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Outra face da prostituição: Idosas, Negras e Analfabetas

21 de fevereiro de 2017

A reportagem é um relato sobre a vida de mulheres na prostituição aos 40, 50, 60 e até 70 anos. Segundo as organizadoras do Grupo Mulheres da Luz, duas ex prostitutas e uma irmã da Igreja, elas fazem o possível e o impossível para dignificar a vida dessas mulheres.

Texto / Stephanie Ribeiro
Fotos / Pedro Borges

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“As mulheres que cumprimetei no caminho na verdade estão todas se prostituindo”. Assim Cleone começa nossa conversa enquanto caminhamos para a sede do Parque da Luz, ao lado da Pinacoteca do Estado em São Paulo, uma construção antiga, tombada, e que hoje abriga o Grupo Mulheres da Luz formado por duas ex-prostitutas L.T. (mantivemos o nome em sigilo a pedido da entrevistada), Cleone e Regina, uma irmã da Igreja que há anos auxilia mulheres prostitutas.

O grupo que foi se organizando nesse espaço, conquistado mediante muita luta, possibilita que mulheres que se prostituem durante a semana no parque tenham acesso a aulas, já que muitas querem sanar a dificuldade de ler e escrever. A organização também serve como apoio diverso e acolhimento, pois na maioria das vezes elas se sentem solitárias e culpadas. Essa organização se dá mesmo na ausência de apoio público e do próprio movimento feminista.

É no caminho até a sede do parque que fui vendo uma face da prostituição muito distante daquela pintada pela mídia com a imagem da Bruna Surfustinha e até mesmo da Bebel da novela Paraíso Tropical. Glamour que não existe para as mulheres que estão no Parque da Luz. O que vi foram várias mulheres que são auxiliadas pelo Grupo Mulheres da Luz, sentadas em bancos da praça, cada qual no seu canto, algumas com maquiagem colorida, roupas do dia a dia, algumas conversando entre si, outras nitidamente apreensivas, e todas com a idade que eu remetia a minha avó e mãe.

Para quem passa desapercebido são só mulheres sentadas numa praça. Para quem começa a observar atentamente são muitas. Segundo os dados recolhidos pela irmã, ali ficam mulheres de 21 a 70 anos, mas a grande maioria da área tem entre 40 e 50 anos. O que choca é uma mulher no auge dos seus 70 anos ali se prostituindo e sustentando netos e filhos. Sim, a grande maioria tem filhos, netos e faz o que faz pelas suas famílias.

Segundo a fundação francesa Scelles, mais de 40 milhões de pessoas se prostituem no mundo. Dessas, 75% são mulheres entre 13 e 25 anos. Sendo assim, as mulheres que na Luz se prostituem fogem das estatísticas mundiais, fato que ajuda a entender toda a realidade de maior vulnerabilidade a que elas estão expostas.

É no porão, a partir de algumas cadeiras que foram doadas, que a sala de aula vai ganhando forma em um dos três cômodos daquele espaço. Sento e fico de frente com L.T., Cleone e Regina. As três que vão me expondo com desenvoltura a necessidade da criação de novas possibilidades para as mulheres prostitutas do Parque da Luz.

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Livros recolhidos para a biblioteca que pretendem formar em um dos cômodos

Segundo Cleone, depois dos 28 anos, uma prostituta não tem mais “valor” nesse meio. Por isso muitas estão ali, já que naquele espaço elas têm a possibilidade de se livrar dos temidos cafetões. Mesmo com a segurança do parque, a não presença de um cafetão e a idade mais avançada significam receber valores baixíssimos pelos programas: entre 20 e 30 reais. O valor é abaixo do preço dos próprios hotéis da área, geralmente usados para os programas. Esses costumam cobrar entre 30 e 50 reais.

A higiene dos espaços é nula. Os lençóis não são trocados entre um programa e outro, os espaços são precários e nem as toalhas de banho são lavadas, relata L.T. Segundo ela e Cleone, o cliente geralmente se responsabiliza por pagar o hotel. Algumas delas, porém, também usam esses espaços como dormitório, quando não possuem onde ficar, o que acaba sendo recorrente.

