Por: Inês Campelo e Sérgio Miguel Buarque
Toda quinta-feira, as irmãs Rebeca e Radassah têm um compromisso que aguardam com ansiedade a semana toda. É nesse dia que as duas meninas da comunidade quilombola de Cruz da Menina encontram Raquel Oliveira, visitadora do Programa Criança Feliz no município de Dona Inês (PB).
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Radassah e Rebeca, que têm um e dois anos respectivamente, estão entre as 15 crianças da comunidade atendidas pelo programa do Governo Federal voltado para a primeira infância.
“Elas mandam áudio perguntando se vou. Muitas vezes ficam esperando na janela. Quando eu chego, elas correm dizendo: ‘Kel chegou, Kel chegou’.”
Esse vínculo afetivo criado entre as meninas e a visitadora, construído ao longo de meses de contatos, é fundamental para o sucesso do programa.
A alegria das meninas também vem do fato de que, durante os encontros que duram, em média, 40 minutos, mãe e filhas aprendem de forma lúdica, fazendo tudo parecer uma grande brincadeira.
“A visitadora vem uma vez na semana acompanhar as meninas e traz várias atividades. Sempre utiliza coisas domésticas: tampinha de garrafa, pregadores de roupa… é um acompanhamento muito bom no desenvolvimento da coordenação motora da criança. Para mim, é um excelente trabalho”, define Eliete Pereira Frazão, mãe de Rebeca e Radassah.
O Criança Feliz, que funciona desde 2017 em Dona Inês, tem sido uma ferramenta importante para que a cidade apresente bons indicadores relacionados à primeira infância, culminando com o recebimento, em 2024, do Selo Unicef.
Mas em Cruz da Menina, o programa vai além. Durante os encontros, enquanto repassam todo conteúdo comum, as visitadoras também buscam fortalecer os vínculos das crianças com a comunidade a partir de um trabalho de valorização da história local, desenvolvendo um sentimento de pertencimento com o lugar onde moram.
Para isso, as visitadoras recebem formação, direcionamento e capacitação específica para o atendimento à comunidade quilombola.
“Elas são preparadas para respeitar, acima de qualquer coisa, a história da própria comunidade. O olhar precisa e deve ser diante da realidade do chão do território”, explica Maria Rejane da Silva Araújo, coordenadora do Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) do município.
A formação para os trabalhadores que atuam diretamente na comunidade está dentro do plano de ação da assistência social do município. Em 2024, duas visitadoras dividiram o atendimento em Cruz da Menina. Além de Raquel, que atende a três famílias semanalmente, Paula Clementina da Silva atende a outras seis.
Desenvolvimento mais rápido
Eliete tem outras duas filhas mais velhas, Rúbia (dez anos) e Raíssa (seis anos). Por conta da idade, elas não tiveram oportunidade de entrar no programa.
“Quando eu fui lá no CRAS atualizar meu Cadastro Único me falaram sobre esse programa. Aí eu me cadastrei ainda grávida de Rebeca. Eu achei muito bom esse acompanhamento” lembra Eliete.
Assim, comparando as situações distintas vividas na criação das filhas, a mãe pôde perceber a vantagem do acompanhamento semanal feito pelo programa.
“O desenvolvimento é mais rápido. Porque quando a pessoa é mãe, é uma correria, né? No dia a dia, você não tem muito tempo para fazer isso ou aquilo. E essa visita, uma vez na semana, ajuda bastante o desenvolvimento delas”.
Já Rafaela Henrique dos Santos, que tem 32 anos e mora na comunidade desde que nasceu, entrou no programa apenas em 2024, antes de ter a primeira filha. Quando conversou com a reportagem, estava com nove meses de gestação, só esperando a hora de ir para a maternidade.
“Eu conheci o Criança Feliz através da minha irmã, que tinha colocado a minha sobrinha no programa. Aí, quando eu descobri que estava grávida, quis entrar logo. A visitadora está me visitando até hoje. E vai me visitar por muito tempo”.
