policiais com armas em mãos e uma cópia da legislação do Estado da Califórnia, que dava a permissão para o porte legal de armamentos. A ideia era evitar que qualquer abuso de autoridade fosse feito por parte dos agentes de segurança do Estado.
No documentário, “Panteras Negras: a Vanguarda da Revolução”, é possível ver o discurso de policiais, que se diziam “intimidados” com a postura dos ativistas da entidade.
O choque causado no Estado da Califórnia, na polícia e sociedade local, motivaram um deputado da época a propor a revogação do direito de porte de arma para todo e qualquer cidadão.
A votação no legislativo da Califórnia aconteceu, no dia 2 de Maio de 1967, e marcou o fim do porte legal de arma em vias públicas no estado. Mesmo que a medida tenha sido tomada menos de um ano depois da fundação da entidade, a imagem de jovens negros armados é uma das principais marcas em torno do imaginário do partido até os dias de hoje.
A aprovação, contudo, não se deu sem os Panteras Negras comparecem ao local, enfileirados, num grupo de 30 pessoas, com boinas, jaquetas de couro e armados. Os jovens chamaram a atenção de toda a imprensa do estado, e as imagens ganharam proporções nacionais.
Foi nesse momento que os Panteras Negras apresentaram ao público uma outra característica que os marcaria: a performance.
“Eles eram muito performáticos. A jaqueta e as boinas, e tinha a questão da performance, que era militarizada”, relata Flávio Thales.
Meses depois da revogação e da aparição pública do partido, um novo fato tomaria grandes proporções em nome dos Panteras Negras. Huey Newton, co-fundador do grupo, foi acusado de matar a tiros o policial John Frey, de 23 anos, durante uma blitz, em 28 de Outubro de 1967.
Panteras Negras acompanham armados a votação sobre o porte de armas na Californa.
Algemado no hospital a uma maca, enquanto sangrava e recebia tratamento médico, o Ministro da Defesa dos Panteras Negras, cargo mais importante da organização, foi preso depois de receber alta. Ele se transformou num catalisador, na medida em que a situação foi divulgada como mais um exemplo da violência policial e o partido transformou Huey Newton em preso político. Exemplo disso ocorreu em 1968, quando os Panteras Negras lançam a sua candidatura para o Congresso americano de maneira simbólica.
A campanha faz o partido crescer e receber uma série de novos filiados. Entre eles, uma figura importante, o já reconhecido autor do livro “Uma Alma no Exílio”, Eldridge Cleaver. Ele ingressa na organização e aumenta o diálogo dos Panteras Negras com grupos da esquerda e intelectualidade branca norte-americana.
A expansão em nível nacional exige uma modificação na estrutura do partido. Entre 1967 e 1968, Huey era Ministro da Defesa, Bobby Seale, o Presidente, e Eldridge Cleaver o Ministro da Informação. Existiam também os líderes regionais e locais dos Panteras Negras, que se reportavam à estrutura central.
No início de 1968, no dia 4 de Abril, outro fator intensifica a força da organização. Depois da juventude negra acompanhar a morte do líder radical Malcolm X, em 21 de Fevereiro de 1965, o assassinato de Martin Luther King Jr. causou comoção e revolta no país.
Mais do que assassinar um dos grandes líderes do Século XX, Martin Luther King Jr. representava o modelo de luta da não-violência. De acordo com os Panteras Negras da época, a sociedade norte-americana enterrou com Martin Luther King Jr. a possibilidade de dialogar e resolver o racismo e a violência contra a comunidade negra de modo pacífico.
O discurso de autodefesa dos Panteras Negras ganha mais reconhecimento e adeptos, o que aumenta a força da entidade.
É nesse contexto que Eldridge Cleaver e o jovem Bobby Hutton, de 17 anos, foram encurralados por agentes de segurança depois de uma operação policial em Oakland. Em menor número, Cleaver sugeriu que os dois tirassem toda a roupa e saíssem nus para que os policiais não desconfiassem que eles estivessem armados. Cleaver fez isso, mas o jovem ficou envergonhado, e tirou apenas a camiseta.
Bobby Hutton foi alvejado e assassinado pelos policiais, o que o transformou em mártir da causa e no primeiro ativista a morrer no conflito entre os Panteras Negras e a polícia, que gerou entre os anos de 1966 e 1970 a morte de pelo menos 15 policiais e 34 “Panteras”.
Após essa ação, em 28 de Novembro de 1968, Cleaver vai para Cuba e depois para a Argélia, para fugir da perseguição do Estado norte-americano. Lá, funda a seção internacional dos Panteras Negras.
Os olhares em torno do Partido haviam crescido. Ainda na primeira fase, e bem incipiente, os Panteras Negras passaram a despertar o olhar não só da polícia local. Depois de 1967, o partido passa a ser monitorado pelo FBI.
Repressão
Após a vitória do ex-governador da Califórnia, Richard Nixon, para o cargo de presidente dos Estados Unidos, em 1968, John Edgard Hoover, secretário da presidência, passou a investigar de maneira mais forte o partido e a agir para “neutralizar” os Panteras Negras.
