A promoção da saúde entre os povos indígenas no Brasil enfrenta desafios persistentes, como o difícil acesso aos serviços, a rotatividade de profissionais e a imposição de cuidados ocidentais, muitas vezes alheios aos saberes tradicionais. Esses fatores aprofundam desigualdades e comprometem o desenvolvimento pleno das crianças indígenas, especialmente na primeira infância.
A diversidade sociocultural se reflete em diferentes concepções de saúde, que englobam práticas tradicionais, como rituais, técnicas corporais e uma alimentação específica, todas voltadas para o fortalecimento do bem-estar.
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O Brasil abriga 305 etnias indígenas, que falam 274 idiomas diferentes, representando 0,83% da população total, com maior concentração nas regiões Norte e Nordeste, mas presente em todo o território nacional, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Contudo, a realidade é marcada por profundas desigualdades. Para se ter dimensão do problema, o estudo “Desigualdades em Saúde de Crianças Indígenas”, publicado em abril de 2024 pelo Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), revela que as taxas de mortalidade infantil entre as populações indígenas são significativamente mais altas do que entre as crianças não indígenas.
O estudo mostra que bebês indígenas têm 2,5 vezes mais chances de falecer antes dos 27 dias de vida. O levantamento abrangeu o período de 2018 a 2022 e revelou números preocupantes. No ano final da série, a mortalidade entre crianças indígenas de até quatro anos alcançou 34,7 óbitos a cada mil nascidos vivos, evidenciando a vulnerabilidade dessa população.
Esse abismo se torna ainda mais evidente ao considerar a faixa etária de até quatro anos, em que a probabilidade de morte chega a ser seis vezes superior. As razões por trás dessa desigualdade incluem complicações durante a gestação, além da alta incidência de doenças infecciosas, respiratórias e metabólicas, refletindo as barreiras de acesso a cuidados de saúde adequados e contínuos.

A análise das causas de óbito entre crianças indígenas na faixa etária mencionada em 2022 revelou um dado alarmante: as doenças respiratórias foram responsáveis por 18% das mortes, enquanto as doenças infecciosas corresponderam a 14%. Esses números evidenciam a vulnerabilidade dessa população diante de condições que poderiam ser prevenidas.
O levantamento se baseou em dados públicos extraídos do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Departamento de Informática do SUS (DataSUS).
O estudo foi conduzido por uma equipe interdisciplinar composta por quatro pesquisadoras: Emilene de Sousa, socióloga e docente da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Márcia Machado, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC); Natacha Silva, nutricionista que atua na atenção à saúde indígena pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Rondônia; e Tayná Tabosa, fisioterapeuta e pesquisadora vinculada à UFC.
Impactos devastadores da crise Yanomami na saúde das crianças
A degradação ambiental, que resulta na diminuição da disponibilidade de alimentos e na proliferação da malária, tem sido apontada como a principal causa da crise humanitária na Terra Yanomami, cuja gravidade gerou forte comoção nacional em janeiro de 2023.
A maior reserva indígena do Brasil, com mais de 9 milhões de hectares, abrange os estados de Roraima e Amazonas. Por trás da degradação, está o avanço do garimpo ilegal, um problema persistente há décadas no território.
À época, uma reportagem da agência Sumaúma revelou que 570 crianças haviam falecido por causas evitáveis na terra indígena entre 2019 e 2022, o que fez com que o Ministério da Saúde declarasse Emergência Sanitária de Importância Nacional (Espin). Um ano depois, em janeiro de 2024, a Agência Pública mostrou novas imagens que indicavam que a desnutrição seguia atingindo crianças indígenas.
Em dezembro de 2023, duas fotografias tiradas na comunidade de Õnkiola, na região de Auaris, no extremo norte da Terra Yanomami, registraram um trabalhador da saúde do governo carregando uma criança visivelmente desnutrida.
A investigação da Pública revelou que o Polo de Saúde da comunidade precisou ser fechado três vezes ao longo do ano devido à falta de alimentos, o que gerou grande indignação entre os moradores indígenas. Esse abandono resultou em confrontos entre a comunidade e as equipes de saúde, agravando ainda mais as falhas no atendimento.
Já a publicação do NCPI, de abril do ano passado, citada neste texto, aponta que na região Amazônica, entre os Yanomami, 56% dos adultos vivem sem uma fonte de renda regular, o que os coloca em situação de risco alimentar.
De acordo com o levantamento, se trata de um problema que também afeta aqueles que não têm acesso ao Bolsa Família. Entre as famílias beneficiárias desse programa, observou-se uma mudança nos hábitos alimentares, com um aumento no consumo de alimentos industrializados.
Além disso, o estudo aponta que a prevalência de baixa estatura entre as mães alcançou 73%, o que é um indicativo de desnutrição. Esse cenário compromete o desenvolvimento das crianças, que, ao atingirem a fase adulta, enfrentarão dificuldades tanto na produção quanto na compra de alimentos, agravando o ciclo de insegurança alimentar e a falta de geração de renda.

