O dia 27 de outubro traz, nacionalmente, dois importantes marcos de luta e de mobilização em prol da visibilidade e de melhores condições de saúde para a população negra, que são o Dia Nacional de Luta pelos Direitos das Pessoas com Doenças Falciformes e o Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde da População Negra.
Instituídas por meio da ação do movimento negro brasileiro em torno da temática, as datas buscam também promover a equidade na aréa da saúde diante do racismo estrutural e de uma realidade em que políticas públicas não são aplicadas da maneira em que foram desenvolvidas.
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Segundo Altair Lira, coordenador da área temática de saúde da população negra da Associação Brasileira de Pesquisadoras e Pesquisadores Negras e Negros (ABPN), a ideia de instituir essas datas vem da necessidade de promover ações articuladas que possam aumentar a visibilidade sobre a mortalidade das pessoas negras.
“Nós ainda precisamos estar nas ruas, nesse movimento, fazendo esse debate, porque ainda continuamos morrendo. A pandemia da Covid deixou isso muito evidente. As maiores taxas de mortalidade e as taxas mais baixas de vacinação são da população negra. Onde ocorreu o maior índice de desemprego e de fome está sendo dentro das comunidades mais pobres”, destaca Lira.
Contexto atual
Há um maior risco de pessoas negras desenvolverem determinadas doenças por motivos genéticos e ambientais, como o diabetes mellitus tipo 2, a hipertensão arterial e a anemia falciforme, que pode ser encontrada em frequências que variam de 6% a 10% na população negra, em comparação com 2% a 6% na população brasileira em geral.
Além disso, os indicadores de desigualdade social, desamparo, racismo e as taxas de mortalidade por conta da violência e da falta de acesso a serviços de saúde especializados mostram como as pessoas negras estão mais vulneráveis aos agravos em sua saúde, inclusive ao suicídio.
Os negros representaram 55% dos adolescentes e jovens que cometeram suicídio no Brasil em 2016, segundo informações do Ministério da Saúde e da Universidade de Brasília. Além disso, de acordo com o Atlas da Violência de 2021, a população negra representou 77% das vítimas de homicídios em 2019, o que significou que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra.
Em relação ao atendimento materno, a pesquisa Nascer no Brasil, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), revelou que as mulheres pretas foram as mais desassistidas no pré-natal entre 2011 e 2012. Durante a pandemia, de acordo com dados do Ministério da Saúde, o número de gestantes hospitalizadas com Covid-19 era maior entre negras, sendo que 14,2% dos óbitos foram dessas mulheres.
Pensando em atender as demandas específicas dessa população, foi lançada em 2006 e instituída em 2009 a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. A iniciativa estabeleceu objetivos, diretrizes e responsabilidades em âmbito municipal, estadual e federal a fim de reduzir as desigualdade étnico-raciais e combater o racismo institucional dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, dados revelam que, até hoje, a medida não foi aplicada da maneira como foi pensada.
Um levantamento de pesquisadores da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e da Universidade de São Paulo (USP) revela que somente 57 municípios colocaram a política em prática, dentro de um total de mais de 5 mil.
“A questão é que nós temos um Estado em que o próprio discurso provoca em alguns gestores a ideia de que, ao estar fazendo uma política de saúde para todo mundo, se está atingindo a população negra. Será a equidade que vai garantir que os princípios do SUS aconteçam. O nosso desafio é fazer com que a Política de Saúde da População Negra seja estrutural”, explica Altair Lira.
Anemia falciforme
Altair Lira em feira “Saúde na Praça”, promovida pelo Conselho Regional de Enfermagem da Bahia (Coren-BA) | Crédito: Claudia Carapiá
Pensando também que o dia 27 marca a luta da visibilidade pelos direitos das pessoas com doenças falciformes, mostra-se a necessidade de se destacar a necessidade de mais conhecimento sobre essas comorbidades que têm maior prevalência na população negra.
A anemia falciforme é uma das doenças hereditárias mais comuns no mundo. Segundo estudos lançados, ela é decorrente de uma mutação genética ocorrida há milhares de anos no continente africano, parte da Ásia e Europa e chegou ao Brasil pelo tráfico de pessoas negras. A doença genética é caracterizada por uma alteração nos glóbulos vermelhos que endurecem e adquirem o aspecto de uma foice, o que dificulta a passagem de sangue pelos vasos sanguíneos, além de afetar a oxigenação dos tecidos do corpo. Para ter a doença, o gene alterado precisa ser transmitido pelos pais.
Segundo a geneticista Regina Célia Mingroni-Netto, o traço falciforme, ou seja a presença do gene falciforme dentro das pessoas, tem frequência alta nos quilombos, mais do que em uma população miscigenada de cidades onde a ancestralidade europeia predomina. Regina Célia também é a investigadora responsável por um estudo iniciado no ano 2000 sobre a ancestralidade e a genética quilombola de comunidades do Vale do Ribeira, no estado de São Paulo.
“Realmente a frequência do traço falciforme é alta especialmente em algumas comunidades, o que seria esperado dado a ancestralidade africana. A gente fez uma triagem com base no material genético do traço falcêmico e todas as famílias em que foi detectado o traço falciforme receberam uma visita nossa com orientação e aconselhamento genético sobre o assunto. Depois o foco da pesquisa mudou para hipertensão essencial, porque a gente constatou nas nossas avaliações clínicas que hipertensão essencial, o sobrepeso e obesidade eram frequentes nessas populações”, destaca Regina.
Segundo Graça Epifânio, membro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), o aconselhamento médico sobre as doenças falciformes não é uma realidade em muitos quilombos pelo Brasil.
“A invisibilidade das doenças em territórios quilombolas revelam a situação dramática de não recebimento de atenção devida das autoridades públicas e dos meios de comunicação. Então, a gente ainda vive uma situação de abandono e de falta de informação perante as nossas comorbidades”, destaca Graça.
Humanização do atendimento
De acordo com Altair Lira, é preciso olhar para as demandas específicas da população negra em torno da saúde, e também para como os atendimentos a essas pessoas são feitos. “Pensar uma cidade igual é privilegiar o desigual. A população não é uniforme, tem demandas específicas e nós precisamos nos preparar para reconhecer e atender essas demandas. Sabendo reconhecer essas especificidades dentro da universalidade”, completa.
Segundo a médica Arisne Munique, para se alcançar uma maior humanização dos atendimentos, também é preciso enegrecer os espaços de saúde, pontuando a questão racial desde o processo formativo para que isso não seja negligenciado durante o atendimento.
“Acho que a formação precisa cada vez mais se aproximar da realidade da população, porque, independente de onde a gente atue, a nossa perspectiva tem que ser pensando na população. E o outro caminho é o enegrecimento da medicina e a democratização desse espaço. Isso aproxima muito mais as pessoas negras”, finaliza a médica.
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