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Primeira infância em comunidades quilombolas nordestinas ainda é marcada por desigualdades no acesso à saúde e educação

A reportagem visitou comunidades quilombolas na Bahia, em Pernambuco e no Ceará para conhecer as particularidades da primeira infância nesses locais, com foco em saúde, educação, identidade e combate ao racismo
Duas crianças quilombolas brincam em rua de terra

Foto: Reprodução

31 de agosto de 2024

Em pleno 2024, crianças de comunidades quilombolas no Nordeste enfrentam uma realidade desafiadora. Com acesso limitado a serviços essenciais, como saúde e educação, 68,19% da população quilombola brasileira vive na região, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essas comunidades lutam para garantir um desenvolvimento saudável e direitos básicos a partir da primeira infância.

Para compreender melhor essa realidade, a reportagem visitou comunidades quilombolas na Bahia, em Pernambuco e no Ceará para conhecer as particularidades da primeira infância nesses locais, com foco em saúde, educação, identidade e combate ao racismo. A reportagem coletou relatos e dados nesses territórios, destacando a busca por iniciativas que promovem o desenvolvimento integral das crianças quilombolas.

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Segundo o Ministério da Saúde, “a primeira infância é o período que abrange os primeiros seis anos completos ou 72 meses de vida da criança”. Nessa fase, ocorre “o amadurecimento do cérebro, a aquisição dos movimentos, o desenvolvimento da capacidade de aprendizado, além da iniciação social e afetiva”.

Pela primeira vez,  por meio  de pesquisa de autoidentificação, feita pelo IBGE há dois anos, foi realizado um levantamento oficial da população quilombola no Brasil. Conforme os dados do Censo Demográfico de 2022, produzido pelo IBGE, no Brasil existem 1.327.802 pessoas quilombolas. É na região Nordeste que se concentra a maioria delas, contabilizando 905.415. A Bahia concentra a maior população quilombola do país, com 397.059 pessoas, o que representa quase 30% do total no país. Entretanto, ainda não há um levantamento oficial do número de crianças quilombolas na primeira infância — ou seja, quantas são as crianças quilombolas de zero a seis anos no Brasil.

A infância exige investimentos, políticas públicas, engajamento familiar, escolar e comunitário. Nessa fase, são necessários direitos e cuidados para garantir um desenvolvimento pleno e saudável.  Nos quilombos, esse momento enfrenta desafios específicos, mas também celebra tentativas de progresso.

Infográfico sobre o estado baiano, que possui cinco das dez cidades do país mais quilombolas: Senhor do Bonfim (15.999); Salvador (15.897); Campo Formoso (12.735); Feira de Santana (12.190) e Vitória da Conquista (12.057). Ainda de acordo com o Censo, da população quilombola que mora na Bahia, apenas pouco mais de 5% vive em territórios demarcados. Enquanto a grande maioria, 95%, permanece fora.
Infográfico sobre o estado baiano, que possui cinco das dez cidades do país mais quilombolas: Senhor do Bonfim (15.999); Salvador (15.897); Campo Formoso (12.735); Feira de Santana (12.190) e Vitória da Conquista (12.057). Ainda de acordo com o Censo, da população quilombola que mora na Bahia, apenas pouco mais de 5% vive em territórios demarcados. Enquanto a grande maioria, 95%, permanece fora.

Lutas coletivas ampliam assistência em saúde e educação na primeira infância quilombola da Bahia

Localizada a 604 km da capital baiana, a comunidade Rocinha fica entre os municípios de Livramento de Nossa Senhora e Itaguaçu, e foi considerada remanescente de quilombo em 2008 pela Fundação Palmares. Embora distante dos centros urbanos, Rocinha tem características que diferem sua realidade de outras comunidades em ambientes rurais,  a proximidade com duas escolas quilombolas, incluindo a educação infantil, além de uma Unidade Saúde da Família (USF), localizada na também comunidade quilombola de Itaguaçu, a apenas 3 km da Rocinha. 

