Em 1851, a afro-americana abolicionista e ex-escrava Sojourner Truth deu o pontapé inicial para questionar o espaço das mulheres negras na sociedade. Com o discurso ‘E eu não sou uma mulher?‘, feito durante a 1ª Convenção Nacional pelos Direitos das Mulheres em Ohio (EUA), Sojourner trouxe à tona as camadas sociais que colocam as mulheres negras em um lugar de maior vulnerabilidade, expondo os discursos racistas, classistas e sexistas da hegemonia branca masculina e também das mulheres brancas que lideravam os movimentos por direitos iguais.
“Dei à luz treze crianças e vi a maioria delas sendo vendida como escrava, e quando gritei a minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E eu não sou uma mulher?”, questionou Truth.
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Ainda hoje, passados mais de 170 anos após o discurso da ativista, o questionamento de Sojourner Truth ecoa atemporal e traz a reflexão sobre a importância do debate das interseccionalidades sobre o direito das mulheres. Afinal, a quem é dado o direito de ser mulher?
Para Lindinalva De Paula, representante da Rede de Mulheres Negras do Estado da Bahia, a romantização em torno do Dia Internacional da Mulher e o surgimento da luta, baseado na narrativa de mulheres brancas, é uma das barreiras a serem enfrentadas pelas mulheres negras e indígenas.
“Durante um bom tempo eu não conseguia me enxergar dentro dessa luta feminista porque as nossas pautas e reivindicações vão para além do patriarcado, da garantia dos direitos e também dos perfis sociais que são traçados na sociedade a partir da classificação do gênero: masculino e feminino”, conta Lindinalva, que também integra a Frente Nacional Makota Valdina.
Assim como fez Sojourner no século XIX, lideranças negras ainda lutam pelo reconhecimento das suas narrativas e pelo direito de existir. Dados do Atlas da Violência de 2021 mostram que as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil, totalizando 66% dos assassinatos. Um levantamento do Instituto Sou da Paz mostrou que as mulheres negras nordestinas são as maiores vítimas de crimes cometidos com arma de fogo, representando cerca de 70,5% das mulheres negras que ocupam o quadro de vítimas de violência por gênero.
“Sabemos que o feminicídio e o genocídio tem cor, raça e sexualidade. Nós devemos pautar isso dentro do 8 de março e dizer que as mulheres morrem, mas quem morre são as mulheres negras que estão desempregadas e a população feminina que sempre é atacada: as mulheres negras, indígenas, LBTT [lésbicas, bissexuais, trans e travestis]”, destaca Lindinalva de Paula.
A ativista completa apontando que a construção social do que é ser mulher a partir de um referencial hegemônico também gera desafios que ainda se fazem presentes na luta pelo direito das mulheres. “Essas são as dificuldades, trazer algumas pautas dentro do 8 [de março] para quebrar a hegemonia dessa universalidade de que somos mulheres e somos iguais. É totalmente o contrário: somos mulheres e somos totalmente diferentes”, pontua Lindinalva.
‘Nada de sexo frágil, somos mulheres de luta’
Em setembro do ano passado, mais de quatro mil mulheres se reuniram em frente à Câmara dos Deputados, em Brasília, para denunciar uma série de violações e violências cometidas contra mulheres indígenas em seus territórios. O encontro reuniu lideranças indígenas que também vem transformando o cenário da diversidade política no Brasil, como Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita como deputada federal no país, e Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos povos indígenas do Brasil (Apib).
Somente em agosto do ano passado, duas jovens indígenas: Daiane Griá, 14 anos, e Raíssa Silva, de 11 anos, foram violentadas, estupradas e assassinadas brutalmente nas terras indígenas de Bororó (MG) e Guarita (RS). Os casos provocaram um movimento nacional pelo fim da violência contra mulheres originárias e busca frear a lógica colonial que insiste em violar esses corpos.
A professora, historiadora e integrante da Associação de Mulheres Guerreiras Indígenas Potiguara (AMGIP), Cristiane Padilha, foi uma das lideranças presente na 2ª Marcha Nacional de Mulheres Indígenas e entende que o debate das interseccionalidades também é caro às mulheres originárias, que muitas vezes são invisibilizadas dentro da pauta das mulheres.
