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‘E eu não sou uma criança?’: como a naturalização da morte de crianças negras impacta a primeira infância

Especialistas apontam como os efeitos da naturalização da morte são prejudiciais para a construção da infância de crianças negras
Ato realizado em 2024 pela ONG Rio de Paz critica violência contra crianças brasileiras.

Ato realizado em 2024 pela ONG Rio de Paz critica violência contra crianças brasileiras.

— Rafael Henrique Brito/Rio de Paz/Divulgação

28 de fevereiro de 2025

Era só mais um dia de escola para Pérola Ester. Com trancinhas no cabelo, naquela manhã amena de junho, a menina de cinco anos desceu o Morro da Mineira, no Catumbi, região central do Rio de Janeiro, quando, a caminho da escola, foi baleada nas costas em um conflito armado entre policiais e traficantes na região. Socorrida pelos familiares, ela foi internada no Hospital Souza Aguiar imediatamente. Tranquilizada pelo quadro estável da filha, quando entrevistada, a mãe relatou que a filha falava e se comunicava bem, pedindo para que ela tivesse forças naquele momento tão difícil. 

O caso, ocorrido em 2024, não é isolado. Dados do Instituto Fogo Cruzado evidenciaram que 26 crianças foram baleadas no último ano apenas no estado do Rio de Janeiro, um recorde não superado desde o início da coleta dos dados em 2016. Destas, quatro morreram.

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A nível nacional, os números são ainda mais alarmantes: dados do Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), revelou que, entre 2021 e 2023, pelo menos 9.328 crianças e adolescentes negros foram mortos de forma violenta no Brasil. O estudo mostra ainda que a morte na primeira faixa etária, de zero a quatro anos, cresceu 49% até 2023, e 64,3% dessas crianças eram negras.

A morte da criança negra logo nos primeiros anos de vida deixou de ser alarmante para se tornar um evento minimamente esperado. Pérola, Agatha e Mirella deixaram de ser apenas nomes de saudades e se tornaram palavras de protesto contra a violência policial que, principalmente nas favelas, dizima vidas desde seus momentos iniciais. Junto às primeiras palavras, sons, brincadeiras e texturas, a criança negra também aprende a reconhecer os sons de tiros e sofrer a violência letal, física e simbólica. 

Quando vivas, essas crianças também são confrontadas com a morte com frequência. Corpos mortos surgem nas favelas aos montes, perda de familiares muito mais cedo (de morte violenta ou não). Há um conflito entre infâncias negras e vida, mesmo que elas cheguem à idade adulta.  É entender que Pérola, assim como tantas outras crianças negras, na verdade, morreu bem antes de morrer.

A violência contra a criança negra começa no ventre

Os efeitos da naturalização da morte são extremamente prejudiciais para a construção da infância, em especial psicologicamente. É o que evidencia Vanessa Menezes de Andrade, doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), cofundadora e matrigestora do Ninho de Infância Afrikana (NIA), ao apontar que a criança negra sofre violência antes mesmo de seu nascimento. 

“Em uma sociedade onde há práticas racistas — ou seja, práticas em que um grupo é considerado e tratado de forma inferior —, sem dúvida, a criança, ainda no ventre da mãe, já sofre o impacto do racismo”, explica.

“Dados do Ministério da Saúde mostram o quanto as mulheres negras, principalmente as mulheres pretas, são menos assistidas durante o parto. Elas sofrem um índice maior de violência obstétrica. Isso, por si só, já é um indício de como essa criança não vem ao mundo em boas condições. Por isso, precisamos olhar para essa infância negra desde a gestação, e digo mais: até mesmo antes, no planejamento familiar. Enfim, essa criança, essa vida negra, já não parte do mesmo lugar”. 

Ao nascer, os direitos da criança negra à vida e à dignidade, supostamente garantidos pela Constituição, muitas vezes já lhe são tirados de início. Experienciar a vida negra perpetua uma série de microviolências que muitas vezes, começam dentro de casa, entre os seus. 

“Mesmo dentro do ambiente familiar, que deveria ser um ambiente protegido, as crianças já têm essa experiência”, comenta Vanessa. “O primeiro contato com o racismo numa dinâmica intrafamiliar de reprodução de um pensamento racista. Por exemplo, aquela criança que é mais retinta é vista como menos bonita.  Isso precisa ser observado não como um problema dela, mas como um problema da sociedade brasileira, que precisa aprender a valorizar o fenótipo africano, o fenótipo negro, e, consequentemente, trazer para essa criança outras perspectivas de autovalorização”. 

O esforço – não natural – que a criança negra precisa empreender para estabelecer uma situação mínima de bem-estar já é cruel. É a morte das suas experiências primárias para a criação de ferramentas de autovalorização, defesa e autopreservação. Não basta apenas ser criança: é preciso se empoderar, não permitir, se defender, se valorizar em suas características mais essenciais. 