Mas nem sempre foi assim. A líder quilombola e presidente da associação comunitária da Rocinha, Maria Regina Bonfim, conta que para trazer os equipamentos houve um grande processo de insistência com o município de Itaguaçu, para diminuir a distância de 18 km que as crianças enfrentavam diariamente para ir à escola:

“Antes, a escola era multisseriada e isso prejudicava o aprendizado de nossas crianças, sem falar nos 18 km de distância. Eu participava do Fórum de Educação Quilombola e ouvi falar da escola tecnológica [ensino médio] e resolvi propor trazê-la para mais perto da gente. Pedimos também que tivesse ônibus para levar todas nossas crianças para a escola, um monitor para ficar de olho tanto no translado, quanto no recreio. Depois de bastante insistência, a Prefeitura acatou a nossa solicitação e hoje as crianças daqui têm como estudar com mais facilidade e na série certa”, comentou.

A USF de Itaguaçu conta com uma técnica de enfermagem que realiza acompanhamento pré-natal para as gestantes da comunidade. No entanto, a presença do médico e do dentista só ocorre uma vez na semana, podendo o hiato ser ainda maior, chegando a mais de 15 dias.

Maria Regina Bonfim, líder quilombola e presidente da associação comunitária da Rocinha/Bahia. (Foto: Mayara Fernandes)

Mãe de cinco filhos, a marisqueira Mônica dos Santos, 45, vive em Santiago do Iguape, comunidade quilombola localizada no município de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, e é mãe de Mirella Conceição, de cinco anos.  Sua filha frequenta a creche municipal Hélio João dos Santos Barros, tendo atividades educacionais durante um turno. No turno oposto, Mirella fica sob os cuidados familiares. Márcia também contou que Agentes Comunitários de Saúde realizam busca ativa de vacinação com as mães da comunidade: 

“Sou nascida e criada aqui em Iguape e crio meus filhos aqui também. A mais nova, de cinco anos, vai para a creche que fica aqui mesmo na comunidade, tem tudo aqui, posto de saúde, escola. Quando tem que dar vacina, os agentes comunitários passam de casa em casa avisando para as mães. Acho tudo tranquilo, não enfrento maiores dificuldades para dar essa assistência a minha filha”, comenta.

A Prefeitura de Cachoeira tem quatro creches infantis quilombolas nas comunidades de  Quilombolas de Tororó, Matinha, Engenho da Ponte, Opalma e Santiago do Iguape. Segundo nota divulgada pela Prefeitura, os equipamentos foram ampliados e reformados, com área para lazer, ambientes climatizados e adaptados. Em entrevista para o jornal A Tarde Educação em julho de 2024, o secretário de Educação de Cachoeira, Roberto Franco afirmou que estão previstas a entrega de outras creches quilombolas.

Mirella é uma das 180 crianças entre quatro e 18 anos moradores de nove comunidades quilombolas integrantes da bacia do Iguape/Cachoeira Bahia (Dendê, Engenho da Praia, Engenho da Ponte, Kaonge, Kalembá, Palmeira, Santiago, São Francisco do Paraguaçu e Tombo). As comunidades integram o projeto “Vamos Todos Cirandar”, que ocorre aos sábados em Iguape, priorizando atividades para aquisição e desenvolvimento da leitura e da escrita, tendo como eixo de aprendizagem as cantigas de roda. O projeto é desenvolvido pelo Instituto Mãe Lalu.

Criado em 2021, o  Instituto Mãe Lalu é uma Organização Sem Fins Lucrativos que incentiva a aprendizagem de saberes populares e científicos, de forma interdisciplinar, colocando as artes, jogos, brincadeiras tradicionais e a cultura local no centro do ensino e da aprendizagem, com foco na alfabetização, no desenvolvimento de múltiplos saberes e pautados na educação antirracista e educação socioambiental. 

Dois projetos do Instituto abarcam o público da primeira infância, o “Vamos Todos Cirandar” e o “Ciranda da Saúde”, que promove acesso à saúde e educação para as crianças e adolescentes por meio de atendimentos básicos e ações educativas lúdicas, com a participação voluntária de profissionais de saúde, em parceria com a Prefeitura de Cachoeira,  Defensoria Pública da Bahia e Secretaria de Saúde da Bahia (SESAB).

