“Eu procuro evitar que ela esteja nas telas, a estimulando a ter outros tipos de entretenimento. Por isso, a incentivo a pintar, brincar de bolinhas de sabão, brincar com suas bonecas e até a participar das tarefas domésticas”, relata a jornalista Brunna Moraes, de 27 anos, mãe solo de Naila, de quatro anos.
Ela, que é natural de Maceió (AL), e hoje mora em Curitiba (PR), afirma ter um cuidado maior em relação à exposição às telas. Durante a semana, a filha não passa o dia em frente ao celular porque fica a maior parte do tempo na creche. Durante a noite, a mãe conta que costuma não permitir a permanência com o aparelho para não atrapalhar o sono da pequena.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
“O fim de semana é o período em que ela mais fica em frente às telas, geralmente nos momentos em que preciso cozinhar, lavar roupa e cuidar da casa. Nessas ocasiões, procuro não entregar o celular, que lhe daria mais controle sobre o que vê e com o que interage, e permito que assista à tela do computador ou da TV”, detalha.
Para Brunna, o maior desafio consiste no estabelecimento do momento de retirada do celular. A mãe argumenta que o principal impacto negativo se trata do comprometimento do sono, “inclusive, por isso, que não permito mais telas durante a noite”.
A aflição da mãe também é motivo de crescente preocupação entre especialistas e instituições de saúde. Diversas entidades têm emitido recomendações para um uso moderado, visando proteger o desenvolvimento infantil.
“A Naila passa mais tempo em frente às telas do que eu gostaria, mas sozinha não consigo dar conta de todas as atividades que ela precisa. O celular se tornou um grande aliado, mas sei que não é a solução ideal”, acrescenta a jornalista.
Assim como Brunna, a sobrecarga de tarefas e a falta de tempo livre acabam impulsionando muitas mães a buscar soluções práticas, mesmo que estas não sejam as mais indicadas para o desenvolvimento infantil.
No entanto, ela também reconhece a importância de adaptar o mundo digital às necessidades das crianças. “Visto que é inevitável o contato com as telas, é preciso torná-lo seguro e educativo. Aplicativos como o YouTube Kids são um bom exemplo de como é possível oferecer conteúdo adequado para o público infantil.”
Exposição de crianças a dispositivos preocupa Sociedade Brasileira de Pediatria
A crescente exposição de crianças pequenas a dispositivos eletrônicos tem levantado preocupações entre profissionais da saúde e educadores. A Sociedade Brasileira de Pediatria destaca a importância de evitar o contato de crianças menores de dois anos com telas e sugere que, entre dois e cinco anos, o tempo máximo diário seja de uma hora.
Um relatório atualizado da Sociedade Brasileira de Pediatria, intitulado “Menos Telas, Mais Saúde”, publicado em agosto de 2024, destaca os riscos que o uso excessivo de telas pode trazer para o desenvolvimento físico, mental e emocional das crianças na primeira infância.
De acordo com o documento, bebês e crianças menores de dois anos não devem ser expostos a telas, enquanto para crianças de até cinco anos, o tempo deve ser limitado a uma hora por dia, sempre sob supervisão de adultos.
O relatório adverte que a exposição precoce às telas pode atrasar o desenvolvimento da fala e da linguagem, além de prejudicar a interação social, essencial nos primeiros anos de vida.
Além dos efeitos no desenvolvimento cognitivo, o uso excessivo de telas está associado a distúrbios de sono e transtornos comportamentais, como irritabilidade e agressividade.
A luz azul emitida por smartphones e tablets também afeta a produção de melatonina, hormônio responsável pela regulação do sono, agravando problemas de insônia e cansaço diurno nas crianças.
Ainda segundo o documento, especialistas também alertam para a “distração passiva”, prática comum entre pais que utilizam dispositivos eletrônicos para manter as crianças ocupadas. Segundo o documento, essa atitude impede que as crianças participem de brincadeiras ativas, fundamentais para o desenvolvimento saudável do cérebro.
A Sociedade Brasileira de Pediatria ressalta a importância de atividades ao ar livre, interação familiar e o estabelecimento de rotinas saudáveis para contrabalançar os efeitos nocivos das telas.
O documento faz um apelo para que os pais se envolvam mais ativamente na mediação do tempo de uso de dispositivos eletrônicos, evitando o isolamento e incentivando o diálogo e o afeto no convívio diário.