“Quando falamos sobre infância, partimos sempre de uma perspectiva social, não é? Porque, senão, teríamos que avaliar caso a caso, identificar o que funciona ou não para determinada família. Socialmente, vivemos em um país racista. Então, a maioria das pessoas negras, a maioria das crianças negras, passa por experiências de racismo no seu primeiro ciclo de vida, no primeiro setênio, na primeira infância”, reforça a psicóloga. 

Ao sair de casa, os primeiros anos na escola também são de desafios que violentam cada vez mais a experiência infantil. Casos de bullying e racismo escolar podem ser destrutivos e configurar novas formas de morte simbólica na primeira infância. 

Vanessa explica que o ambiente escolar pode se tornar nocivo para a socialização dos pequenos, visto que “não há um trabalho consolidado de valorização da história e da cultura negra, da estética negra, ou de reconhecimento do lugar legítimo de pertencimento do povo negro na sociedade brasileira”. Mais uma vez, a criança negra precisa sobreviver por si mesma e enfrentar as violências. 

Quando acaba a primeira infância negra: a morte da inocência

O processo de empobrecimento e miséria vivido pelas crianças negras desde a mais tenra idade também colabora para outro tipo de morte processual e lenta: a das oportunidades. Encerradas em ciclos que iniciaram com a escravização e se perpetuam pelo capitalismo e pelo racismo, a pobreza é uma fragilidade que as coloca em contato próximo com a morte todos os dias, mesmo que a morte física não seja a sua. 

O Rio de Janeiro se destaca de forma muito evidente no cenário nacional, já que foi na capital fluminense que a favelização tem suas origens. O Morro da Providência, no centro, foi a primeira experiência de formação de uma comunidade de crianças negras e que, roubadas de seus direitos à terra, dignidade, moradia e recursos, construiu uma história de ocupação, resistência e conflito em meio à intervenção frequente do Estado. As reverberações disso tornam a cidade uma das mais violentas do país, com um dos maiores índices de truculência policial. 

“Na verdade, o Estado nunca esteve efetivamente proporcionando, a partir de recursos suficientes, uma boa qualidade de vida na favela. A favela se transformou em um território de sobrevivência da população negra, mas também em um território inventivo”, observa a doutora em Psicologia.  

No processo de sobrevivência, em que não se sabe se vai ter aula por uma operação no morro ou numa abordagem policial indevida na entrada da favela, as crianças entram em contato com o principal subterfúgio utilizado como válvula de escape: a cultura. O rap, samba, funk e os movimentos culturais e estéticos das periferias são exemplos de respiro de uma população lentamente sufocada. 

Os breves respiros, entretanto, parecem ser negados aos pequenos. Crianças negras são constantemente sexualizadas ou violentadas, desde a primeira infância. Um menino com cabelo “loiro pivete” ou com “corte do jaca”, mesmo com seis anos, é comparado à figura do “bandido”. Uma menina dançando funk, mesmo que na primeira infância, é colocada em um lugar de erotização e sensualidade quando, na verdade, ela só é uma criança dançando. É a morte da inocência – ou da presunção dela. 

Tudo isso, somado a um ambiente regular de pressão, estresse e tensão contínuos têm impactos severos na psique da criança, como relata Vanessa. “Ser submetido a um estado de estresse na primeira infância é, sim, um agente causador de fatores como ansiedade e outros transtornos que podem aparecer na vida adulta, sem que a gente consiga atribuir uma causalidade lógica àquele ambiente inicial extremamente nocivo”.  

Violação de direitos “rouba” a infância de crianças negras no Brasil. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Quanto tempo dura a infância – e a vida – de uma criança negra?

De joelhos e com as mãos para o alto: foi assim que Marcos Luciano foi assassinado pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) em 2018 na Favela do Muquiço, zona norte da capital, quando tinha acabado de completar 18 anos de idade. Essa história poderia ser velha demais, se eu não tivesse ouvido ela de forma tão fresca e vívida da boca de sua mãe, Bruna Mozer, seis anos depois do ocorrido, enquanto buscava por justiça em frente ao júri de Marielle e Anderson, em outubro de 2024. 

A história me atravessou profundamente por dois motivos: em primeiro lugar, Bruna ainda lutava para que a certidão de óbito do filho fosse nominal, já que Marcos foi dado como indigente no documento (enquanto a mãe pagou o enterro integralmente). O segundo, é que por não ter certidão de óbito em seu nome, Bruna também não conseguia registrar o neto, que o filho deixou ainda bebê.

Marcos morreu três vezes: nas mãos da polícia, em memória e na memória de seu filho. Ironicamente, um jovem negro morto não teve direito à… morrer.  “A juventude negra masculina morre no Rio de Janeiro mais do que se morre em conflitos de guerra declarada”, afirma a psicóloga Vanessa. “No Oriente Médio, em outras regiões do mundo que estão oficialmente em guerra. Então, esse menino negro cresce num horizonte de morte”. 

