A anemia falciforme é uma das condições hereditárias mais comuns entre crianças negras no Brasil, trazendo desafios que impactam diretamente a primeira infância. A doença compromete a produção de glóbulos vermelhos, alterando sua forma e fragilidade, dificultando o transporte de oxigênio pelo corpo.
A partir disso, surgem complicações como dor intensa, infecções frequentes e risco de tromboses, que podem comprometer o desenvolvimento saudável das crianças.
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Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 56% da população brasileira se autodeclara como negra (pardos representam 43,3% e pretos, 10,6%), o que torna o impacto da anemia falciforme entre as crianças negras ainda mais evidente e urgente.
Segundo dados do Ministério da Saúde, cerca de 8% da população negra do país vive com essa condição, que exige atenção contínua e políticas de saúde voltadas para prevenção, diagnóstico precoce e acompanhamento especializado.
O Fundo das Nações Unidades para a Infância (Unicef) em parceria com o instituto Promundo lançou, em maio de 2023, a estratégia Primeira Infância Antirracista (PIA), que é uma ação voltada à sensibilização sobre os impactos do racismo no desenvolvimento infantil na primeira infância.
Além de uma websérie com sete vídeos sobre parentalidade antirracista, foi lançado quatro cadernos, todos disponíveis no site do Unicef. Os cadernos abordam conceitos focados no racismo estrutural, institucional e sistêmico, branquitude, inconsciente e identidade. Também há a atenção para doenças, a exemplo da anemia falciforme, comum entre as crianças negras.
Realidade de crianças negras com anemia falciforme no país
De acordo com a doutora em enfermagem e especialista em direitos humanos Daniela Tafner, professora convidada no Instituto de Pesquisa Afro-Latino-Americana (Alari) da Universidade de Harvard, a qualidade de vida das crianças negras diagnosticadas com anemia falciforme no Brasil está profundamente associada ao acesso a serviços de saúde e a uma alimentação adequada, saneamento básico e outras condições fundamentais.
“Durante muito tempo, falar sobre anemia falciforme era algo raro”, observa. Para ela, “o que contribuiu para a invisibilização da doença, resultado do racismo estrutural e institucional que permeia o Brasil desde seu descobrimento.”
Segundo Daniela, o acompanhamento médico adequado é fundamental, mas fatores externos, como a precariedade socioeconômica, comprometem frequentemente a continuidade do tratamento.
“Mesmo com acompanhamento e medicação adequada, às condições em que essas crianças vivem — muitas vezes em locais com saneamento e água de má qualidade — aumentam os riscos para infecções oportunistas,” ressalta.
A condição socioeconômica das famílias negras impacta fortemente o cuidado e a saúde das crianças com anemia falciforme. A especialista cita os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2024, que apontam que as mulheres negras, que compõem a maioria dos responsáveis por essas crianças, possuem menor renda e enfrentam mais barreiras de acesso a serviços de saúde e educação.
Daniela explica que a situação dessas famílias reflete diretamente na vida das crianças. “As condições desfavoráveis tornam esses dependentes mais suscetíveis a menor frequência escolar e menos anos de estudo, entre outros impactos.”
A doutora também menciona que as desigualdades raciais que atingem essas crianças iniciam-se no pré-natal, quando gestantes negras muitas vezes não recebem o acolhimento e a assistência necessários.
“A mulher negra enfrenta uma verdadeira via crúcis para obter atendimento”, afirma, destacando que esse ciclo de negligência continua ao longo da vida da criança, com barreiras que fragilizam o acompanhamento de sua saúde.
Desafios no ambiente escolar e no atendimento médico
A anemia falciforme leva frequentemente ao afastamento das atividades escolares devido a dores e outras complicações, prejudicando o desempenho escolar. A pesquisadora em Harvard cita o relato de uma professora que notou que sintomas como sonolência e cansaço, característicos da anemia falciforme, eram desvalorizados pelos profissionais de saúde e professores.
“A criança é vista como alguém que não quer estudar, quando, na verdade, enfrenta um cansaço extremo devido à doença”, ressalta.
Essa desvalorização também ocorre em serviços de emergência, onde pacientes negros com anemia falciforme relatam dificuldades de atendimento. A professora traz uma citação da presidente da Associação de Pessoas com Doença Falciforme e Talassemia do Estado de Minas Gerais (Dreminas), Maria Zenó Soares, a respeito das crianças negras que têm comorbidade.
“Sofrem racismo por ser pobre, por ser negro, por ter a doença. A discriminação de profissionais da saúde de não acreditar no nosso relato no momento de dor, principalmente nos serviços de urgência e emergência, considerando a gente como pessoas viciadas em morfina… A invisibilidade da doença falciforme se dá devido ao racismo das instituições de saúde”, alerta Tafner ao citar Soares.
Urgência de espaços de cuidado especializados
Diante da complexidade da anemia falciforme, Daniela Tafner enfatiza a necessidade de espaços de atendimento especializado e de profissionais capacitados para tratar essa população de forma integral e digna.
Ela destaca que a ciência tem avançado nas discussões sobre o tratamento da doença e que é necessário compartilhar esse conhecimento com as comunidades afetadas.
“A criação de espaços especializados e a educação em saúde são essenciais para garantir que essas crianças tenham uma qualidade de vida melhor”, afirma, defendendo também a inclusão do tema na formação dos profissionais de saúde.
A profissional de saúde acredita que a ciência tem avançado no conhecimento e tratamento da doença, e cada vez mais tem se discutido a criação de espaços especializados de cuidado para a criança, adolescente e adultos com anemia falciforme.
“Visto que esta doença demanda cuidados especializados, que os profissionais estejam continuamente atualizados para o diagnóstico precoce, início do tratamento de forma integral, preparo, acolhimento e compartilhamento do conhecimento com essas famílias”, destaca.
Para ela, também se faz necessário a ampla divulgação sobre a doença e a educação em saúde nas comunidades, bem como o assunto ganhar espaço nos ambientes formadores.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.