No contexto da Guerra Fria, um grupo de jovens negros armados com posicionamentos críticos ao modelo econômico capitalista assustava. Hoover temia que os Panteras Negras se articulassem de maneira mais orgânica com setores da esquerda norte-americana e ganhassem o respaldo da juventude branca, o que faria o partido ganhar mais poder e influência.
Apesar da dificuldade em crer que uma organização, que atingiu no período máximo os 5 mil filiados, poderia derrubar o governo norte-americano, Raquel Barreto, doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista no tema, recorda que aquele momento histórico era propício para imaginar e lutar por mudanças radicais.
“Quem imaginaria que uma revolução socialista poderia acontecer em Cuba, pequeno país tão próximo aos EUA?”, conta Raquel.
Hoover utiliza de maneira secreta o Serviço de Contra-Inteligência (COINTELPRO), cujo principal objetivo passava a ser naquele momento “desmascarar, perturbar, desorientar, desacreditar ou, caso contrário, neutralizar” as atividades das organizações do Black Power. Por conta dessas ações, os Panteras Negras proíbem a entrada de novos membros na entidade em 1969, por conta da infiltração de agentes do FBI.
O principal alvo da COINTELPRO foram os Panteras Negras. Das 290 ações feitas pelo serviço secreto, 245 foram direcionadas ao partido. As táticas utilizadas foram as mais diversas, desde aumentar as disputas internas, que ganhariam corpo com a discordância entre Eldridge Cleaver e Huey Newton, pela ameaça e perseguição constante dos membros, pelo forjar de provas para o aprisionamento de líderes, e até a execução de integrantes do grupo. O serviço de contra-inteligência também estimulou a rivalidade entre os Panteras Negras e outras organizações do Black Power, fazendo com que essas entidades chegassem inclusive aos conflitos físicos.
Em 1969, um caso notório atingiu a organização. William O’Neal atuou de maneira infiltrada pelo FBI como guarda-costas do proeminente membro do Panteras Negras de Chicago, Fred Hampton, quem fez alianças estratégicas e muito temidas pelo serviço secreto americano, como aproximar grupos de imigrantes hispânicos e ativistas brancos de esquerda para perto do partido.
O cerco do FBI sobre Hampton chegou ao fim em 4 de dezembro de 1969. Após um forte discurso em uma igreja em Chicago, a polícia fez uma operação às quatro da manhã em sua casa. Entre 82 e 99 foram disparados, que resultaram na morte de Fred Hampton e Mark Clark, liderança do partido da cidade de Peoria, no Estado de Illinois. Como forma de recompensa, o FBI deu 300 dólares para William O’Neal, agente infiltrado do serviço de inteligência dos EUA, como bônus pelo assassinato de Fred.
Fred Hampton era um dos mais proeminentes líderes do partido.
Quatro dias depois da morte de Fred Hampton e Mark Clark em Chicago, a polícia de Los Angeles invadiu o escritório dos Panteras Negras na cidade. Em 8 de dezembro de 1969, 300 membros da SWAT atacaram a sede da organização. Os Panteras não se renderem, o que resultou num conflito armado que durou cerca de 5h, deixando alguns feridos, e que contabilizou a utilização de 5 mil cartuchos.
Outra forma encontrada foi a perseguição jurídica. Multas de trânsito e prisões arbitrárias com elevadas taxas de fiança fizeram o partido despender altas quantias financeiras para libertar membros, recursos que poderiam ter sido investidos nas propostas da entidade. O pesquisador Ollie A. Johnson, em seu artigo “Explicando a extinção do partido dos Panteras Negras: o papel dos fatores internos”, estima em seus estudos que “entre dezembro de 1967 e dezembro de 1969, o Partido pagou mais de duzentos mil dólares em fianças”.
Dois casos evidenciam bem essa estratégia da COINTELPRO. Os “21 Panteras”, como ficaram conhecidos, foram presos em 2 de abril de 1969, na cidade de Nova York, acusados de atividades ligadas ao terrorismo. Entre as condenadas estava Afeni Shakur, mãe do rapper Tupac Shakur.
Para libertar os ativistas, condenados a 360 anos de prisão e com fianças em valores exorbitantes, foi preciso protestar e lutar por cerca de 13 meses. Nesse processo, os Panteras Negras contaram com a colaboração da comunidade negra e de estrelas, como a atriz Jane Fonda.
Outro exemplo da perseguição jurídica foram as sucessivas prisões dos líderes do partido. Depois de Huey Newton ser condenado, ainda em 1967, e Eldridge Cleaver se exilar em 1968, Bobby Seale, presidente da organização, foi condenado, em 1970, por assassinar um membro dos Panteras Negras, suspeito de ser um informante do FBI.
Durante o processo, Seale pediu para que se adiasse o seu julgamento por conta da não presença do advogado. Como o pedido foi negado, Seale solicitou o direito de fazer a sua própria defesa.
A sessão de julgamento do presidente dos Panteras Negras foi marcada pela tentativa do então líder se defender e o juiz pedir o seu silêncio. A continuidade de Seale fez o juiz ordenar que os policiais o amarrassem e o amordaçassem em uma cadeira, enquanto seu julgamento prosseguia sem qualquer defesa.