Leane Suzarte, vice-presidente do Instituto Mãe Lalu, falou sobre a perspectiva antirracista e a valorização da cultura local que os projetos desenvolvem com as crianças: “Os nossos atendimentos deram início na pandemia, quando as crianças e adolescentes estavam afastados do ensino formal. Inspirados pelas cantigas de roda, lançamos o projeto ‘Vamos Todos Cirandar’, que acontece aos sábados e combina elementos da cultura local e educação antirracista, focando no desenvolvimento da leitura e escrita. As cirandas são elaboradas semanalmente por Oracy Suzarte, nossa diretora pedagógica.Após a identificação de crianças e adolescentes com maiores desafios de aprendizagem, decidimos ampliar o atendimento para os beneficiários da comunidade de Santiago do Iguape. Agora, o subprojeto “Vamos Dar a Meia Volta e Alfabetizar” oferece suporte adicional às quintas e sextas-feiras, com atividades centradas na alfabetização, utilizando o Alfabeto Cultural do Iguape como elemento principal de aprendizagem. É gratificante ver o crescente interesse das comunidades em participar.”. 

Comunidade Rocinha, em Livramento de Nossa Senhora (BA) (Foto: Mayara Fernandes) 

Até o fechamento desta reportagem, as secretarias estaduais baianas não forneceram dados sobre suas atuações na primeira infância nas comunidades quilombolas, apenas no contexto geral de atenção básica em saúde e educação.

O Ceará, Terra da Luz, busca aliados para ampliar políticas para a primeira infância quilombola

O crescimento populacional aumentou em 4% em relação aos dados divulgados no Censo anterior no Ceará, o que indica que a população infantil tem crescido. No Estado existem cerca de 153 comunidades quilombolas, conforme dados do IBGE. No território cearense residem aproximadamente 23,9 mil pessoas que se autodeclaram como quilombolas, em 68 cidades. Caucaia concentra o maior número de quilombolas do Ceará. É uma região metropolitana que  fica no litoral oeste do Ceará e contabiliza mais de 130 famílias que vivem em quilombos. Em Boqueirão de Arara, por exemplo, vivem algumas famílias, compostas por idosos, adultos e crianças. Para compreender melhor a primeira infância na comunidade, a reportagem esteve lá e ouviu mães e avós quilombolas.

 Quilombo Boqueirão de Arara, em Caucaia (CE) (Foto: Rebeka Lúcio)

Marta, de 69 anos, vive há décadas no território,  local em que criou filhos e netos, perdendo as contas de quantas pessoas dão sequência à árvore genealógica familiar, declara que “o que tem é nada e o que falta é muita coisa”, quando a pergunta é o que tem e o que falta para a infância na comunidade quilombola.

Com filhos criados com profissões diversas como pedreiros, soldadores e serventes, Marta tem vários netos, sendo os dois mais novos ainda na primeira infância, ambos com quatro anos, sobre o lugar em que elas vivem e suas possibilidades diz “eu acho que o lugar em que eles vivem é melhor do que na cidade porque é muita violência lá em Fortaleza, no Centro, aqui já é mais calmo.” Na comunidade, algumas crianças, segundo ela, já estão aprendendo a fazer coentro e outros até canteiro na escola.

Para Marili, de 39 anos, que também tem filhos criados na mesma região, “morar em uma comunidade quilombola é bom. Dá para escapar assim devagarzinho”. É como residir em uma cidade do interior com seus pontos positivos e negativos. 

Marili diz que a região tem escola e transporte escolar, mas que não consegue comparecer às reuniões da atual escola do filho por ser muito longe. “Ele sempre estudou em escola quilombola, saiu de uma e foi para outra. Não tenho nada do que reclamar. É bom. E ele até que é sabidinho, viu? É bom. Ele chega para mim e me conta que acha bom lá. Não tem nada para falar de ruim de lá não. Ele diz que aprende muita coisa lá e até estão fazendo um projeto de plantação de horta”, conta.

