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8 de março: a quem é dado o direito de ser mulher?

No Dia Internacional da Mulher, mulheres trans, negras e indígenas falam sobre a importância do debate das interseccionalidades na luta feminista e quais são os avanços e os debates que ainda precisam ser reconhecidos nas pautas desta data
Ilustração apresenta mulheres em perfil de diferentes cores e características

Foto: Share the Mic Now/ MOUL-TRIÉ

8 de março de 2022

Em 1851, a afro-americana abolicionista e ex-escrava Sojourner Truth deu o pontapé inicial para questionar o espaço das mulheres negras na sociedade. Com o discurso ‘E eu não sou uma mulher?‘, feito durante a 1ª Convenção Nacional pelos Direitos das Mulheres em Ohio (EUA), Sojourner trouxe à tona as camadas sociais que colocam as mulheres negras em um lugar de maior vulnerabilidade, expondo os discursos racistas, classistas e sexistas da hegemonia branca masculina e também das mulheres brancas que lideravam os movimentos por direitos iguais.

“Dei à luz treze crianças e vi a maioria delas sendo vendida como escrava, e quando gritei a minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E eu não sou uma mulher?”, questionou Truth.

Ainda hoje, passados mais de 170 anos após o discurso da ativista, o questionamento de Sojourner Truth ecoa atemporal e traz a reflexão sobre a importância do debate das interseccionalidades sobre o direito das mulheres. Afinal, a quem é dado o direito de ser mulher?

Para Lindinalva De Paula, representante da Rede de Mulheres Negras do Estado da Bahia, a romantização em torno do Dia Internacional da Mulher e o surgimento da luta, baseado na narrativa de mulheres brancas, é uma das barreiras a serem enfrentadas pelas mulheres negras e indígenas.

“Durante um bom tempo eu não conseguia me enxergar dentro dessa luta feminista porque as nossas pautas e reivindicações vão para além do patriarcado, da garantia dos direitos e também dos perfis sociais que são traçados na sociedade a partir da classificação do gênero: masculino e feminino”, conta Lindinalva, que também integra a Frente Nacional Makota Valdina.

lindinalva de paula“Temos que parar de romantizar algumas datas que, para alguns setores organizados, são muito caras porque estamos falando de vidas, de dignidade” | Foto: Arquivo Pessoal

Assim como fez Sojourner no século XIX, lideranças negras ainda lutam pelo reconhecimento das suas narrativas e pelo direito de existir. Dados do Atlas da Violência de 2021 mostram que as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil, totalizando 66% dos assassinatos. Um levantamento do Instituto Sou da Paz mostrou que as mulheres negras nordestinas são as maiores vítimas de crimes cometidos com arma de fogo, representando cerca de 70,5% das mulheres negras que ocupam o quadro de vítimas de violência por gênero.

“Sabemos que o feminicídio e o genocídio tem cor, raça e sexualidade. Nós devemos pautar isso dentro do 8 de março e dizer que as mulheres morrem, mas quem morre são as mulheres negras que estão desempregadas e a população feminina que sempre é atacada: as mulheres negras, indígenas, LBTT [lésbicas, bissexuais, trans e travestis]”, destaca Lindinalva de Paula.

A ativista completa apontando que a construção social do que é ser mulher a partir de um referencial hegemônico também gera desafios que ainda se fazem presentes na luta pelo direito das mulheres. “Essas são as dificuldades, trazer algumas pautas dentro do 8 [de março] para quebrar a hegemonia dessa universalidade de que somos mulheres e somos iguais. É totalmente o contrário: somos mulheres e somos totalmente diferentes”, pontua Lindinalva.

‘Nada de sexo frágil, somos mulheres de luta’

Em setembro do ano passado, mais de quatro mil mulheres se reuniram em frente à Câmara dos Deputados, em Brasília, para denunciar uma série de violações e violências cometidas contra mulheres indígenas em seus territórios. O encontro reuniu lideranças indígenas que também vem transformando o cenário da diversidade política no Brasil, como Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita como deputada federal no país, e Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos povos indígenas do Brasil (Apib).

Somente em agosto do ano passado, duas jovens indígenas: Daiane Griá, 14 anos, e Raíssa Silva, de 11 anos, foram violentadas, estupradas e assassinadas brutalmente nas terras indígenas de Bororó (MG) e Guarita (RS). Os casos provocaram um movimento nacional pelo fim da violência contra mulheres originárias e busca frear a lógica colonial que insiste em violar esses corpos.

A professora, historiadora e integrante da Associação de Mulheres Guerreiras Indígenas Potiguara (AMGIP), Cristiane Padilha, foi uma das lideranças presente na 2ª Marcha Nacional de Mulheres Indígenas e entende que o debate das interseccionalidades também é caro às mulheres originárias, que muitas vezes são invisibilizadas dentro da pauta das mulheres.