Nesse momento, ainda vivo, Fred Hampton pronunciou uma frase que marcaria a luta dos Panteras Negras. “Você pode prender um revolucionário, mas não pode prender a revolução”.
Em resposta às operações da COINTELPRO, os membros do partido criaram centros comunitários chamados de “Panther Pads”. Tratavam-se de moradias comunitárias, em que as atividades eram divididas em grupo, e que a segurança era rotativa para garantir a vigia do local 24h por dia.
Uma modalidade de ação da COINTELPRO que não pode ser desconsiderada é o fortalecimento de tensionamentos internos na organização. O caso mais célebre é a discordância entre o Ministro da Defesa Huey Newton e o Ministro da Informação e depois Ministro das Relações Internacionais, Eldridge Cleaver.
Newton acreditava que o partido deveria fortalecer seus programas sociais, enquanto Cleaver entendia que os Panteras Negras eram um grupo revolucionário que deveria acabar com o capitalismo norte-americano.
O FBI soube explorar as divergências dos dois líderes e as visões políticas das sedes do Partido. Mesmo que seja possível descrever que houve um maior alinhamento ao Black Power, e depois ao marxismo, assim como havia um olhar distinto para as estratégias de luta, as diferenças locais existiam.
A sede de Nova York tinha uma visão mais próxima do nacionalismo negro, diferente dos núcleos de Oakland e Chicago, mais próximos ao socialismo.
Mais do que a divergência política, haviam diferentes olhares sobre a organização e o uso do dinheiro do partido. A sede de Nova York guardava uma série de descontentamentos com a organização central, mas acreditava que com a saída de Huey Newton da prisão, suas questões seriam levadas em conta.
Depois da sua liberdade, Newton ficou na casa de Bert Schneider, um produtor de cinema de Hollywood, que ofereceu a sua residência como forma de proteger o agora visado líder do partido. Essa situação foi utilizada para criar o rumor, em outras filiais dos Panteras Negras, de que a sede de Oakland e em especial Huey Newton viviam em determinado luxo.
Os tensionamentos chegam ao ápice entre os anos de 1969 e 1971. Durante a campanha pela liberdade dos “21 Panteras”, a sede de Nova York teria supostamente pedido auxílio financeiro para o comitê central, e sem resposta pediram à outra organização, o que culminou na expulsão do grupo por parte de Newton. Cleaver sai em defesa dos integrantes de Nova York.
Em 1971, agora livre, Huey Newton é convidado a participar de um programa televisivo e a dialogar com Eldridge Cleaver, exilado e morando na Argélia. Cleaver crítica as posições de Newton ao vivo, o que gera um posterior desentendimento entre os líderes. A saída de Eldridge Cleaver da organização e o desligamento da sede de Nova York diminuem muito a força do partido. Sem que soubessem, o FBI agia desde 9 de Março de 1970 para dividir Cleaver e Newton, e a seção de Nova York da sede nacional.
As ações da COINTELPRO aconteceram de maneira mais orgânica até 1971, ano em que marca o fim da primeira fase dos Panteras Negras, com o racha entre Huey Newton e Eldridge Cleaver.
Programas sociais e a conexão com a comunidade
Ainda na primeira fase dos Panteras Negras, o grupo dá início aos seus programas sociais. As ações ganham mais força depois da proibição do uso de armas em vias públicas no Estado da Califórnia.
Alinhados aos 10 pontos do Partido, os programas sociais preenchiam as lacunas dos serviços que deveriam ser prestados pelo Estado norte-americano.
Essa é a lista dos 10 pontos do programa. Depois, nas fases seguintes da organização, há uma mudança em alguns deles.
Mais do que isso, com a forte repressão policial, e o medo espalhado pela mídia acerca dos Panteras Negras, os programas sociais foram a solução encontrada para fortalecer os laços entre a organização e a comunidade negra.
Kathleen Cleaver, a primeira mulher a compor o Comitê Central na figura de Secretária de Comunicações, foi personagem importante na articulação dos programas sociais dos Panteras Negras.
O programa que ganhou mais repercussão foi o café da manhã gratuito, com início em Janeiro de 1969. Os membros do partido se encontravam nas primeiras horas da manhã para cozinhar para as crianças negras da região. Era do conhecimento do Comitê Central que as crianças que pouco se alimentavam antes das aulas tinham um pior rendimento na escola. No auge do programa, calcula-se que foram servidas em média 20 mil refeições por semana.
Na educação, os Panteras Negras organizaram escolas locais que apresentavam a história do país e do mundo a partir do olhar dos afro-americanos. “Eles vão construir uma história que vai funcionar como uma contra-narrativa, e essas crianças vão aprender o conteúdo a partir dessa contra-narrativa”, explica Flávio Thales, professor de Ciências Humanas e Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Clínicas de saúde populares também foram criadas para atender a comunidade negra. Uma delas foi a Clínica de Saúde e Pesquisa Médica Gratuita George Jackson.