Sua irmã, Francisca, tem 42 anos e três filhos. Sobre o acesso à educação na comunidade quilombola para as crianças, diz: “Tem sido bom, mas tem momentos que se torna ruim, quando começa a chover e não dá mais para os ônibus subirem e eles param de estudar. Quando eles não mandam um carro pequeno, os meninos faltam à aula. Mas está melhorando. Cada dia melhor. O meu tem aprendido muita coisa. Lá, eles tem aprendido muita coisa de acesso à natureza.”

Em relação à saúde, Francisca recorda: “Quando minha irmã foi ganhar neném foi muito difícil porque o transporte é muito difícil. Se o vizinho não tiver ou você mesmo não tiver transporte, você tem que esperar até o outro dia para poder ir. A ambulância para poder vir aqui é muito difícil”.

Eliziane, de 26 anos, teve que fazer esse deslocamento para dar à luz a seu bebê. Hoje, com um filho na primeira infância, diz que o acesso à saúde ainda é complicado quando precisa de atendimentos para si ou para o filho.

“Para falar a verdade, não tem. Para nós, posto de saúde não tem. Tem que se deslocar para outra comunidade que é lá na Primavera. O transporte demora muito. É muito dificultoso para a gente ir […]. Às vezes, a gente vai e dá viagem perdida. Não tem a vacina para dar. A gente vai só dar viagem. Quantas vezes eu fui! Está aí, fui umas cinco vezes e a vacina dele está atrasada. Desde o ano passado, eu vou e não tem.”

Eliziane afirma ainda que o lazer precisa de mais atenção na comunidade em que vive. É o que também aponta Marta: “Nós queríamos assim, arrumar uma capoeira para os meninos aprenderem, um campo melhor do que aquele ali para eles jogarem bola, ter um reforço para as crianças aprenderem mais, os que estão atrasados nos colégios”.

O lazer é uma necessidade nessas comunidades e representa um investimento importante para o tempo na infância, em que brincar também é um direito. Segundo Francisca, jogar bola é o principal lazer infantil na comunidade. “Na escola, eles têm a possibilidade de fazer outras coisas que influenciam, mas na comunidade eles só têm isso, só tem o jogar bola”, relata.

Quanto à política para a primeira infância, o território cearense é referência. O Estado, que é conhecido como Terra da Luz por ter sido o primeiro lugar do Brasil a libertar escravizados, tem como política estadual o investimento nessa faixa etária por meio do programa Mais Infância, que foi criado em agosto de 2015.

Fortaleza foi a primeira capital brasileira a desenvolver um plano municipal com políticas para a primeira infância. Desde 2014, a cidade prioriza o atendimento educacional, assistencial, cultural, nutritivo, de saúde e lazer de crianças de faixa etária entre zero a seis anos, o que é uma antecipação ao  Marco Legal da Primeira Infância, que foi sancionado em 2016 pela presidência.

Dentre as ações desenvolvidas, o Programa busca combater a desigualdade, promover a justiça social e o desenvolvimento integral da criança. De natureza multissetorial, o Programa tem se  estruturado em quatro pilares, definidos como Tempo de Nascer, Tempo de Crescer, Tempo de Aprender e Tempo de Brincar.

Com a meta de “desenvolver a criança para desenvolver a sociedade”, envolve em suas ações não somente a criança, mas também também familiares, formadores de opiniões de mídia, gestores públicos, profissionais de saúde,  educação, assistência social e ONGs. Em maio de 2024, o governo do estado do Ceará lançou o Programa Primeira Infância Antirracista. Realizado em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e com a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, foram organizadas oficinas de formação nos meses de junho e julho em 34 municípios cearenses sobre diversidade étnico-racial e enfrentamento ao racismo.

Os índices da população negra e quilombola local influenciaram a escolha dos locais que receberam as ações desse projeto. Acaraú, Aquiraz, Araripe, Baturité, Beberibe, Brejo Santo, Caucaia, Crateús, Crato, Fortaleza, Granja, Horizonte, Icapuí, Iracema, Itapipoca, Itarema, Maracanaú, Mauriti, Missão Velha, Monsenhor Tabosa, Novo Oriente, Pacatuba, Pacujá, Poranga, Porteiras, Quiterianópolis, Quixadá, Salitre, São Benedito, São Gonçalo do Amarante, Sobral, Tamboril, Trairi e Tururu, em que vivem aproximadamente 400 mil crianças de zero a seis anos, foram os locais beneficiados pelas ações que estão sendo desenvolvidas, conforme divulgado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. 