Barreiras no acesso à saúde
A professora associada do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade do Ceará e membro do NCPI, Marcia Machado, aponta que os principais desafios para a oferta de serviços de saúde às comunidades indígenas incluem o difícil acesso físico aos territórios, a escassez de transporte adequado e a alta rotatividade de profissionais de saúde.
Além disso, as barreiras culturais dificultam a construção de vínculos entre equipes médicas e comunidades, gerando resistência às intervenções de saúde. A professora destaca ainda a fragilidade na gestão do sistema de saúde indígena, com a falta de integração entre o Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena (Siasi) e o Sistema Único de Saúde (SUS), comprometendo o monitoramento eficiente das condições de saúde dessa população.
“Em algumas regiões da Amazônia, o deslocamento até as aldeias pode levar até cinco dias de barco, o que torna difícil não só o acesso a serviços regulares, mas também a permanência de profissionais qualificados”, explica.
Segundo a pesquisadora, “os territórios indígenas são frequentemente invadidos por interesses ligados à exploração de recursos naturais, como a mineração, o que impacta diretamente a saúde e o modo de vida tradicional dessas populações”.
De acordo com ela, a presença de atividades ilegais, como o garimpo, tem sido um dos principais fatores que agravam essa situação, contaminando rios e fontes de alimentos com mercúrio, o que afeta principalmente as crianças indígenas.
A autora do estudo explica que a mortalidade infantil nas aldeias está diretamente relacionada a doenças respiratórias, gastrointestinais e à desnutrição, com uma taxa de incidência de doenças do aparelho respiratório “duas vezes maior entre a população indígena do que entre as não indígena”.
A desnutrição, frequentemente associada a problemas endócrinos e metabólicos, é outro fator crítico para as altas taxas de mortalidade. Para ela, a ocupação irregular dos territórios, incluindo o desmatamento e o uso de agrotóxicos, tem contribuído para a escassez de alimentos tradicionais e para o agravamento da saúde das crianças.
Machado também menciona uma tendência positiva na redução da mortalidade neonatal entre 2018 e 2021, com uma queda de 14,7% para 11,8%. Contudo, a partir de 2022, “houve um aumento nas taxas, o que aponta para a necessidade de revisão das políticas de saúde pública direcionadas a essa população”.

O aumento das taxas de mortalidade infantil desde 2020, segundo ela, exige a compreensão dos fatores determinantes e um reforço nas ações do Ministério dos Povos Indígenas, especialmente no que diz respeito ao acesso ao pré-natal e à atenção básica.
A permanência de profissionais de saúde, segundo Marcia, é um desafio, e a capacitação em saúde indígena é fundamental para promover um atendimento respeitoso e eficaz. A valorização das práticas culturais indígenas e o trabalho conjunto entre saberes tradicionais e o sistema de saúde são essenciais para garantir a efetividade das ações.
E ainda, a criação de políticas públicas que incentivem a permanência das equipes de saúde nas comunidades e o respeito às práticas culturais é uma das estratégias sugeridas. “É preciso também realizar movimentos de territorialização para monitorar a situação de saúde das famílias, promovendo um atendimento mais próximo e eficiente”, afirma.
Ela ainda propõe investimentos em programas de transferência de renda que estejam alinhados com as necessidades alimentares e culturais das comunidades, garantindo que a população indígena tenha acesso a alimentos naturais e adequados.
Machado destaca a importância de uma política nacional de atenção à saúde indígena, que contemple a proteção territorial e a promoção da equidade. E acredita que, com o respeito às especificidades culturais e a implementação de medidas concretas, como o monitoramento contínuo de indicadores de saúde, será possível melhorar as condições de vida e saúde das populações indígenas nos próximos anos.
Essa visão, segundo ela, se alinha ao objetivo de promover a preservação das culturas indígenas e garantir que, “nos próximos anos, possamos ver um avanço significativo na qualidade de vida e saúde dessa população, os primeiros habitantes do Brasil”.
Recomendação para gestores públicos
O estudo do NCPI destaca ainda que o cuidado integral às infâncias indígenas requer a valorização das culturas locais e o fortalecimento das políticas públicas, em um compromisso coletivo entre governo, sociedade civil e comunidades indígenas.
Para isso, apresenta soluções concretas para enfrentar as desigualdades em saúde infantil nas comunidades indígenas. Veja abaixo:
- Capacitação continuada – Promover formação permanente para profissionais de saúde sobre a cultura indígena e os impactos de alimentos ultraprocessados;
- Integração de sistemas – Unificar o Siasi com outros sistemas do SUS para melhorar o monitoramento e a continuidade do atendimento;
- Atenção diferenciada – Adaptar os programas de saúde infantil, como a Estratégia Saúde da Família e o Programa Criança Feliz, respeitando os saberes tradicionais;
- Proteção ambiental – Combater a invasão de territórios indígenas e implementar medidas rigorosas para prevenir a contaminação do solo e da água, fatores que impactam diretamente a saúde das crianças.