Os conjuntos de violência simbólica, letal e infantil se misturam nessa história e refletem sobre os impactos que a primeira infância reverbera na infância e adolescência. Claice Silva, educadora popular da ONG Casa Favela, localizada no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, percebe isso em seu dia a dia. 

A professora revela que a violência é sentida pelos alunos de forma bem sutil e, de certa forma, já introjetada de longa data pelo sistema. “Desde muito cedo eles são confrontados e interagem com esse universo, o que eu considero muito prejudicial. Uma criança ou um adolescente ter essa percepção tão cedo é pesado. Mas é uma realidade que, estando dentro da favela, eles enfrentam quase o tempo todo”, comenta. 

Claice sentiu ainda mais esses impactos ao perder um dos alunos da ONG de forma violenta, recentemente. “A gente atendia um menino que foi vítima de violência policial em uma das comunidades aqui perto. Ele foi brutalmente assassinado. Há relatos de que ele ainda estava vivo quando policiais o jogaram de uma certa altura, com a intenção de machucá-lo, matá-lo… Enfim, uma situação muito triste”, diz a educadora. 

Com a tragédia, o irmão mais novo do adolescente assassinado também foi atingido, como conta Claice. “O irmão mais novo desse menino que faleceu também era assistido pela ONG e agora está sendo ainda mais acompanhado pelos psicólogos da Casa Favela. Ele desenvolveu uma certa fobia, uma depressão muito profunda depois da morte do irmão”. 

Rio de Paz faz ato contra mortes de crianças por violência, na praia de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de 2024. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A busca pelo bem-viver das crianças negras

Vanessa se debruça sobre o tema da infância racializada há anos. Além de sua atuação com o Ninho de Infância  Afrikana, um núcleo de fortalecimento de comunidade e infâncias negras do Rio de Janeiro, a pesquisadora também dedicou sua tese de doutorado à figura da criança negra, em especial os meninos. O trabalho “O Muleke e o Afrobetizar: Sankofa nos dias de destruição”, defendido em 2019, pesquisou o horizonte de morte experimentado pelos meninos negros desde a infância.

“Em minha tese, falo sobre como é importante resgatar práticas de socialização e de cuidado com essa infância negra, em especial com esse menino negro, para que ele saia desse horizonte da morte”.

De acordo com a psicóloga, a saída desse horizonte de morte tem uma ligação com a garantia do bem-viver da criança negra em sua primeira infância, a partir do fortalecimento das comunidades. “Acredito muito no legado que foi deixado pelos nossos antepassados, na sabedoria que vem dos terreiros, na sabedoria que vem das organizações tradicionais africanas, para lidar com essa criança de uma forma em que ela se sinta reconhecida, amparada e encorajada a levar adiante esse nosso legado”, diz Vanessa.

Essa parece ter sido mesmo a saída para Claice e as crianças do Casa Favela. O irmão do adolescente assassinado, hoje em situação de depressão, é fortalecido pelos próprios colegas. “As crianças tentam o tempo todo trazê-lo de volta, sabe? Para as atividades dentro da Casa Favela ou ao ar livre, porque ele não quer mais sair de casa. Então, também está sendo um processo de resgate, mas elas não esquecem em nenhum momento a figura desse estudante nosso que faleceu”.

O historiador Luiz Antônio Simas disse, em entrevista recente, que o contrário da morte não é a vida: é a memória. E é na prática que Claice reforça esse ponto. Em um dos projetos de horta popular tocados pela ONG, a lembrança do ex-assistido permanece evocada. “Conversamos com eles, com a família, sobre o nome da horta e tudo mais. Eles decidiram homenagear o menino, dando o nome dele à horta”. 

Herança é a palavra-chave para evidenciar o bem-viver da criança negra.  Enquanto a morte a cerca desde o ventre, é fundamental resgatar o que é fundamento, ancestral e principalmente pulsante. A criança negra que, desde os primeiros passos, consegue enxergar em seus traços sua cultura, sua vivência o que foi e o que existiu antes dela tem maior capacidade de estruturar sua personalidade.

É o que Bruna segue pedindo para a justiça até hoje: que o filho de Marcos Luciano possa, por fim, ter um pai para se lembrar. Uma certidão para marcar seu registro no mundo. De que existiu, de que é de quem foi feito. O fortalecimento comunitário passa pela memória, seja ela afetiva, real, estética, cultural. 

Toda criança negra merece ter a memória do sorvete no parque ao invés do tiroteio e do caveirão.

Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.

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  • Karoline Miranda é carioca, historiadora, jornalista, escritora, mãe de santo, influenciadora e mãe de Pilar de Maria e Gael. É editora no Nós, mulheres da periferia e colunista da Mães Que Escrevem.

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