Outros programas incluíam também o transporte gratuito para visitas à prisão e roupas gratuitas.
Os Panteras sustentavam essas ações com a doação de recursos de uma burguesia negra, de artistas e intelectuais simpatizantes, profissionais liberais como advogados, com a arrecadação de recursos dos comerciantes locais, e por meio de conferências, como a de 1969, que reuniu organizações de esquerda contra o fascismo.
Em agosto de 1971, um boicote foi feito a uma loja de bebidas de Oakland depois de um dos comerciantes se recusar a dar dinheiro para os Panteras Negras. Essa era uma das estratégias utilizadas para pressionar os lojistas a colaborarem com a entidade.
Outra fonte de renda e que também fortaleceu o laço entre a organização e a comunidade, e permitiu a oferta da informação à população foi o jornal “The Black Panther”, que teve 537 edições entre 1967 e 1971, e chegou a circular 150 mil exemplares semanais.
Importante fonte de renda da organização, e sob os cuidados do Ministro da Cultura, Emory Douglas, o jornal era produzido com o gasto de 12 centavos e vendido a 25 centavos. O periódico apresentava os posicionamentos da entidade e os fatos que envolviam o movimento negro no país. O jornal contou com muitos colaboradores, com destaque para as artistas Matilaba e Asali.
Emory Douglas considera que a mídia negra serve como poderosa ferramenta na luta contra a opressão racial.
“A mídia negra pode lutar contra o racismo mostrando que o racismo é atrelado ao sistema e é institucionalizado. No jornal você pode expor o que você trata, e mostrar para as pessoas as contradições entre o que deveria estar acontecendo e o que não está sendo feito, em relação às pessoas de cor e negras”, disse Emory Douglas.
Foram nessas publicações que um dos personagens mais famosos de Emory Douglas ganhou força, o “porco”, desenhado como forma de representar os policiais norte-americanos. O personagem, pedido de Huey Newton e Bob Seale, se transformou no mais emblemático do artista.
Ao todo, foram contabilizadas cerca de 60 programas sociais organizados pelos Panteras Negras durante a história do partido.
Huey Newton e o reformismo
Depois da liberdade de Huey Newton, em Agosto de 1970, e do primeiro importante racha da organização, entre o Ministro da Defesa e Eldridge Cleaver, tem início a segunda fase da entidade, que persiste até 1973, ano da derrota nas eleições municipais de Oakland. Bob Seale descreve que em 1971, o Partido tinha em torno dos três mil filiados.
Os conflitos entre as organizações do Black Power ganham força nesse período, o que passou a diminuir de maneira gradativa a força do partido. Exemplo disso foi a morte de Robert Webb, um ativista dos Panteras da Costa Oeste, que seguia as ideias de Cleaver, e foi assassinado em 8 de Março de 1971.
Pouco tempo depois, em 17 de Abril, Samuel Nappler, Gerente de Distribuição do jornal “The Black Panther”, foi torturado e morto em Nova York. Acredita-se que a morte tenha sido uma retaliação ao assassinato de Robert Webb.
O assassinato dos dois, figuras carismáticas dentro da entidade, aumentou o clima de insegurança dentro das organizações negras, intensificou a tensão entre os diferentes grupos do Black Power e ainda motivou a debandada de muitos membros do partido. Bob Seale estima que entre 30% a 40% dos integrantes dos Panteras Negras saíram da organização depois das mortes de Robert Webb e Samuel Nappler.
O partido, enquanto estrutura, também sofre uma mudança na orientação política. Os Panteras Negras começam a se fundamentar na teoria do intercomunalismo, criada por Huey Newton. Elisa Larkin Nascimento, autora do livro: “O Sortilégio da Cor, identidade, raça e gênero no Brasil”, define na página 38 a teoria como “…a meta do futuro é estabelecer o intercomunalismo revolucionário, uma espécie de socialismo mundial em que o poder e as riquezas sejam distribuídos em nível intercomunal, ao mesmo tempo em que as comunidades alcancem o poder de decisão sobre as suas instituições e os seus destinos”.
Kathleen Cleaver foi uma das principais lideranças do partido.
A pesquisadora Raquel Barreto diz que essa é também uma fase que, em certos momentos e análises, é tida como total da história do partido. É nessa etapa que começa a existir uma centralidade na figura de Huey Newton, o que vai lhe dar poderes que em alguns momentos foram utilizados para fortalecer a sua posição em detrimento da organização.
Huey Newton começa a desenvolver ações subterrâneas, sem o conhecimento de Bobby Seale, presidente da organização, como regulamentar e taxar as atividades criminosas feitas na cidade de Oakland.
Desde o início dos Panteras Negras, Huey Newton é construído como um mito, como a figura que lideraria a comunidade negra na luta contra a supremacia branca, imaginário esse que só se fortalece com sua liberdade.
O jovem, preso quando o partido ainda tinha características locais, volta às ruas e encontra uma organização que crescera também por conta da campanha pela sua liberdade e que naquele momento tinha reconhecimento no país e em outras partes do mundo.
