Nas prateleiras das livrarias, nos programas educativos e entre os brinquedos mais vendidos, a diversidade continua longe de ser uma realidade. Para muitas crianças negras, essa ausência de referências significa mais do que um simples detalhe: ela pode dificultar a construção de uma autoimagem positiva, impactando diretamente seu desenvolvimento infantil pleno.
A pesquisa “Desigualdades Raciais e Primeira Infância”, publicada em 2023 pelo Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (AfroCebrap), revelou que entre as 29 crianças observadas na educação infantil, a maioria delas, negras, coloriu a pele dos desenhos usando tons como rosa claro ou salmão.
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Quando questionadas individualmente sobre o nome dessa cor, todas responderam “cor de pele”. Esse resultado evidencia como padrões raciais hegemônicos são naturalizados desde cedo, influenciando a percepção das crianças sobre si mesmas e sobre os outros.
Desde os primeiros anos de vida, os pequenos precisam lidar com os impactos do racismo — rejeição da própria imagem, baixa autoestima, dificuldade de socialização, ansiedade e estresse tóxico. Entretanto, nem tudo está perdido, a publicação também destaca que iniciativas têm promovido a inclusão e a diversidade na mídia e em produtos, que são voltados à primeira infância e começam a mudar esse triste cenário.
“Livros ilustrados por autoras negras, bonecas com diferentes tons de pele e cabelos crespos, e desenhos animados com protagonistas diversos estão criando novos horizontes para crianças negras, mostrando que elas também podem ser heroínas de suas próprias histórias”, destaca o estudo.
O estudo defende ainda que a literatura infantil focada no universo afro-brasileiro, quando aliada a ações políticas que propõem mudanças na educação, desempenha papel crucial para a construção de identidades positivas entre crianças negras.
“As transformações na literatura, somadas às iniciativas do movimento negro, contribuem para que essas crianças não apenas se reconheçam como negras, mas também passem a valorizar sua cor, histórias e culturas”, ressalta o texto.
Impactos da ausência de referências positivas para crianças negras
Segundo a professora do Instituto de Letras e Humanidades, da Universidade Internacional da Integração Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Míghian Danae Ferreira Nunes, quando as crianças começam a frequentar espaços sociais, a exemplo da escola, especialmente ainda muito pequenas, se deparam com ambiente novo e diferente do familiar.
“Nesse contexto, é fundamental que elas se sintam acolhidas. Poderem se reconhecer nos livros, murais, paineis, atividades e em outros elementos do ambiente escolar é essencial para fortalecer esse acolhimento”, afirma.
Para ela, a necessidade de referência e pertencimento não é exclusiva das crianças. “Nós, enquanto adultos, também buscamos nos sentir representados e reconhecidos em novos espaços que passamos a habitar. Para as crianças, no entanto, esse processo de identificação é ainda mais importante, pois está diretamente ligado ao desenvolvimento de sua identidade”.
De acordo com a especialista, a partir do momento em que a criança não encontra na escola referências que a façam se sentir vista e valorizada, o processo de construção de uma identidade positiva pode ser dificultado.
“Muitas vezes, essas referências também não estão presentes de forma intencional e educativa no ambiente familiar. Assim, quando a escola não cumpre esse papel, a lacuna se torna ainda maior, prejudicando o sentimento de pertencimento e a valorização étnico-racial”, acrescenta.
É essencial que a escola ofereça representatividade não apenas nos livros didáticos, mas também em murais e propostas pedagógicas, nas atividades e na forma como organiza seu espaço, reforça Míghian.
“Para muitas crianças negras, essa escuta e valorização dentro da escola é um passo crucial para reforçar tanto o sentimento de pertencimento à instituição quanto sua identidade étnico-racial. Esse cuidado intencional na construção de um ambiente acolhedor e representativo pode transformar positivamente sua relação com a escola e consigo mesmas”, explica.
Referências positivas além dos livros
Embora a produção de livros que abordem questões de raça e identidade seja importante, a especialista destaca que a representatividade não deve ser limitada a essa ferramenta. Ela alerta que as redes de ensino precisam estar atentas e contar com especialistas na escolha dos livros, tanto aqueles adquiridos fora do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) como os indicados oficialmente.
“Não é suficiente que o livro traga uma criança negra ou mencione uma história situada no continente africano; isso, por si só, não garante sua qualidade. É necessário analisar intencionalidades pedagógicas, relevância, autoria, ilustrações e outros aspectos que tornam o material realmente significativo e educativo”, pontua.
Para a docente, existem diversas formas de promover representações positivas, a exemplo de produções audiovisuais ou práticas pedagógicas que incluam os princípios da Lei 10.639.
Míghian defende que a implementação da norma, que visa incluir a história e a cultura afro-brasileira nos currículos escolares, desde o ensino fundamental até o ensino médio, resulta no aumento da produção de materiais educativos sobre o tema. No entanto, alerta para a necessidade de selecionar esses recursos com critérios rigorosos.
“Não podemos simplesmente assumir que um livro que mencione a África ou apresente uma criança negra seja adequado. É preciso analisar a qualidade pedagógica e representativa desses materiais”, argumenta.
A professora enfatiza a importância da formação contínua dos educadores, para que a escolha de livros seja uma decisão consciente e pedagógica, que vá além da simples presença de elementos da cultura negra.
Para a professora, reconhecer e lidar com esses sinais de forma acolhedora é essencial para garantir que as crianças negras possam se expressar plenamente, combatendo os efeitos do racismo em seu desenvolvimento emocional e educacional.
Papel dos pais e educadores na identificação e enfrentamento da falta de representatividade
Questionada sobre como pais e educadores podem perceber a ausência de representatividade nas crianças negras e identificar os sinais dessa carência no comportamento infantil, Míghian aponta a importância de estar atento aos indícios do deslocamento causado pelo racismo, que se manifestam precocemente.
Segundo ela, as crianças negras começam a apresentar esses sinais desde cedo, evidenciando os efeitos de uma sociedade racista no seu desenvolvimento emocional e social.
A professora explica que as crianças pequenas, quando começam a aprender a falar, são muito comunicativas — gostam de testar palavras, experimentar, descobrir, conversar e expressar o que pensam. No entanto, “ao longo do tempo, muitas dessas crianças vão se tornando mais tímidas, mais caladas, falam menos em público, expressam menos o que sentem e exigem menos.”
Nunes traz um questionamento crucial para entender essa realidade: “essa timidez é uma característica intrínseca da criança ou é uma consequência do racismo?”. E ainda pontua que é fundamental refletir se a introspecção ou timidez é uma qualidade natural, ou algo produzido pelo contexto racista em que a criança está inserida.
Além disso, alerta que se trata de uma responsabilidade que precisa ser dividida entre educadores e a família, mas com maior peso na atuação das educadoras e da instituição de educação infantil.
“A família, muitas vezes sem formação especializada, lida com a introspecção das crianças com os recursos que tem. Já a escola, por sua função de promover a formação integral, deve assumir essa responsabilidade de maneira institucional. É crucial que a escola observe e intervenha de forma consciente e acolhedora, garantindo que as crianças negras possam se expressar plenamente. Isso ajuda a combater os efeitos do racismo no desenvolvimento infantil”.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.