A pequena Lorena Cecília, de quatro anos, que mora com a mãe Crislane Íris, de 34, convive com a falta de estrutura e acesso a espaços públicos no Tabuleiro do Martins, bairro periférico em que mora, localizado na parte alta de Maceió (AL). As brincadeiras ao ar livre não existem na rotina das crianças. “Aqui não tem nenhuma praça que ela possa brincar, nem as ruas são asfaltadas”, relata sua mãe.
O brincar e a recreação são direitos fundamentais para o desenvolvimento infantil, reconhecidos internacionalmente desde 1959, com o artigo 31 da Convenção dos Direitos da Criança da ONU, na Constituição Federal de 1988 com o artigo 227, e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), entre outras normas.
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No entanto, essa não é a realidade da pequena Lorena quando o assunto é o acesso à recreação em ambientes seguros, que promove o bem-estar e o futuro das crianças.
“Ela sempre reclama que não pode andar de bicicleta na rua porque é cheia de buracos, fica dizendo que está entediada, só brinca em casa. Como mãe fico triste, aqui é um bairro tão grande e não tem um lugar de lazer para as crianças. Entra ano, sai ano e as ruas do mesmo jeito de quando nasci”, lamenta a mãe.
Mais do que momentos de lazer, essas atividades são essenciais para o desenvolvimento físico, cognitivo, social e emocional das crianças. É dever do Estado, da família e da sociedade garantir oportunidades adequadas de brincar e se recrear em ambientes seguros, promovendo o bem-estar e o futuro das crianças.
Mais do que a garantia do acesso a espaços democráticos e inclusivos, essa discussão ganha centralidade na luta pelo direito à cidade, que desde a década de 1960 no país ecoa o combate à segregação urbana. Mais tarde, a Constituição Federal de 1988 consagrou, nos artigos 182 a 183, a Política Urbana.
Apesar de não haver normas que determinem a existência de espaços de lazer em bairros ou áreas urbanas, as diretrizes da Constituição e do Estatuto da Cidade já preconizam que a gestão pública tem a necessidade de ser democrática.
As crianças negras e a negação do direito à cidade
A pesquisa “O Brincar nas Favelas Brasileiras”, do Instituto Data Favela, de 2021, disponível na seção biblioteca, do site da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, entrevistou 816 mães de crianças de zero a seis anos, das classes C e D, entre 18 e 43 anos, das cidades de São Paulo (SP), Recife (PE) e Porto Alegre (RS), durante o período de 30 de outubro e 11 de novembro de 2020.
Entre as entrevistadas, 83% são negras — a soma de pretos e pardos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) —, 14% são brancas, 1% indígena e 1% amarela.
Segundo o levantamento, grande parte das mães gostariam que seus filhos brincassem na escola ou no parquinho da comunidade. No entanto, as favelas, assim como o bairro de Cecília em Maceió (AL), carecem de estruturas de lazer para os pequenos. O estudo também mostrou que entre as localidades, apenas 29% das mães contavam com um parquinho em sua comunidade.
O pedagogo e doutor em educação pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Luciano Amorim (Idáhunsi), defende que o brincar é uma expressão social constituída nas infâncias, isto é, reproduzida e criada a partir da relação que as crianças constituem entre si.
“Existe sim uma diferença na falta de acesso do brincar às crianças negras, especialmente porque hoje em dia a gente compreende o brincar como um direito da criança”, argumenta o também coordenador de Educação e Direitos Humanos da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (Semed) e membro do Ilê Ègbé Vodun Azírí.
O especialista acrescenta que a limitação é domiciliar e comunitária por conta da ausência de espaços para que o livre brincar ocorra. Essa falta produz impacto direto na vida de crianças negras. “A gente compreende que crianças negras, historicamente também, lhes foi furtado o direito a esse brincar. Consequentemente, existe sim uma diferença, um impacto muito grande em relação às crianças [de outras raças] e às crianças negras.”
A professora dos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Juliana Prates, explica que quando se fala em falta de acesso ao brincar é preciso ter em mente que isso está relacionado à ideia da ausência de uma estrutura.
“A ausência de um parque, de um lugar seguro, de casas sem espaço para criança poder explorar, o constrangimento físico das crianças que ficam o tempo inteiro presas no colo em lugares muito pequenos. Se a gente imaginar uma escola que não tem espaço para as crianças correrem livremente desenvolvendo suas habilidades físicas, a gente pode dizer que isso obviamente tem Impacto”, destaca.
Juliana aponta a importância da presença de políticas públicas que favoreçam ambientes promotores do desenvolvimento infantil, que reconheçam a necessidade das crianças em brincar, a exemplo do parque, do espaço verde e dos locais de lazer. Além da promoção da acessibilidade em todos os espaços e o reconhecimento da atenção com os cuidadores que possam interagir com essas crianças.
A importância do brincar na primeira infância
A brincadeira é essencial para as crianças por consistir em uma ação essencial que envolve o imaginário e sua relação construída com o real. “É como a criança se percebe em um universo de possibilidades, a expansão do seu corpo em detrimento daquilo que ela está vendo, dos sujeitos com que ela está lidando, com as situações desafiadoras. A importância do brincar com as crianças é uma ação que possibilita o crescimento delas em todas as suas potencialidades”, explica Amorim.
Para o especialista, quando a criança se encontra no processo de brincar, ela está imersa em uma proposta, que pode ter diversos caminhos possíveis, possibilidades, regras e acordos. “Justamente pelo brincar ser algo que é ilimitado na possibilidade de construção do sujeito, ele atinge o social porque ele parte de um pressuposto emocional, porque ao brincar ele atinge elementos do real”, descreve.
Ele pontua ainda que na brincadeira há o movimento físico, cognitivo e afetivo porque “há questões da lei de ligação, há questões da lei de associação, há questões da lei de cultura de pares, ou seja, há uma afinidade relacionada”.
Juliana Prates, professora da UFBA, por sua vez, defende que todos os estudos são consensuais ao afirmar a máxima importância da brincadeira para o desenvolvimento dos pequenos na primeira infância.
“Na verdade, a gente pode dizer que a brincadeira tem duas relações com o desenvolvimento, ela o promove e é resultado dele. Quanto mais a criança amadurece, ela vai modificando o modo como ela brinca”, frisa Prates.
Para a especialista, em termos sociais, é o que elas fazem de mais sério, que também é nesse momento que se relacionam com o outro, elaboram suas próprias emoções e constroem relações emocionais e sociais. “Quando a criança brinca que está brigando, ela aprende como é que ela negocia, arranja soluções para seus conflitos”, conta.
A educadora alerta ainda para a necessidade de reforçar aos cuidadores a importância do brincar. “Nós somos uma sociedade que se irrita com o barulho das crianças, uma sociedade com uma ideia de que as crianças precisam ser controladas, vigiadas e isso impede um brincar livre.”
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.