A principal mudança da segunda fase dos Panteras Negras, porém, está no campo das estratégias políticas. Em 1972, Huey Newton decide por mobilizar toda a força política da organização para a eleição de Bob Seale para prefeito de Oakland, e Eliane Brown, para um cargo na Câmara Municipal.
Para essa ação, os Panteras decidem por fechar quase todas as suas sedes em outras regiões do país e convidam todos os membros possíveis para ajudar na campanha com o objetivo de vencer e mostrar para o mundo a cidade de Oakland como um exemplo a ser seguido para os municípios com forte presença de afro-americanos e a transformar em modelo de administração.
A decisão gerou descontentamento. Muitos integrantes do partido não queriam acabar com o trabalho desenvolvido em suas comunidades, pois programas comunitários estavam em andamento, assim como muitos presos políticos e integrantes sob acusação da justiça norte-americana precisavam de apoio legal do partido.
O segundo lugar nas eleições com mais de 500 mil votos para Bobby Seale e a não eleição de Eliane Brown, marcou uma etapa na desmobilização dos Panteras Negras. A organização havia centrado todos seus recursos humanos, políticos, financeiros nas disputas para a câmara municipal e a prefeitura.
O revés resultou na saída de muitos membros, desgastados com o processo eleitoral, e com a perda do imaginário revolucionário dos Panteras Negras, que para a prefeitura de Oakland fizeram uma parceria com o Partido Democrata local e adotaram discurso mais brando e menos radical.
A negação às ideias de Cleaver, que entendia os Panteras Negras como um grupo revolucionário, o maior investimento nos programas sociais e o desejo por disputar a prefeitura de Oakland fazem os Panteras Negras perderem seu aspecto revolucionário e ganharem um caráter mais reformista.
Sucesso na política institucional
A terceira fase, que vai de 1973 a 1977, se inicia com cerca de 500 filiados, de acordo com Bobby Seale. O início dessa etapa, em 31 de Julho de 1974, conta com o desligamento de Seale do partido, depois de grave desentendimento com Huey Newton. Depois de sua saída, uma série de integrantes abandonam a organização, que passa a registrar 200 filiados.
Huey Newton, naquele momento, tinha status de celebridade local, prestígio por parte de alguns membros do partido, e medo de outros.
Ainda em 1974, Huey Newton se vê obrigado a deixar o país, por conta de uma acusação de assassinato e agressão, e se exila em Cuba. A saída de Newton abriu espaço para Eliane Brown assumir a presidência dos Panteras Negras, retomar parte do prestígio regional da entidade, arranhada por conta de comportamentos violentos de Huey Newton.
Apesar de contar com poucos filiados, Eliane Brown tem êxito na estratégia dos Panteras Negras de influir na política de Oakland.
Ela participou de nova campanha para a Câmara Municipal de Oakland, terminando em segundo lugar, no ano de 1975, e também representou o governador da Califórnia, Jerry Brown, enquanto delegada do Partido Democrata na convenção nacional dos democratas.
Eliane Brown foi presidenta dos Panteras Negras na fase final do partido.
Eliane também teve papel destacado na eleição do primeiro prefeito negro de Oakland, o Juiz Lionel Wilson, em 1977.
Brown segue com as atividades clandestinas do partido, iniciadas por Newton, e recorre aos castigos corporais para manter sua autoridade. Essa era uma prática dos Panteras Negras, mesmo nos seus períodos iniciais, como forma de coerção a atitudes reprovadas pelo grupo.
Eliane Brown representou um respiro para o partido, e foi importante para a manutenção dos programas sociais na cidade de Oakland.
O fim
O fim do partido, e o início da quarta e última fase, que vai de 1977 a 1982, tem como marca fundamental o retorno de Huey Newton aos Estados Unidos. Em 1977, Eliane Brown alega falta de condições físicas e mentais para seguir na dirigência do partido e sai da entidade.
Absolvido das acusações, Newton manteve posturas violentas diante de outros integrantes da organização, não conseguiu gerir da melhor maneira possível os fundos partidários, sendo posteriormente acusado de desvio de recursos, fatores que prejudicaram o andamento das ações comunitárias feitas pelo partido.
Em 1980, é publicada a última versão do jornal “The Black Panther”, e o fim dos Panteras Negras é marcado de maneira oficial em 1982, com o fechamento da escola comunitária de Oakland.
Além das pressões do FBI e das disputas internas, erros estratégicos como o fechamento da estrutura nacional para as eleições de Oakland, e a centralidade das decisões de Huey Newton, foram outros fatores que colaboraram para o fim do partido dos Panteras Negras.
Ollie Johnson, em seu artigo “Explicando a extinção do partido dos Panteras Negras: o papel dos fatores internos”, descreve da seguinte maneira a trajetória do Partido entre 1966 e 1982. “Nesse período, o BPP [partido dos Panteras Negras] passou de uma grande organização descentralizada e revolucionária, com aproximadamente cinco mil membros distribuídos em quarenta seções, para uma organização local, altamente centralizada e reformista, com menos de cinqüenta Panteras nos arredores de Oakland, Califórnia”.