“A violência começa quando a gente esconde da família”.

É assim que L.T sintetiza as suas vivências como prostituta. Segundo ela, a primeira violência é essa. Depois, achar que a escolha é uma opção, quando para elas, as mulheres na verdade são reféns de um sistema que por fim as tornam em pedaços de carne, vistas como “boas de cama” e que quando são negras, um pedaço de carne que ganha menos.

Logo depois dessa opinião, que diverge de algumas prostitutas ativistas, pergunto o posicionamento das três, que se organizam durante todo final de ano para doar presentes e fazer almoços para os filhos dessas mulheres que se prostituem, sobre a regulamentação da prostituição e a resposta é unânime:

“Somos contra. Não podemos ser a favor da regulamentação de algo que não se faz por escolha. A dignidade delas é tirada, a maioria dessas mulheres não sabem quais são seus direitos”.

A irmã Regina ainda enfatiza que muitas delas não querem nem ouvir falar sobre isso, pois acham que a regulamentação inclusive não trará benefícios para elas. A maioria das mulheres que se prostituem naquela área moram nas periferias e bordas da cidade de São Paulo, enfrentam grandes distâncias de mais de três horas para chegar ao Centro da metrópole, onde se prostituem muitas vezes sem a família saber. Fazem isso para ajudar os filhos e netos que estão em situação difícil. Algumas mentem que vão trabalhar como doméstica, quando na verdade vão para a praça se prostituir. Essas mulheres, devido a essa condição, de acordo com Cleone, não querem ter uma carteira assinada pois o anonimato as protege. Perguntei para Cleone se para ela, mulher negra que já vivenciou a prostituição e agora auxilia o grupo de apoio às diversas mulheres na mesma situação, se ela via alguma forma de empoderamento na prostituição:

“Só haverá empoderamento se as mulheres conseguirem estudar, ter acesso a políticas públicas, mas também buscar uma forma de ter uma outra alternativa”.

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Cartaz na parede da sede

É do próprio feminismo pautar que na sociedade atual as mulheres ainda não são vistas como sujeitas. É claro que mulheres negras já recorrem aos recortes para evidenciar que quando se une classe, raça e gênero, como fatores que te colocam numa situação de desprivilégio, a possibilidade de se fazer escolhas é praticamente nula para mulheres negras, pobres e analfabetas, como é o caso de algumas mulheres que se prostituem na Luz. Cleone e as parceiras de ativismo recolhem doações de sabonetes, pastas de dentes e alimentos que têm como destino as mulheres e seus familiares, já que isso suaviza o orçamento delas no fim do mês. Uma que tem o filho numa penitenciária é uma das mais necessitadas nesse quesito, segundo a irmã Regina:

“Estamos falando de necessidades básicas. Elas precisam do básico”.

Regina tem num caderno dados sobre essas mulheres. É assim que vão tendo um controle sobre a área e o que precisam conseguir urgentemente para algumas delas. É terrível perceber que elas não possuem muito apoio, mesmo de grupos que lutam pela emancipação feminina. Pergunto do porquê dessa falta de apoio de feministas em amparar as mulheres que estão na prostituição, passando necessidades financeiras e até fome. Cleone é enfática:

“As feministas não têm claro qual é a verdadeira situação das mulheres, principalmente as idosas que estão dentro da prostituição”.

Cleone diz que nós mulheres, prostitutas ou não, deveríamos nos unir para apoiar umas às outras, principalmente as que precisam de acesso às políticas públicas e de recursos que muitas vezes nos soam banais, como uma pasta de dente, mas que para elas são um alívio no orçamento. Como os valores do programa são baixos, muitas não conseguem nem o dinheiro para garantir as refeições e/ou a condução de volta.