Ela conta que durante as visitas aprendeu muito sobre a gestação. Nos últimos meses também participou de palestras com a enfermeira, que orientou sobre os primeiros cuidados com o bebê.
“E teve com a nutricionista, que falou da importância dos alimentos. De como se alimentar bem ajuda no bom crescimento do feto e na boa gestação como um todo”.
Atenta ao trabalho feito pelas visitadoras com as crianças da comunidade, Rafaela aponta outra questão importante do programa.
“Às vezes, a mãe não percebe que o filho tem alguma deficiência. Mas as visitadoras percebem logo e já encaminham as crianças para serem acompanhadas por especialistas”.
Rafaela demonstrou estar muito satisfeita com o atendimento que ela, e também a sobrinha, vem recebendo do programa. Em tom de brincadeira, fez apenas uma reclamação: “São só três anos. Era para ser mais tempo…”
“Como estou linda”
Quem entra na Escola Municipal Educador Paulo Freire, em Cruz da Menina, tem sua imagem refletida em um espelho fixado de frente para a entrada principal da instituição, que faz parte da rede de ensino municipal.
Mais do que uma questão estética, o espelho foi colocado ali com o objetivo de despertar, por meio da aceitação da cor da pele e do cabelo, o sentimento de pertencimento e vínculo com a história de luta da comunidade.
“Uma das coisas que a gente trabalha muito forte aqui dentro da comunidade é a escola. Então, a gente pensou em colocar um espelho na entrada para que todas as vezes que as crianças chegassem, elas se vissem”, explica Bianca Quilombola, presidente da associação local.
Bianca, que tem 41 anos, lembra que faz parte de uma geração que tinha dificuldade de se aceitar como negra e, muito por conta de sua história de vida, reconhece a importância do sentimento de pertencimento na conquista de direitos por parte da comunidade.
Por isso, ela fica feliz com a postura das crianças diante do espelho da escola. “Todas elas dizem: ‘como estou linda, estou bonita, sou linda’. Todas com cabelo solto, black, cabelo trançado, que muitas de nós não usávamos. Hoje nós podemos dizer que nossas crianças têm já esse sentimento de pertencimento, aceitação, esse sentimento que muitos dos nossos mais velhos não têm”.
Fernanda de Araújo Oliveira, no artigo “Bianca Cristina e o Quilombo Cruz da Menina: Trajetória e Resistência Comunitária em Dona Inês/PB (1994-2016)” observou que o autorreconhecimento é um processo difícil e doloroso, “pois envolve diretamente assumir uma identidade negra que foi posta historicamente na marginalização”.
Rafaela Santos, que além de participar do Criança Feliz ocupa a vice-presidência da associação de moradores, também teve um processo difícil de aceitação.
“Eu sempre queria alisar o cabelo. Pagava caro e, no outro dia, caia. O cabelo não aguentava a química, aí eu desisti de fazer isso. Deixei meu cabelo natural, acho que faz mais de 10 anos que eu alisei meu cabelo pela última vez. E ele está natural e eu acho ele lindo assim, do jeito que ele é”.
Experiência parecida foi vivida por Bianca Quilombola. “Eu mesma vim me libertar da progressiva, que é a questão de alisar cabelo para agradar os outros, em 2017. Então, de 2017 para cá, eu não sei o que é colocar um alisante no cabelo, não sei o que é colocar uma escova a mais”.
Para Bianca, as coisas estão mudando para melhor. “Hoje, se você chegar na comunidade, você vai ver a diferença das crianças. Agora, as nossas crianças se aceitam como são. Você chega na casa, elas estão com o cabelo cacheadão, cabelo solto, esvoaçado”.
Rafaela lembra que a mudança também se materializa na forma das crianças se comportarem e se relacionarem.