Diversidade política dentro do partido
A existência de muitas sedes e as diferentes formas de ação de cada localidade resultaram na diversidade política interna dos Panteras Negras. Como dito no início da reportagem, a pesquisadora Raquel Barreto afirma que trechos da história do Partido são utilizados para ilustrar toda a narrativa dos Panteras Negras. O mesmo vale para a identidade política do grupo. Além das tendências terem se transformado em nível estrutural, primeiro mais próximo ao “Black Power”, depois ao “Socialismo”, e por último ao “Intercomunalismo”, a diversidade era significativa entre os ativistas e as sedes.
Emory Douglas, ex-Ministro da Cultura do partido, se coloca como marxista e conta da admiração que parte dos jovens tinham pela figura de Mao Tse-Tung. Ele, porém, reconhece que essa não era a única visão política no interior da organização.
“Nós tínhamos professores marxistas que compuseram o partido, mas tinham Panteras que vinham de todas as orientações da vida. Tínhamos Panteras que eram cristãos, que eram muçulmanos, que eram ateus, alguns que eram marxistas, alguns eram rasta, mas todos colocavam isso de lado para trabalhar juntos pela organização”.
Para ele, a diversidade ajudava na compreensão da realidade norte-americana, porque toda fonte de saber tem suas potências e limitações.
“Qualquer “ismo” que possa melhorar e dar esclarecimento pode ajudar na luta contra o racismo e para transformação da sociedade. Mas todo “ismo” também tem suas limitações”, conta Emory Douglas.
O porco enquanto representação dos policiais norte-americanos é uma das principais obras de Emory Douglas.
O tensionamento com relação à teoria marxista ganhava corpo no relacionamento dos Panteras Negras com parte da burguesia negra, fonte importante de financiamento do programa de café da manhã. Os empreendedores negros tinham receio desse discurso e posicionamento socialistas.
Apesar das muitas diferenças e dos tensionamentos existentes dentro da organização, Raquel acredita que os Panteras Negras estavam próximos de construir a sua própria forma de compreender o mundo.
“Na minha avaliação, o partido estava construindo a sua própria ideologia, e as transformações das conjunturas influenciaram determinadas posições que o partido tomou”, conta Raquel Barreto.
As Mulheres e o Machismo
O Partido dos Panteras Negras, com uma representação muito associada às lideranças masculinas, é rotulado pelo machismo.
Raquel Barreto faz algumas ressalvas, e se distancia de afirmações categóricas cpmo a de que o “partido era machista”.
Ela aponta que, como historiadora, prefere olhar para aquele período histórico. A década de 1960 é o momento em que ocorre a chamada segunda onda do feminismo. Muitas das conhecidas feministas da época vinham de movimentos progressistas e de esquerda, onde apontavam a presença do machismo nesses espaços.
“A mesma coisa acontecia dentro das organizações do movimento negro. Você tem uma série de entidade, além dos Panteras, que tinham o problema do machismo. O machismo era um problema da época, histórico”, relata Raquel Barreto.
Ela, ao analisar a postura do partido, pensa que os Panteras Negras tinham um discurso avançado, de reconhecer o machismo como um problema dentro da organização e de tomar medidas para mudar essa situação, apostando na igualdade e na não essencialização dos papéis de gênero.
Uma das propostas de Elaine Brown, única presidenta do Partido, foi a de fazer as mulheres articularem os programas de autodefesa e os homens cuidarem do café da manhã.
Em 15 de Agosto de 1970, Huey Newton faz uma declaração em que apontava para a necessidade de maior diálogo entre o movimento negro, e as organizações feministas e LGBTs.
“Mas na prática, o machismo acontecia, apesar de se reconhecer a igualdade de gênero”, afirma Raquel Barreto.
Ela acha que é preciso ter cuidado com determinadas afirmações categóricas, como a de marcar o Partido dessa maneira, como machista.
“Há uma forma de demonizar o Partido chamando eles de machistas, como se só eles fossem, como se fossem diferentes daquela conjuntura histórica onde eles estavam inseridos”, explica.
Além do reconhecimento e da tentativa de enfrentar o machismo, o partido teve papel destacado das lideranças femininas para a mudança dos papéis de gênero e a luta contra o sexismo.
De acordo com o documentário “Panteras Negras: A Vanguarda da Revolução”, o partido era composto a partir do final da década de 60 e início de 70 por uma maioria de mulheres.
As quatro lideranças mais proeminentes do grupos, Ericka Huggins, Kathleen Cleaver, Assata Shakur, e Eliane Brown foram muito representativas na luta contra o racismo e o machismo. Kathleen foi a primeira mulher a compor o Comitê Central e Eliane Brown a primeira presidenta do partido.
Influência e legado
Todas as lutas travadas e o mito construído em torno dos Panteras Negras fez a organização ter grande influência nos EUA, no Brasil e em outras partes do mundo.
No campo político, os EUA hoje vêem a existência do Black Lives Matter, organização composta por uma série de entidades, em que há uma autonomia local, apesar de um alinhamento na luta contra o racismo e a violência policial. A descentralização e a autonomia são características da primeira fase dos Panteras Negras.