Os números apontam que o território cearense tem a 10ª maior população quilombola entre os Estados brasileiros. No Censo Demográfico 2022, em Caucaia, foram autodeclarados 2615 quilombolas, por exemplo. Para Eliziane, ser quilombola pode ser traduzido como “uma raça negra que vem do sangue”. Segundo ela, que vive na comunidade, local em que cuida de uma criança em primeira infância, o bom de se viver ali é justamente o viver em comunidade. Como diz o provérbio africano, “ é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. O Ceará, Terra da Luz, tem buscado aliados.

Em Pernambuco, primeira infância em quilombo sertanejo é marcada por avanços e desafios

Em Pernambuco, que conta com 196 comunidades quilombolas certificadas, 78.827 pessoas se consideram quilombolas, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e IBGE. Contudo, também não foi possível definir um quantitativo de crianças quilombolas na primeira infância.

Infográfico de Pernambuco, que possui 196 comunidades quilombolas certificadas e 14 territórios oficialmente delimitados, até julho de 2022, de acordo com dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e de órgãos oficiais. No estado, segundo o Censo Demográfico 2022, 78.827 pessoas se consideram quilombolas. Do total da população quilombola pernambucana, 6.769 pessoas (8,59% do total) vivem nos 14 territórios quilombolas oficialmente delimitados, enquanto 72.058 pessoas que se declararam quilombolas (91,41% do total) vivem fora desses territórios.
Infográfico de Pernambuco, que possui 196 comunidades quilombolas certificadas e 14 territórios oficialmente delimitados, até julho de 2022, de acordo com dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e de órgãos oficiais. No estado, segundo o Censo Demográfico 2022, 78.827 pessoas se consideram quilombolas. Do total da população quilombola pernambucana, 6.769 pessoas (8,59% do total) vivem nos 14 territórios quilombolas oficialmente delimitados, enquanto 72.058 pessoas que se declararam quilombolas (91,41% do total) vivem fora desses territórios.

No Sertão do Pajeú, interior do estado, a comunidade quilombola Queimadas dos Felipes visitada não possui unidade de saúde pública e de educação infantil no território, mas conta com outras assistências na primeira infância. A comunidade localizada na zona rural da cidade de Iguaracy está distante da capital Recife, que fica a mais de 350 km. Para chegar até lá, depois do asfalto, são mais alguns minutos de distância em estrada de terra. A comunidade foi reconhecida em 2017 pela Fundação Cultural Palmares, após anos de luta. Atualmente, apesar das conquistas e melhorias, a exemplo do  acesso à água em cisternas e energia elétrica, familiares das crianças na primeira infância enfrentam desafios para o atendimento de saúde na própria comunidade, devido à falta de uma unidade de saúde pública. 

Estrada de terra que leva até a Comunidade Queimadas dos Felipes, em Iguaracy (PE) (Foto: Anderson Santana) 

De acordo com o líder quilombola Sr. José Alves da Silva, que também é avô de crianças que estão na primeira infância, 35 famílias vivem em Queimada dos Felipes. Segundo ele, apesar das melhorias na comunidade, a exemplo de visitas domiciliares de agentes de saúde, ainda há uma grande dificuldade de assistência devido à ausência de uma unidade básica de saúde da família no território.

“A gente precisa de um posto de saúde […]. Adoece uma criança, lá vai, chega em Iguaracy, leva para Afogados. […] Só vem aqui um agente de saúde de mês em mês. O agente de saúde, coitado, ele chega aqui, pega as informações de quem está doente, ele leva para o médico, né? E trazer um médico também, de mês em mês, porque é de dois em dois meses que aparece um médico. Imagina se a gente tiver doente e esperar dois, três meses”, enfatiza o líder quilombola e avô.

