O Brasil é o quinto país do mundo que mais consome anime e mangá. Por aqui, 55% da população dá audiência para esse tipo de entretenimento, segundo informações da revista Jovem Nerd. Aos poucos, desde os anos 1990, os desenhos feitos no Japão entraram nos mais diversos espaços, entre eles os lares de jovens negros e periféricos.
Para a psicóloga infantil Darcielle Macedo, fã assídua de animes, as histórias são tão bem construídas que para um jovem negro se identificar não é necessário se ver representado nas telas ou nas páginas.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
“A gente tem animes de muito sucesso, como ‘Naruto’, por exemplo, que mostram mais da realidade do jovem pobre e preto do que muitos outros conteúdos. Falamos de um protagonista pobre, órfão, que é marginalizado pela sociedade e possui um mal oculto dentro dele. O ‘Naruto’ passa fome, passa vontade, e deseja poder ascender. Que sentimento mais se assemelha aos sonhos de tantos pretinhos e pretinhas por aí?”, questiona.
Outro ponto destacado por Darcielle é que, normalmente, quem foi criança na década de 1990, hoje em dia já tem filhos e passa esse legado de gostar de cultura pop, como algo de família. É o caso da roteirista carioca Thais Hern, de 36 anos, uma das organizadoras do evento Perifacon, iniciativa de amantes de quadrinhos, livros, desenhos e cultura pop no geral, que cresceram nas periferias de São Paulo.
“Comecei a consumir anime muito nova, mas antes do anime, o que me levou a consumir cultura pop em geral foi o meu pai. Ele curtia muito Tokusatsu, que são as séries japonesas de Super Sentais, de Jaspion, etc. Então eu assistia muito com ele. Eu lembrei de sentar no sofá, eu muito pequenininha”, relembra.
Thais conta que mais ou menos nesse mesmo período as emissoras de televisão começaram a transmitir animes como “Cavaleiros do Zodíaco”, “Dragon Ball” e “Shurato”. Para ela, a identificação de jovens negros e periféricos começa quando há facilidade no acesso a tais conteúdos, afinal, as produções passavam na TV aberta.
“O que mais chega pra gente aqui de anime e mangá são histórias de jovens que estão à margem de uma sociedade. E que por talento e perseverança eles conseguem atingir seus objetivos de vida, construir amizades e se tornar pessoas importantes para suas comunidades a partir dessas lutas que travam. Acredito que os jovens negros se identificam muito com as batalhas diárias enfrentadas para chegar em algum lugar”, completa a roteirista.
Representatividade negra é baixa, mas já existe
A estudante Anália Gomes, de 12 anos, também foi apresentada ao universo de anime e mangá por sua família, no caso, a mãe. Ela conta que apesar de nunca ter assistido nenhum conteúdo com protagonismo negro, sabe que alguns desenhos possuem, sim, personagens.
“Os ‘Bleach’ e ‘Afro-Samurai’ têm uma ótima representatividade e diversidade. Mas eu me identifico bastante com a Mina Ashido, de ‘My Hero Academy’, por ela ser uma pessoa bem alegre e comunicativa, assim como eu”, relata.
Apaixonada por animes e mangás dos gêneros de ação, comédia e fantasia, para Anália “o anime traz emoções, faz você ter empatia e até uma certa identificação com os personagens”.
A psicóloga Darcielle enfatiza que por um tempo encontrar personagens negros em animes era difícil e quase raro, mas isso tem mudado.
“A construção desses personagens é extremamente importante quando falamos de representatividade dentro do universo dos animes, ver na tela alguém semelhante a nós e poder nos enxergar fisicamente em um personagem é muito satisfatório”, defende.
Entre os personagens negros, estão: Canary (Hunter x Hunter), Killer Bee (Naruto), Afro (Afro-Samurai), Yoruichi (Bleach), Kaname Tosen (Bleach), Andrew Gilbert (Sword Art Online), Uub (Dragon Ball), Kilik Rung (Soul Eater), Atsuko Jackson (Michiko to Hatcin), Yasuke (Yasuke), e Caska (Berserk).
Sexualização das personagens femininas
Apesar de bem jovem, Anália já observou a sexualização de personagens femininas nos animes e mangás e reprova. “Infelizmente é algo bem frequente. Muitas vezes eles fazem isso para atrair o público mais rapidamente, eu acho”, avalia.
Para a psicóloga ouvida pela reportagem, a sexualização feminina se tornou comum porque as obras não são pensadas inteiramente para crianças. A profissional destaca que adultos compõem parte signifcativa da audiência de animes e mangás.
“Se a gente parar para pensar, muito marmanjo assiste esses desenhos. Se as empresas pararem de sexualizar, as personagens mulheres vão acabar perdendo audiência e, consequentemente, dinheiro. É triste porque a maioria das histórias nem exige que haja algo de cunho sexual”, reforça Darcielle.
Natália Lima, de 13 anos, também se sente incomodada com a sexualização das mulheres nos animes. Ela conta que a primeira vez que assistiu “Berserk”, junto a seu irmão mais velho, descobriu que havia uma personagem negra central na história: a Caska, porém se trata de mais uma figura feminina sexualizada.
“Ela [Caska] é uma personagem tão legal, com uma história sensacional. Não havia a menor necessidade de colocar isso no anime. Eu acho que talvez seja assim que os japoneses enxerguem as mulheres negras, sei lá. Fiquei triste”, diz.
A psicóloga Darcielle considera fundamental a construção de personagens que explorem outros lados da feminilidade negra para que as meninas que consomem animes e mangás não se sintam agredidas com o que suas heroínas fazem nas histórias.
“Temos que pensar que jovens se espelham. Para além do entretenimento, é essencial construir narrativas que não apenas satisfaçam o prazer de homens adultos, mas que tragam bons modelos para as crianças e jovens se espelharem”, adverte.
Por onde começar?
Segundo a roteirista Thais Hern, existem diversas obras de anime e mangá que jovens negros que nunca consumiram esse tipo de conteúdo podem se interessar, como “The First Slum Dunk”, que é sobre basquete e tem personagens negros sem estereótipos de negritude.
“Personagens legais, história legal, tem um ritmo legal. Ele é rápido, ele é constante, então eu indico o filme pra quem tá começando e acho que vai se amarrar demais”, sugere.
Thaís cita ainda “Afro-Samurai” e “Bleach” para quem deseja encontrar personagens negros nas obras. Já Anália Gomes indica que as pessoas comecem a assistir produções do Studio Ghibli para terem uma visão mais ampla de outros animes, como “A Viagem de Chihiro”, “Castelo Animado” e “Princesa Mononoke”.
“A cultura japonesa é universal, com isso, hoje em dia temos um acesso mais rápido e fácil fazendo com que acessamos ela e acabamos a tornando mais popular. Acho que a história e a caracterização dos personagens desperta um certo interesse”, diz a adolescente.
Natália Lima recomenda “Berserk”, “Naruto” e “Yu Yu Hakusho”. Para a jovem, as histórias são fascinantes e garantirão mais fãs quando novas pessoas descobrirem. “Eu gosto muito desses animes, passam lições de vida e humor. Acho que é uma boa ideia para começar”.
E quem deseja ingressar neste mundo a partir de eventos, Thais Hern indica o PerifaCon.
“A PerifaCon garante que todos são bem-vindos àquele espaço, todos devem ser respeitados, todos devem curtir. Tem ali um espaço onde novos artistas estão disponíveis, desenvolvedores de jogos estão apresentando e disponibilizando o seu trabalho para que as pessoas possam jogar esses jogos independentes também. A tendência é que a gente se torne cada vez mais plural”.