O Brasil vive um momento particular de sua história: o de recontar o passado a partir de uma perspectiva racial, de gênero e sexualidade. A ditadura é um dos capítulos mais tristes de um passado recente, e que agora passa a ser observado sob novos olhares
Texto/Pedro Borges
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O Brasil vive um momento conturbado, de agitação política, e de disputa do passado. À direita e à esquerda, grupos políticos reivindicam o passado, ou para exaltar os “bons momentos” vividos durante a ditadura militar, ou para recordar a repressão e o autoritarismo.
Mas no campo popular de esquerda há uma nova movimentação política, revolucionária e disruptiva, feita por jovens negros oriundos das periferias, que têm observado a história, e inclusive a ditadura, a partir de uma perspectiva de raça, gênero e classe.
Para esse grupo, ao qual faço parte, primeiro é necessário recordar de que o terrorismo de Estado sobre corpos negros é sinônimo de Brasil e que a perversidade do Estado não se inicia na ditadura, nem mesmo se conclui com a retomada do período democrático.
Isso acordado é importante ressaltar que momentos históricos como a ditadura também precisam ser rediscutidos, e assim serão na exposição “AI-5 50 Anos – Ainda Não Terminou de Acabar”, que se iniciou no Instituto Tomie Ohtake no dia 4 de Setembro, e segue até o dia 4 de Novembro.
Instigado pelo curso “Armas, Artes e Lutas: rediscutindo Gênero e Raça no Brasil da Ditadura Militar”, ministrado pela professora Flávia Rios, da Universidade Federal Fluminense, gostaria de refletir acerca de alguns impactos do regime militar sobre a questão racial: a adoção do mito da democracia racial como ideologia oficial de Estado; os expurgos de professores da Universidade de São Paulo, que desenvolviam pesquisas nas áreas das relações raciais; a perseguição, vigia e controle de figuras afrodescentes e grupos do movimento negro que discutiam o problema do racismo no Brasil e fora dele; o apagamento da resistência negra durante o regime.
Na Ditadura Militar, o discurso do mito da democracia racial tornou-se ideologia de Estado. Tanto assim que o Itamaraty tratou de impedir que intelectuais negros saíssem do país e participassem de encontros sobre a temática negra. Figuras como Abdias do Nascimento e Clóvis Moura, por exemplo, foram vítimas desse processo.
A ditadura também se transformou em um momento de ruptura com a produção científica. A USP perde uma série de intelectuais, aposentados de maneira compulsória em 1968 pela instituição. Entre eles, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otavio Ianni, figuras centrais para o estudo sobre as relações raciais.
No que concerne à luta política, também há apagamento dos relatos históricos, repressão a lideranças negras, e ruptura com a tradição de resistência do início do Século XX.
Desconhece-se quem eram os negros que participaram da luta armada, ou mesmo que lideraram guerrilhas contra o regime. O que se sabe diz respeito a nomes como Carlos Marighella, Osvaldão, Thereza Santos e Helenira Rezende. Marighella, inclusive, hoje é eternizado pela letra dos Racionais MC’s, com uma música que recorda sua luta e resistência.
É também ao final da ditadura militar que o movimento negro constrói organizações políticas antirracistas, com a participação de jovens de diferentes grupos de esquerda, inspirados nos movimentos de libertação em África e na luta dos “Black Panthers” contra o império norte-americano.
É em 1978, que figuras como Milton Barbosa, Lélia Gonzalez, Hamilton Cardoso fundam uma das experiências mais bem sucedidas na luta contra o racismo, o Movimento Negro Unificado (MNU). Com uma diversidade política interna, o MNU passa a pautar a luta contra o capitalismo e o status quo no Brasil a partir de uma perspectiva que levasse em consideração os fundamentos de raça e classe.
Nesse contexto, também é possível recordar momentos como o surgimento do FECONEZU, Festival Comunitário Negro Zumbi e 1978, a reivindicação do Grupo Palmares, desde 1971, pela adoção do 20 de Novembro como data da comunidade negra e não o 13 de Maio, ainda carregado por uma perspectiva paternalista, de uma suposta bondade da princesa Isabel.
É em 1977 que nasce uma das principais expressões literárias brasileiras. Seguindo a cronologia de Machado de Assis, Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus, alguns dos principais nomes da literatura nacional, surgem os Cadernos Negros, que em 2017 chegaram a marca dos 40 anos ininterruptos, com a publicação de nomes consagrados para nós e pouco conhecidos pelo grande público, como Cuti, Esmeralda Ribeiro, Oswaldo de Camargo e Miriam Alves, para citar alguns.
São essas figuras que passam a traçar estratégias, que vão permitir a existência de um movimento negro enquanto um ator político importante no cenário nacional, que não pode ser deixado de lado. Um movimento que ocupa lugares estratégicos na sociedade, caso das instituições públicas de ensino superior, tem organizações políticas consistentes e figuras com poder de influência na esfera pública.
Esses são alguns dos elementos que corroboram para a ideia de que, apesar das barreiras impostas à comunidade negra, seja por meio da repressão ou da adoção do mito da democracia racial como política de Estado, houve uma participação ativa na resistência ao regime e a possibilidade de se construir uma estratégia política vitoriosa no combate ao racismo.
Mais do que isso, é preciso destacar que se o capitalismo no Brasil e a estrutura de dominação foram criados sob os pilares de raça, gênero e classe, é necessário que exista um olhar sobre a história que respeite esses fundamentos.