Casas das famílias quilombolas em Queimada dos Felipes (PE) (Foto: Anderson Santana)

Fabiana Santiágua é mãe e tem quatro filhos, sendo que um deles está na primeira infância. De acordo com ela, apesar da falta de uma unidade de saúde, ocorreu tudo bem desde o período da gestação até hoje com a saúde do seu filho, que está com dois anos de idade. 

Monique de Oliveira, que tem um filho com oito anos de idade, ressalta como foi positiva a assistência de saúde na primeira infância. “A questão de saúde aqui é muito boa. Sempre que tem vacina, eles procuram logo saber quantos têm aqui na comunidade e eles mesmo vêm aqui e aplicam a vacina. Covid mesmo eles tomaram todas as vacinas. Quando a gente precisa, eles avisam, a gente vai no postinho”, explica. 

José Alves da Silva, líder quilombola da Comunidade Queimada dos Felipes, Iguaracy (PE) e avô de crianças na primeira infância (Foto: Anderson Santana) 

Desde que nasceu, o filho de Oliveira necessita de cuidados especiais devido a algumas questões de saúde e teve assistência com especialistas fora da comunidade. “Ele sempre foi uma criança que requer mais cuidados, porque assim que ele nasceu teve aquele probleminha na pele que ficou amarelado, e daí em diante sempre eu ia no postinho e cuidava com toda atenção. Quando ele chegou na fase de iniciar a escola, as professoras já perceberam que ele tinha uma dificuldade na fala, um probleminha de humor, chorava muito e elas já me procuraram. Elas me falaram para procurar um psicólogo, um fono. E, através das professoras que notaram, levei ele. Hoje, graças a Deus, ele tem todo o tratamento, não pago nada. Ele tem consulta com a fono de graça, com psiquiatra, com psicólogo”, explica.

Fabiana Santiágua, moradora da Comunidade Queimada dos Felipes (PE) (Foto: Anderson Santana) 

Ana Cláudia de Almeida tem duas filhas, uma de três anos e outra de 13. Em comparação entre a primeira infância de ambas,  ela destaca que melhorou a assistência à saúde. “Não tenho o que reclamar. Da primeira para segunda melhorou bastante. Fui bem atendida, tem acompanhamento perfeito. Acredito que melhorou bastante, graças a Deus. Muitas coisas que antes não tinha, hoje tem. Não tenho o que me queixar”, conclui.

Em relação à educação infantil, não existe creche ou unidade escolar adequada no território. Diante disso, o filho de seis anos de Milene Alves frequenta, desde os quatro, a Escola Municipal Mestre Antônio, que fica em um sítio próximo. O mesmo fazem outras crianças da sua idade na comunidade quilombola. Elas utilizam o transporte escolar gratuito, fornecido pela Prefeitura para fazer o trajeto saindo de Queimada dos Felipes. 

Alves trabalha fora de casa e explica que poder contar com uma unidade de educação infantil, ainda que seja em uma comunidade próxima, facilita sua vida, pois consegue compartilhar esse tempo restante com a avó do menino. Assim, a quilombola consegue fazer suas atividades de trabalho externo. “Passo o dia todo fora, então ele passa meio período na escola, meio período com a minha mãe. Aí já é uma ajuda muito boa, né? Por conta da idade dela e por ele ser muito ativo, isso já ajuda bastante”, detalha.

O filho de Monique também sempre estudou na escola Mestre Antônio. “A questão da escola também é muito boa. O meu filho tem oito anos e já sabe ler e escrever. Na primeira fase que ele entrou na escola, ele já pegou uma professora muito boa, que se dedicou. Então, aqui é muito bom em questão de saúde e educação”, diz. 

Taísa Raquel Alves é mãe de um menino de quatro anos e está grávida de sete meses de uma menina. Ela é professora na escola de educação infantil Mestre Antônio.“Tenho um filho que estuda na escola, que é a mesma onde eu estudei na minha infância e que hoje em dia eu já até sou colega de trabalho de professoras que foram minhas professoras na infância”, recorda. 