Por isso o sonho de Cleone e da irmã Regina é uma casa para acolher essas mulheres. O porão seria uma sede provisória, para o sonho que elas admitem ser alto. Atualmente é só o Parque fechar, de acordo com os seus horários comerciais, que algumas saem para se prostituir ali nos arredores da Luz, de forma totalmente desprotegida. Outras simplesmente viram a noite porque não têm onde dormir ou o dinheiro para voltar para suas casas. Uma passagem hoje custa 3,80 e mesmo cobrando valores baixos pelo programa, nem sempre elas garantem a possibilidade de voltar para a casa.

É naquele espaço público que as protege, onde muitas vezes elas queriam ter o dinheiro da passagem e do dia garantido para sair dali, que essas mulheres tem que escutar coisas como:

“Eu prefiro meu marido aqui com vocês do que estuprando uma filha minha”.

As agressões psicológicas vão tomando o ar dos comentários e são feitas descaradamente. Essa é verdadeira face do Brasil, um mix de ódio de gênero, classe e raça que recai sobre mulheres negras e/ou pobres que são invisíveis aos olhos de muitos que usam o parque para cortar caminho, vão na Pinacoteca para prestigiar obras de arte e fazem da Estação da Luz seu principal ponto de partida e chegada.

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Cesto de camisinhas e livros

Os homens que procuram essas mulheres e as usam para exacerbar seu ideal de masculinidade são em sua maioria muito, muito pobres e muitos mais velhos do que os de filmes como Uma Linda Mulher, que te fizeram romantizar a prostituição. Homens que pagam mais caro para elas não exigirem preservativos e algumas inclusive aceitam pois precisam dos reais a mais. Cinco, dez, quinze reais fazem muita diferença para essas mulheres, que por isso aceitam e se tornam suscetíveis a sífilis, gonorreia, entre outras DSTs. Lembrando que a A Lei Maria da Penha entende isso como violência sexual.

A violência sexual é definida pela Lei Maria da Penha no inciso III do Artigo 7o como “qualquer conduta que constranja [a mulher] a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos” (Brasil, 2006).

Em linhas gerais as pessoas vão dizer que não existe impedimento, mas uma mulher vulnerável não tem opções diante da possibilidade de obter mais recursos financeiros cedendo e não usando preservativos. A vulnerabilidade nas palavras de L.T é extrema. Além de física, também é psicológica. Segundo a irmã, algumas delas têm doenças mentais e mesmo assim continuam se prostituindo. Para Cleone, esse é um estrago causado pelo sofrimento, que está envolvido em questões da realidade marginalizada dessas mulheres e da situação que vivem enquanto prostitutas:

“Precisamos melhorar nosso espaço, e ter um psicólogo promovendo atendimento aqui todo dia sem julgar elas. Isso é urgente”.

Realmente o porão tem ainda um ar de provisório. Elas ainda esperam os documentos para ficarem realmente com o local e tornar ali uma área de acolhimento. O problema é que ainda faltam recursos, ajuda e apoio de fora.

Cleone diz que até é convidada para alguns debates sobre prostituição, mas se nega a ir pois a realidade dela ali com essas mulheres é outra. Para as três, mesmo com todo apoio e histórico de envolvimento com a luta de prostitutas, essas mulheres não querem debater a regulamentação, pois entendem que é diferente estar aos 60 anos nesta situação para comprar pasta de dente pro filho na prisão.

“Elas são independentes, inclusive muitas buscam na prostituição a fuga de famílias patriarcais. Acabam na prostituição e acham que terão vidas melhores. Meninas sensíveis, inteligentes e sonhadoras”.

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Cartilha do GMEL grupo que Cleone colaborou com informações sobre leis e telefones e endereços úteis

A irmã Regina enfatiza em vários momentos o quão inteligente e cheias de capacidades distintas essas mulheres têm caso lhes dessem chances. Por isso, para a irmã, o silenciamento que essas mulheres sofrem é mais uma das violências sofridas por mulheres que deveriam estar falando por si e tendo espaço para isso. São mulheres de uma potencialidade humana e intelectual enormes que não falam e tem medo de falar, completa a irmã.

No grupo tem mulheres que são artistas, escritoras, desenhistas e pintoras. Eufóricas e com muita alegria contam que uma delas escreve poesia. Eu pergunto se é algo como Carolina Maria de Jesus e Cleone me diz que é essa a semelhança, uma mulher escrevendo o dia a dia dela em papéis e nem sendo totalmente alfabetizada.