Para ela, a inclusão das indígenas nos debates e espaços de poder contribuem para a construção de narrativas que visibilizam lutas que antes eram excluídas do debate público, como a violência contra as indígenas.

“Mesmo sendo indígenas, a gente também vivencia muita coisa do que qualquer outra mulher da nossa sociedade vivencia e uma das pautas é a questão da violência doméstica, do nosso espaço como mulher dentro do trabalho, que muitas vezes ainda somos muito discriminadas”, diz a indígena natural da Baía da Traição, município paraibano com maior reserva indígena dos índios Potiguaras.

WhatsApp Image 2022 03 07 at 17.28.59‘A gente também vivencia muita coisa do que qualquer outra mulher da nossa sociedade’ | Foto: Arquivo Pessoal

Como professora há mais de 20 anos, Cristiane também acredita que é possível transformar a sociedade por meio da educação. Nascida em uma família de mulheres indígenas integrantes de movimentos sociais, a historiadora vê a necessidade de romper com as narrativas coloniais dentro das escolas, trazendo o protagonismo feminino como estruturantes dentro das comunidades.

“A gente precisa de mulheres que tenham vez e voz de falar, de lutar pelo seu povo, de lutar pela sua cultura que muitas vezes é discriminada. Essa liberdade que a gente está criando, esse empoderamento é muito importante, mas a gente tem que ter mais espaço porque para a gente viver em uma sociedade não desigual, é preciso saber aceitar e respeitar os espaços da mulher indígena”, ressalta Cristiane.

Sobre o avanço da articulação das mulheres indígenas nos setores sociais, a professora enxerga com esperança o futuro da luta indígena e completa: “A gente não tem nada de sexo frágil, somos mulheres de luta”, destaca a potiguar.

Reflexão

A necessidade da inclusão também reflete na garantia do direito à vida de corpos e existências historicamente excluídas do movimento feminista, como as mulheres travesti e transexuais. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2021, o Brasil registrou 140 assassinatos de pessoas trans, sendo 135 de travestis e mulheres transexuais e cinco casos de homens trans e pessoas transmasculinas. Os números também revelam um aumento de 141% em comparação a 2008, ano em que o monitoramento foi iniciado.

Segundo a covereadora da Bancada Feminista do PSOL, Carolina Iara, é preciso que o feminismo siga alerta e traga discursos a partir da vertente interseccional, provocando o debate em torno das pautas de gênero, raça e classe.

“Pra mim, sendo uma mulher travesti, intersexo e preta, a reflexão e luta se entrecruza com o racismo que minhas ancestrais negras passaram sob a chibata, o meu corpo extremamente sexualizado pela sociedade e visto como algo público, assediável, ao mesmo tempo que convivo com a ameaça constante da violência transfóbica que pode me matar, e que tem relegado a expectativa de 35 anos”, reflete a covereadora.

carolina iara‘Convivo com a ameaça constante da violência transfóbica que pode me matar’ | Foto: Instagram/ @acarolinaiara

Pelo 13º ano consecutivo o Brasil continua na primeira posição do país que mais assassina pessoas transexuais em todo o mundo. No cenário político, o desmonte de políticas públicas em torno da vida e da garantia de direitos para as mulheres travestis e transexuais também é visto como parte das estruturas que violentam os corpos dissidentes.

“Acredito que enxergar a exploração sexual que travestis e mulheres trans estão submetidas – como a prostituição compulsória, falta de empregabilidade, tráfico humano, procedimentos médicos e modificações corporais clandestinas por falta de acesso à saúde, assim como transfeminicídio expresso no fato de a maioria das mortes de pessoas trans serem de mulheres trans e travestis – são motivos mais que contundentes para que a pauta trans esteja elencada nas lutas feministas do 8M”, aponta Carolina Iara.

Sobre os debates que ainda precisam ser feitos no campo da luta feminista interseccional, a covereadora avalia uma urgência em debater a política sexual em vigência no governo Bolsonaro difundido pelo ultraneoliberalismo no Brasil, que tem negado às mulheres travestis e trans o acesso a direitos básicos, como saúde e segurança.

“O ultraneoliberalismo no Brasil tem acabado com orçamentos e até direitos no que se refere à saúde sexual, o combate à esterilização forçada de mulheres negras, e à oferta de condições materiais para ajudar as mulheres a escaparem da violência doméstica e pobreza menstrual (assim como demais pessoas com útero). Sem esses avanços mínimos, ainda teremos a vida das mulheres (todas elas, mas majoritariamente as negras e indígenas), e das LGBTQIA+ em risco”, avalia Carolina Iara.

  • Dindara Paz

    Baiana, jornalista e graduanda no bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade (UFBA). Me interesso por temáticas raciais, de gênero, justiça, comportamento e curiosidades. Curto séries documentais, livros de 'true crime' e música.

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