Para ela, a inclusão das indígenas nos debates e espaços de poder contribuem para a construção de narrativas que visibilizam lutas que antes eram excluídas do debate público, como a violência contra as indígenas.
“Mesmo sendo indígenas, a gente também vivencia muita coisa do que qualquer outra mulher da nossa sociedade vivencia e uma das pautas é a questão da violência doméstica, do nosso espaço como mulher dentro do trabalho, que muitas vezes ainda somos muito discriminadas”, diz a indígena natural da Baía da Traição, município paraibano com maior reserva indígena dos índios Potiguaras.
Como professora há mais de 20 anos, Cristiane também acredita que é possível transformar a sociedade por meio da educação. Nascida em uma família de mulheres indígenas integrantes de movimentos sociais, a historiadora vê a necessidade de romper com as narrativas coloniais dentro das escolas, trazendo o protagonismo feminino como estruturantes dentro das comunidades.
“A gente precisa de mulheres que tenham vez e voz de falar, de lutar pelo seu povo, de lutar pela sua cultura que muitas vezes é discriminada. Essa liberdade que a gente está criando, esse empoderamento é muito importante, mas a gente tem que ter mais espaço porque para a gente viver em uma sociedade não desigual, é preciso saber aceitar e respeitar os espaços da mulher indígena”, ressalta Cristiane.
Sobre o avanço da articulação das mulheres indígenas nos setores sociais, a professora enxerga com esperança o futuro da luta indígena e completa: “A gente não tem nada de sexo frágil, somos mulheres de luta”, destaca a potiguar.
Reflexão
A necessidade da inclusão também reflete na garantia do direito à vida de corpos e existências historicamente excluídas do movimento feminista, como as mulheres travesti e transexuais. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2021, o Brasil registrou 140 assassinatos de pessoas trans, sendo 135 de travestis e mulheres transexuais e cinco casos de homens trans e pessoas transmasculinas. Os números também revelam um aumento de 141% em comparação a 2008, ano em que o monitoramento foi iniciado.
Segundo a covereadora da Bancada Feminista do PSOL, Carolina Iara, é preciso que o feminismo siga alerta e traga discursos a partir da vertente interseccional, provocando o debate em torno das pautas de gênero, raça e classe.
“Pra mim, sendo uma mulher travesti, intersexo e preta, a reflexão e luta se entrecruza com o racismo que minhas ancestrais negras passaram sob a chibata, o meu corpo extremamente sexualizado pela sociedade e visto como algo público, assediável, ao mesmo tempo que convivo com a ameaça constante da violência transfóbica que pode me matar, e que tem relegado a expectativa de 35 anos”, reflete a covereadora.
Pelo 13º ano consecutivo o Brasil continua na primeira posição do país que mais assassina pessoas transexuais em todo o mundo. No cenário político, o desmonte de políticas públicas em torno da vida e da garantia de direitos para as mulheres travestis e transexuais também é visto como parte das estruturas que violentam os corpos dissidentes.
“Acredito que enxergar a exploração sexual que travestis e mulheres trans estão submetidas – como a prostituição compulsória, falta de empregabilidade, tráfico humano, procedimentos médicos e modificações corporais clandestinas por falta de acesso à saúde, assim como transfeminicídio expresso no fato de a maioria das mortes de pessoas trans serem de mulheres trans e travestis – são motivos mais que contundentes para que a pauta trans esteja elencada nas lutas feministas do 8M”, aponta Carolina Iara.
Sobre os debates que ainda precisam ser feitos no campo da luta feminista interseccional, a covereadora avalia uma urgência em debater a política sexual em vigência no governo Bolsonaro difundido pelo ultraneoliberalismo no Brasil, que tem negado às mulheres travestis e trans o acesso a direitos básicos, como saúde e segurança.
“O ultraneoliberalismo no Brasil tem acabado com orçamentos e até direitos no que se refere à saúde sexual, o combate à esterilização forçada de mulheres negras, e à oferta de condições materiais para ajudar as mulheres a escaparem da violência doméstica e pobreza menstrual (assim como demais pessoas com útero). Sem esses avanços mínimos, ainda teremos a vida das mulheres (todas elas, mas majoritariamente as negras e indígenas), e das LGBTQIA+ em risco”, avalia Carolina Iara.