Não tem como não ficar triste com a realidade que elas vão me relatando. É de apertar o peito. O Parque querendo ou não protege essas mulheres que com a idade mais avançada são motivos de chacota e repúdio. Algumas delas têm medo de qualquer coisa e preferem não aparecer em fotos, entrevistas e eventos que pretendem debater a realidade da prostituição no Brasil. Foram ensinadas e condicionadas a serem discretas e silenciosas. É isso que uma mera passada no Parque evidência. É com o tempo e a auto organização, que elas estão aprendendo a se auto proteger. As três sempre repetem nas conversas com todas:

“Vocês tem voz, vocês precisam ser unidas”.

Mesmo que as três afirmem isso, ainda é complexo demais. Segundo elas, muitas brigas acontecem e por incrível que pareça o mais difícil é lidar com os sentimentos distintos e a necessidade de atenção de tantas mulheres. A sensação mais presente é a da culpa, de acordo com a irmã Regina:

“Algumas aqui sentem muita culpa, muita culpa mesmo. Sabem que os homens que pagam têm famílias e elas dizem que o dinheiro dado para elas é amaldiçoado e por isso não conseguem sair da vida, pois é o dinheiro do pão dos filhos que eles dão para elas.”

“Hoje eu ainda não pequei.” – É isso que Cleone diz que escuta de uma das mulheres. E ainda completa: “Tem dia que chego em casa e não consigo dormir”.

Cleone é uma mulher negra que viveu a realidade distinta para negras na prostituição e que agora tenta com seus esforços ajudar as mulheres que ainda estão nessa realidade, mas sem apoio nenhum. O mito da mulher negra ser forte se materializa na sua imagem, de alguém que também precisa de apoio para si, mas continua ali lutando coletivamente por várias mulheres. A sensação é de impotência ao perceber que mulheres que poderiam ser nossas mães, avós estão ali.

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Cronograma dos eventos criados pelo grupo com as mulheres

Pelo que elas me contaram, até uma mulher de 80 anos já se prostituiu ali nas áreas centrais e por incrível que pareça chamava atenção de jovens que viam nela a possibilidade de uma experiência sexual diferente. Outra mulher negra que mesmo aos 80 anos era de alguma forma o objeto de diversão das pessoas. Cleone me diz que uma já cega continuou se prostituindo na Sé, e eu não consigo cogitar o que leva homens a se envolver com idosa cega e pagando ela para isso. Outra aos 74 anos se aposentou mas entrou em depressão, já que desde os 19 fazia isso e não sabia que poderia fazer outra coisa da vida já que sempre foi prostituta. Por isso, mesmo nessa idade preferia retomar o ofício. Poderia ser minha ou sua avó. Estamos falando de um cenário de extrema pobreza que filmes nacionais insistem em apenas retratar nas regiões norte e nordeste, mas que tive contato no centro de São Paulo.

“Não queremos vitimizar essas mulheres, mas queremos mostrar que elas existem”.

É a frase que escuto da irmã, como se ela pedisse desculpas por contar que as mulheres são semi analfabetas e algumas completamente analfabetas e têm a sua vida ali 24 horas do dia diante do cenário de pobreza e miséria no meio do centro de uma das cidades mais ricas do país.

Na gestão passada do ex prefeito Haddad na na cidade de São Paulo, elas tiveram reuniões e momentos de discussão via secretaria de política para mulheres. Atualmente elas não sabem como será diante da gestão do PSDB do atual prefeito Dória em que já se nota políticas higienistas que não beneficiam essas mulheres e nem qualquer outra população vulnerável.

Talvez o pouco conquistado, como ter uma relação com uma secretária da prefeitura, se perca na atual gestão. É fato que tudo está em jogo e quem tem que pedir desculpas para essas mulheres é a sociedade, que não possibilita nem o mínimo que as três pedem: um espaço para dar comida, ensinar a ler e possibilitar a elas que durmam no centro quando necessário.

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