“Existiam algumas brincadeiras que hoje a gente não pode deixar existir mais. Na época, a gente não sabia, só que agora a gente tem o conhecimento. A gente sabe e repassa para as outras crianças que estão vindo, as criancinhas pequenininhas, para que elas não reproduzam e não sofram aqueles bullying que a gente sofria, mas não entendia”.
Um ponto de inflexão na forma como a comunidade passou a se aceitar e desenvolver um sentimento de pertencimento com o território onde vivem foi quando recebeu a certidão de autodefinição como comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares, em de 12 de março de 2008.
História de geração para geração
O município de Dona Inês está localizado no brejo paraibano (a 153 km de João Pessoa), com uma população de 10.380 pessoas (Censo 2022). A comunidade quilombola de Cruz da Menina está na Zona Rural do município, a aproximadamente dois quilômetros do centro da cidade. Atualmente, 110 famílias moram no território quilombola.
A comunidade nasce de um processo territorial singular, que é contado de geração para geração, tendo muitas versões sobre os fatos que começaram a ocorrer em 1877.
O curioso é que tem origem em um episódio de nítida violação de direitos da primeira infância, quando um fazendeiro poderoso negou água e comida para uma garotinha que fugia, com os pais, da grande seca que castigava a região. Conheça a história no vídeo abaixo:
Infância antes e hoje
As mudanças que acontecem em Cruz da Menina também têm impactado positivamente na primeira infância. Na comunidade, todas as crianças com idade escolar frequentam as aulas e estão com a carteira de vacinação em dia.
“Você vê muita diferença. A minha infância foi cuidar das minhas irmãs. Aos quatro anos, minha mãe saía para trabalhar na roça e me deixava em casa cuidando das minhas outras duas irmãs. A gente tinha aquela obrigação de ter que pegar lenha, pegar água. A gente não teve infância livre, porque a gente tinha que, de alguma forma, ajudar”, compara Bicanca Quilombola.
Mas a melhora da qualidade de vida também se torna visível nas questões materiais.
“Minha mãe, minha avó, minha bisavó, lá atrás, não tinham uma casa decente. Eram casas cobertas só com palha e só o chão batido. O fogo era a lenha e não existia luz elétrica. Luz elétrica aqui foi só a partir dos anos 1990”, lembra Bianca.
Para ela, hoje a vida das pessoas da comunidade melhorou bastante, o que se reflete diretamente no desenvolvimento das crianças pequenas.
“A gente tem luz, bujão de gás, geladeira, ventilador, micro-ondas. A gente tem internet e uma escola dentro da comunidade. A gente tem a casa decente, as famílias, todas elas têm suas casas de alvenaria, cobertinha de telha, tem seu banheiro decente. E isso, para nós, é muita evolução, comparado com o que nós não tínhamos lá atrás”.
Claro que a comunidade ainda enfrenta muitos problemas, parte deles na área da saúde e que afetam diretamente a primeira infância.
“Nós até temos posto de saúde, porém, não dentro do território. Fica um pouquinho distante e não atende só Cruz da Menina. A gente recebe atendimento, mas um atendimento junto com outros setores. Não é um posto de saúde direcionado para o quilombo”, lamenta Bianca.
Segundo ela, o ideal seria ter um acompanhamento direcionado para as famílias quilombolas.
“Porque a gente tem problemas específicos. Temos, por exemplo, muita questão de hipertensão dentro da comunidade. Para a gente ter um atendimento, a gente tem que sair entre 3h e 4h da manhã para pegar uma ficha. Aí, se não pegar, vai ter que ir outro dia”.
Mesmo assim, as mudanças conquistadas fazem Rafaela pensar em um futuro muito melhor para a filha.
“Vai ser diferente, né? Porque a realidade é totalmente diferente de quando eu nasci. Vou tentar passar um pouco para ela do que a minha mãe ensinou. Mostrar para ela o que é certo e o que é errado”.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.