Essas recomendações estão em consonância com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), que já reconheceu o uso problemático de tecnologias e videogames como uma questão de saúde pública.
Crianças negras na primeira infância mais vulneráveis às telas
O médico psiquiatra Pedro Pan, pesquisador do Instituto Ame sua Mente, defende que a exposição prolongada às telas pode atrasar o desenvolvimento da linguagem, prejudicar as habilidades motoras e causar problemas de sono; assim como já ocorre com Naila, filha de Brunna.
Além disso, o especialista ressalta que crianças negras, em particular, podem ser mais vulneráveis a esses impactos, devido a fatores como menor acesso a espaços seguros para brincar e maior exposição a situações de estresse.
“Crianças negras podem enfrentar maior risco de estresse e traumas, o que, combinado com a possível falta de acesso a recursos educativos de qualidade, pode agravar os efeitos negativos do tempo de tela excessivo”, explica Pan.
O psiquiatra também destaca a importância de considerar as particularidades de cada família ao estabelecer limites para o uso de telas, uma vez que fatores como a disponibilidade dos pais para cuidar das crianças podem influenciar o tempo que elas passam em frente aos dispositivos.
“Temos que cuidar para não julgar também, porque cada família pode ter uma necessidade específica, sem conseguir outras alternativas, mesmo sabendo que o melhor seria utilizar menos telas com crianças”, afirma o psiquiatra.
Promoção do uso saudável das telas
Para promover um uso mais saudável das telas, Pan sugere que pais, educadores e profissionais de saúde adotem algumas estratégias, a exemplo do estímulo a brincadeiras ao ar livre e outras atividades que promovam o desenvolvimento físico e social.
Para ele, também é necessário orientar os pais, no sentido de oferecer informações sobre como mediar o tempo de tela e selecionar conteúdos adequados. E ainda destaca a importância de desenvolver plataformas educacionais que ofereçam conteúdo relevante para crianças negras.
“Também é essencial haver um esforço para melhorar o conhecimento sobre essa questão do digital para pais e cuidadores, capacitando-os a fazer escolhas informadas sobre o uso de tecnologias por seus filhos. Por exemplo, é indicado estabelecer limites e ter ciência de quando e com que frequência eles têm sido extrapolados”, pontua o psiquiatra.
O especialista destaca ainda a importância de refletir sobre o conteúdo consumido por meio dessas telas, já que ele pode repetir aspectos do racismo da sociedade, como personagens predominantemente brancos, modelos de família nos jogos, vídeos e filmes que repliquem esse tipo de viés.
“A tecnologia pode sim ser uma ferramenta poderosa para estimular o aprendizado e o desenvolvimento infantil em comunidades negras, se utilizada de forma consciente e direcionada, sempre com a supervisão completa dos cuidadores”.
Governo Federal elabora guia com orientações sobre uso de telas
Questionado pela reportagem da Alma Preta sobre as políticas públicas necessárias para garantir o acesso equitativo à tecnologia e promoção do uso saudável das telas para todas as crianças, o Governo Federal afirmou que trabalha em um guia com orientações sobre o tema.
“Para garantir o acesso equitativo à tecnologia, vários esforços vêm sendo empreendidos pelo governo federal por meio dos Ministérios da Educação, das Comunicações e pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, entre outros órgãos de governo”, afirmou a Secretaria de Comunicação.
Segundo o governo, o Guia Orientativo para Uso de Telas e Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes contará com conteúdo voltado à proteção e promoção dos direitos fundamentais desse grupo, prezando por seu acesso responsável, amplo, seguro e participativo no ambiente digital.
“O Guia pretende ser um documento oficial com recomendações e pronunciamento do governo federal sobre o tema. Será baseado em evidências científicas e melhores práticas internacionais e deve se desdobrar em ações de comunicação e processos formativos para públicos específicos. Ele terá sido fruto de um grupo de trabalho que reuniu sete Ministérios do governo federal e outras vinte representações, entre órgãos do sistema de justiça, organizações da sociedade civil e pessoas com notável atuação no tema”, acrescenta.
Sobre o combate ao racismo, afirma ainda que o texto do Guia deve trazer reflexões sobre o tema quanto à prática de cyberbullying, aos discursos de ódio e à existência do racismo algorítmico, entre outros temas relacionados às desigualdades e discriminações no ambiente digital.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.