A professora explica como lida com a questão da primeira infância quilombola na sala de aula. “A gente pode ver que as crianças estão tendo contato com essa primeira infância de uma forma bem positiva. A gente trabalha em cima de temáticas que também tratam bastante essa questão da discriminação, temáticas que são bem abrangentes e significativas para que as crianças cresçam com esse pensamento da questão da cor da pele, não diferenciar um do outro. Não só a questão da discriminação por cor da pele, mas todo tipo de discriminação”, detalha.

Ela lembra das vivências proporcionadas no ano passado, com outras comunidades quilombolas da região, para valorização da cultura quilombola desde cedo. “A gente vivenciou um projeto com as comunidades de quilombolas do município de Iguaracy, onde juntamente com os alunos a gente fez uma visita, tanto na comunidade de Quilombola Queimada dos Felipes, quanto na outra comunidade, que é a comunidade de Varzinha dos Paulinos.”

A questão do reconhecimento enquanto quilombola é algo muito presente na comunidade e reafirmado pelas famílias das crianças que estão na primeira infância. A questão é abordada desde muito cedo. Monique de Oliveira lembra como aborda essa questão com o seu filho desde pequeno. “Sempre procuro dizer a ele que ele é descendente de quilombola, que a gente é uma comunidade de quilombola, que ele tem que respeitar todos os outros, que por mais que ele não seja assim da minha cor, que ele é mais clarinho um pouquinho, mas ele é quilombola, o sangue dele é quilombola, os avós, os bisavós são todos quilombolas. Então, sempre procuro passar para ele essa origem dele, que é para mais para a frente ele saber que ele tem origem quilombola”, destaca.

Sobre o racismo na primeira infância, Milene afirma que eles lidam bem com a situação e vêm tentando sempre dialogar sobre a questão para também não esquecer das raízes quilombolas e do orgulho em ser quilombola. “A gente não teve nenhum problema que afetasse ele. Mas até hoje, graças a Deus, nunca teve nenhum caso. Ele mesmo diz assim, mãe, por que você é preta e eu sou branco? Não, não é isso. É porque você é assim e outra pessoa vai ser diferente de você, mas isso não muda o fato de você ser um quilombola. O seu sangue é de quilombola, então não importa se você é mais clarinho, mais escurinho e tá tudo certo. Aqui a gente não tem esse problema até o momento”, conclui.

Juarez Bezerra, agricultor quilombola, é pai. Apesar do seu filho não estar na primeira infância, ele salienta o quanto é importante a participação paterna na criação das crianças e no apoio às mães — que muitas vezes vivenciam essa fase com desafios solitários e sem apoio dos seus companheiros. “A gente, quilombola, tem muita dificuldade, mas nós, como somos pais, temos que batalhar pelas necessidades, trabalhar e lutar pela vida, ter as nossas crianças, ser feliz, a gente precisa zelar. A gente tem orgulho de ser quilombola, né? E, portanto, lutar pelas nossas famílias, ter nossas famílias com paz e felicidade.”

Juarez Bezerra, pai, agricultor e morador da Comunidade Quilombola Queimada dos Felipes, Iguaracy(PE). (Anderson Santana) 
Juarez Bezerra, pai, agricultor e morador da Comunidade Quilombola Queimada dos Felipes, Iguaracy (PE) (Foto: Anderson Santana) 

Diante das demandas da comunidade para uma Unidade de Saúde para atendimento às crianças e à população quilombola, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE), informou que são de execução e responsabilidade direta dos municípios e do governo federal, por meio do Ministério da Saúde.

A Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco (SEE) destacou que, este ano, introduziu no Programa Criança Alfabetizada um recorte quilombola, concedendo 90 bolsas para formadores quilombolas que atuam em 24 municípios pernambucanos. Esses educadores contribuem para a alfabetização das crianças quilombolas de zero a três anos na Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.

A SEE diz que já foram anunciadas 51 creches para 42 municípios em todo o estado, e que há previsão para o anúncio de um número ainda maior de unidades ainda neste semestre, com a expectativa de que o município de Iguaracy seja incluído nessa expansão, uma vez que estudos estão sendo realizados nesse sentido. 

Por meio das secretarias de Saúde e de Educação, a Prefeitura de Iguaracy foi questionada sobre os investimentos nas áreas focados na primeira infância quilombola, mas não se posicionou até o fechamento desta reportagem. O espaço permanece aberto e o material será atualizado prontamente.