Raquel lembra que ambos, Black Lives Matter e os Panteras Negras, surgiram de momentos de enfrentamento à violência policial. O Black Lives Matter ganhou muita força nos EUA depois de Ferguson, com a morte do jovem Michael Brown, de 18 anos.
Flávio recorda que os Panteras Negras também serviram de inspiração para outras entidades nos EUA, como as organizações de latino-americanos e os movimentos de porto-riquenhos contra o domínio dos Estados Unidos.
Ainda na esfera política, Flávio acredita que o partido representa um golpe à ideia de excepcionalismo democrático dos EUA. A nação, que prega a democracia por todo o mundo, teve as suas contradições também apresentadas pelos Panteras Negras.
As escolas comunitárias e a importância de educar a juventude negra a partir do olhar afro-americano influenciou a construção dos “Black Studies”, que em português significam “Estudos Negros”. Hoje em muitas universidades norte-americanas há centros de African Studies (Estudo Africanos) ou African-American Studies (Estudos Afro-Americanos). No Brasil, de maneira mais recente, há a criação dos Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), em muitas universidades federais pelo país.
No esporte, a imagem de Toomie Smith e John Carlos no pódio dos jogos olímpicos de 1968, com o punho cerrado vestido por uma luva preta enquanto tocava o hino norte-americano, marcou a herança esportiva da época.
Toomie Smith e John Carlos marcaram os jogos olímpicos de 1968 com o símbolo do Black Power.
Na música, além do grupo musical do partido, “The Lupens”, com um estilo próximo do Funk e do Soul, pode-se dizer que houve uma influência no Hip Hop, em grupos que faziam uma discussão acerca do racismo e da violência policial. Tupac Shakur, filho de Afeni Shakur, presa durante a operação dos “21 Panteras” de Nova York, é um dos exemplos. Em uma das suas músicas “Dear Mama”, Tupac faz uma série de referências ao partido.
No campo político brasileiro, os Panteras Negras influenciam a construção do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, organização que simboliza o movimento negro moderno, e a principal entidade da segunda metade do Século XX.
José Adão Oliveira, um dos fundadores do MNU, destaca como legado dos Panteras Negras o conhecimento da legislação nacional para desmascarar o racismo, a utilização do orgulho negro como forma de ação política e a luta contra o modelo econômico vigente.
“O legado dos Panteras Negras foi o de encarar o racismo no coração do sistema capitalista”, afirma José Adão Oliveira.
Mais do que o MNU, os Panteras Negras influenciaram na atuação política dos militantes negros em todas as áreas.
Maria José Menezes, integrante do Núcleo de Consciência Negra da USP, aponta um dos aspectos do programa do partido, a “autonomia política e econômica para a comunidade negra”, como central para a luta contra o racismo.
Ela lamenta o momento brasileiro da época, no auge da Ditadura Civil-Militar, e acredita que a conjuntura tenha sido impossibilitadora para uma leitura mais aberta e ampla dos princípios e da atuação política dos Panteras Negras.
Para ela, os partidos de esquerda no Brasil têm muito a aprender com a experiência dos Panteras Negras.
“No Brasil os partidos políticos ainda não tiveram a capacidade de incorporar as nossas pautas em seus programas. Somos a maioria da população e ainda vemos nossa juventude ser morta e aprisionada. Vemos o desemprego em massa de nosso povo, a exploração, o trabalho escravo. Os partidos de esquerda ainda não estão a serviço da maioria. É urgente uma mudança de paradigma”.
O artigo de Raquel Barreto, “Os Panteras Negras e o Brasil: Notas sobre uma História da Diáspora”, é uma fonte para entender as relações existentes entre o partido e o país.
Em 1969, durante a campanha pela liberdade Huey Newton, Abdias do Nascimento, um dos principais nomes do movimento negro brasileiro, foi aos EUA prestar apoio ao partido. Abdias do Nascimento pintou a obra cuja título é “Liberdade para Huey” como forma de colaborar na luta.
A partir da leitura, é possível observar que não foram só os Panteras Negras que influenciaram o movimento negro brasileiro. Na lista de leituras obrigatórias do partido em casos de emergência, em momentos de maior pressão do Estado, estava o Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighella, integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN). O texto foi traduzido para o inglês por volta de 1969.
Quatro dias depois da morte de Carlos Marighella, assassinado pela Ditadura Militar, a edição do jornal dos Panteras Negras de 8 de Novembro de 1969 publicou na sessão de notícias internacionais o texto de Carlos Marighela, “Chamamento ao Povo Brasileiro”, de 1968. Mesmo sem uma indicação direta de que aquilo é uma homenagem, há fortes indícios de que sim.
As trocas e influências, porém, foram além do universo político.
Flávio Thales, professor de Ciências Humanas e Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), diz que o movimento Black Power, ao qual os Panteras Negras compunham, gerou inspirações no Brasil no campo estético. O lema de “Black is beautiful”, que significa “O negro é lindo”, foi impulsionador do sucesso dos bailes blacks em São Paulo e no Rio de Janeiro. No mesmo período, no ano de 1971, Jorge Ben divulga um álbum com o nome “O negro é lindo”.