O Ministério da Educação e o Ministério da Saúde foram questionados sobre os investimentos em saúde e educação na primeira infância quilombola. A Saúde destacou que criou a Estratégia Antirracista da Saúde, que está em processo de implementação, e elege o cuidado às populações quilombolas e o combate ao racismo na atenção materno infantil prioritários, cujos indicadores devem estar presentes em todos os programas e políticas de saúde. Em 2023, houve adesão ao Primeira Infância Antirracista — um acordo que, junto ao Unicef, oficializa o compromisso de combater o racismo e diminuir os impactos negativos na infância de crianças negras, quilombolas e indígenas. 

De acordo com a pasta, por exemplo, as estratégias incluem: qualificação de profissionais sobre impactos do racismo na primeira infância, práticas antirracistas, realização de pesquisas; distribuição de materiais sobre práticas antirracistas, educação e assistência social nos serviços de atendimento às gestantes, crianças negras e indígenas, com especial atenção à primeira infância; e realização de seminários e eventos no Brasil, em capitais de estados e municípios prioritários.

Ainda segundo o ministério, há o Programa Saúde na Escola (PSE), que busca contribuir no desenvolvimento de estudantes do ensino básico da rede pública, com ações integradas entre Saúde e Educação para enfrentar vulnerabilidades. No momento da pactuação, os municípios devem indicar no mínimo 50% das escolas prioritárias, o que inclui escolas quilombolas, indígenas e em assentamentos. Atualmente, conforme dados da Saúde, 5.506 municípios brasileiros aderiram ao programa e 2.059 escolas estão localizadas em áreas de comunidades remanescentes de quilombos, sendo 1.675 com educação infantil (creche e pré-escola), que contam com 42.998 crianças matriculadas.

No quesito educação infantil, o Censo Escolar (2024) contabilizou 2601 escolas quilombolas no Brasil, sendo que 2060 possuem educação infantil e 95,5% destas estão concentradas na área rural. Na educação infantil estão concentradas 20,5% das matrículas de estudantes quilombolas na educação básica. Ao todo, são 55.754 matrículas, 20.571 em creches e 35.183 na pré-escola. Segundo o Ministério da Educação, 70% dos/as estudantes quilombolas são atendidos pelo CadÚnico – Bolsa Família. 

Censo Escolar (2024) constatou 2601 escolas quilombolas no Brasil, sendo que 2060 possuem Educação Infantil e 95,5% destas estão concentradas em área rural. Na Educação Infantil estão concentradas 20,5% das matrículas de estudantes quilombolas na Educação Básica. Ao todo, são 55.754 matrículas, 20.571 em creches e 35.183 na pré-escola. Segundo o Ministério da Educação, 70% dos/as estudantes quilombolas são atendidos pelo CadÚnico – Bolsa Família. 
Censo Escolar (2024) constatou 2601 escolas quilombolas no Brasil, sendo que 2060 possuem Educação Infantil e 95,5% destas estão concentradas em área rural. Na Educação Infantil estão concentradas 20,5% das matrículas de estudantes quilombolas na Educação Básica. Ao todo, são 55.754 matrículas, 20.571 em creches e 35.183 na pré-escola. Segundo o Ministério da Educação, 70% dos/as estudantes quilombolas são atendidos pelo CadÚnico – Bolsa Família. 

Esta reportagem integra o edital para a Bolsa de reportagem “O papel do jornalismo antirracista na proteção de crianças negras e periféricas”, ação do Nós, mulheres da periferia, em parceria com Marco Zero Conteúdo e Alma Preta Jornalismo – apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.

  • Anderson Santana

    Natural do Sertão do Pajeú, o jornalista pernambucano Anderson Santana é mestre em Comunicação e Sociedade. Além de freelancer, é voluntário na Iniciativa Nordeste Rural Conectado.

  • Mayara Fernandes
  • Rebeka Lúcio

    Rebeka Lúcio é formada em Comunicação, Letras e Artes. É uma escutadeira de histórias que busca atravessamentos e caminhos.

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