“Essa juventude não vai achar elementos para a construção de uma identidade negra na cultura nacional. Ela vai buscar fora. Você tem um discurso de que não há problema de raça no Brasil, e essa juventude está criando uma identidade racial e está fazendo discurso de orgulho negro”, conta Flávio Thales.
O ator e cineasta Zózimo Bulbul também bebeu da fonte dos Panteras Negras. Em 1973, o artista apresentou o curta-metragem com o título de “Alma no Alho”, inspirado no livro de Eldridge Cleaver, “Alma no Exílio”. A obra do Ministro da Informação do partido foi divulgada em 1971 no Brasil, e o filme de Zózimo não chegou a ser publicado, pois foi censurado pela Ditadura.
O principal grupo de rap do Brasil, os Racionais MC’s, lançaram em 2012 o clipe “Mil Faces de um Homem Legal”, música feita em homenagem a Carlos Marighella. Em uma das cenas da produção, todos os integrantes do grupo de rap aparecem fazendo a saudação do “Black Power”.
As imagens de Emory Douglas e os seus traços também influenciaram a produção artística no país. Prova disso foi a realização do Encontro Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros (EECUN), em Maio de 2016, cuja identidade visual foi feita por Vinícius de Araújo, inspirada nas obras de Emory Douglas.
Entre os dias 8 de março e 4 de junho de 2017, o Sesc Pinheiros recebeu a exposição “Todo Poder ao Povo! Emory Douglas e os Panteras Negras”. A abertura da programação contou com a presença de Emory Douglas, que falou sobre a sua arte e a organização política dos Panteras Negras. A mostra, organizada pelo coletivo colombiano La Silueta e pelo artista Juan Pablo Furtado, apresentou algumas das obras do então diretor artístico, designer, ilustrador do periódico The Black Panther e também Ministro da Cultura do Partido dos Panteras Negras.
Movimento Negro Unificado (MNU) teve grandes influências dos Panteras Negras.
New Black Panthers
Existe hoje nos Estados Unidos um movimento chamado New Black Panthers, ou Novos Panteras Negras em português. Apesar de carregar a marca e a simbologia do Partido dos Panteras Negras, líderes da história organização afastam as aproximações.
Bobby Seale, em entrevista, disse que os New Black Panthers nada tem a ver com os originais e Mumia Abu-Jamal, em texto escrito, diz que esse grupo está mais próximo da Nação do Islã, de Malcolm X, do que dos Panteras Negras.
“Os princípios ideológicos e as perspectivas são outros. O partido dos Panteras Negras não pregava o ódio aos brancos enquanto pessoas e indivíduos. Eles pregavam o fim da opressão classista e racista, o fim da supremacia branca, o fim da violência policial, mas não entendiam isso como um problema de indivíduos, mas um problema estrutural”, conta Raquel Barreto, Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista no tema.
Flávio diz que não há uma ideologia anti-colonial, marxista, assim como há uma ausência de intelectuais negros, marcas dos antigos Panteras Negras.
“São grupos para-militares que utilizam essa representação dos Panteras Negras e tentam se colocar como os Novos Panteras Negras. Não existe algo que estabeleça uma relação direta entre esse grupo e o que atuou nas décadas de 60 e 70”, explica Flávio Thales.
Panteras Negros presos
Mesmo depois de 50 anos da fundação do partido dos Panteras Negras e de décadas da sua diluição, há um grande contingente de ex-integrantes presos na condição perpétua.
Organizações internacionais de direitos humanos, como a Aliança pela Justiça Global e o Movimento Jericó, fizeram uma lista com os presos políticos norte-americanos. De um total de 54 nomes, há 3 indígenas, 28 negros, 2 latinos, 4 militantes de esquerda, 2 ambientalistas, 3 Hackers e militares, 12 islâmicos. Dos 28 negros presos, 14 são Panteras Negras. A lista não inclui os encarcerados de Guantánamo ou estrangeiros julgados nos Estados Unidos por crimes cometidos no exterior.
Albert Woodfox, ex-integrante dos Panteras Negras, ficou 43 anos preso, muitos deles na solitária. Acusado de assassinar um policial, Albert ficou conhecido como “os três de Angola”. Angola é o nome de uma prisão norte-americana, criada sob uma antiga fazenda, em que os negros que trabalhavam no local de forma escrava vinham do país homônimo. Albert Woodfox foi libertado em 2016.
Apesar dos anos se passarem, Flávio Thales acredita que essas prisões representam que os EUA, assim como o Brasil, é um país marcado pelo racismo.
“Eu não consigo ter outro argumento para a manutenção dessas prisões senão a de como a supremacia branca resiste na justiça norte-americana”.
Referências:
Artigo de Raquel Barreto: “Os Panteras Negras e o Brasil: Notas sobre uma história da diáspora”.
Artigo de Ollie A. Johnson: “Explicando a extinção do Partido dos Panteras Negras: o papel dos fatores internos”.
Documentário de Stanley Nelson Jr. e Laurens Grant: “Os Panteras Negras: Vanguarda da Revolução”.