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Agricultura ancestral e reparação biocultural: uma conversa com a engenheira Fran Paula

A mestra em Saúde Pública e pesquisadora em Sistemas Agrícolas Tradicionais, Racismo e Sistemas Alimentares, Impactos dos Agrotóxicos na saúde e meio ambiente fala, em entrevista, sobre reparação biocultural para a população negra, entre outros temas relevantes
Imagem mostra uma mulher negra e um idoso negro conversando em uma plantação.

Agricultura ancestral e reparação biocultural: uma conversa com Fran Paula

— Acervo Pessoal/Fran Paula

O Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC) convidou a engenheira agrônoma Fran Paula para uma conversa sobre práticas agrícolas tradicionais, mudanças climáticas, insegurança alimentar e para apresentar a Plataforma Agricultura Ancestral,da qual é fundadora.

A entrevistada também abordou a produção de conhecimento, escrevivências e a urgência de mudar um repertório colonizado de práticas e “soluções”, a fim de promover uma abordagem climática mais justa.

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Fran Paula é ainda mestra em Saúde Pública, pesquisadora em Sistemas Agrícolas Tradicionais, Racismo e Sistemas Alimentares, Impactos dos Agrotóxicos na saúde e meio ambiente, e doutoranda no Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedades da Universidade Federal de Roraima (UFRR)

Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC): O título do seu projeto remete a práticas agrícolas tradicionais. Como você acredita que essas práticas podem ser soluções eficazes para enfrentar as mudanças climáticas e a insegurança alimentar?

Fran Paula: O projeto Agricultura Ancestral surge em 2020 quando escrevi um pouco sobre práticas culturais, tradicionais do meu povo, do meu território, da Baixada Pantaneira. Práticas que já faziam parte do meu dia-a-dia, no trabalho e nas minhas relações do contexto cultural e familiar. Sempre fui muito atravessada por uma questão da relação cultural com a alimentação, com o manejo da terra e o modo de vida. Então, começo a sistematizar essas práticas, a escrever artigos sobre algumas delas e a falar um pouco sobre essa relação.

Um dos primeiros artigos que escrevi foi sobre a trança de bala de banana, feita pelas mulheres na comunidade quilombola da Mutuca. Como simbolismo de fazer aquele doce em coletivo, que é o nosso formato de trabalho de organização social, que chamamos de Muxirum. A princípio eu queria fazer um espaço onde eu pudesse escrever com liberdade, sendo quem eu sou, com minhas reflexões e ideias. A gente sempre é muito polido e impedido de escrever o que a gente quer escrever.

Eu sempre escrevia muitos artigos transitando na agenda dos movimentos sociais com a pesquisa, mas ainda muito submetida a uma leitura de fora, normalmente de padrões eurocêntricos da branquitude sobre o que eu tinha que escrever. No momento que decidi criar o projeto, era um espaço também de compartilhar as minhas ideias, a minha escrita de uma forma mais livre. Então o Agricultura Ancestral também é um momento meu de rompimento com essa lógica de produção, de conhecimento, de ciência ocidental e racista.

É um momento que eu estou falando não só de coisas importantes para o meu modo de vida, para a minha concepção sobre alimentação, sobre a questão da natureza, do território, da terra, da agricultura, mas é um momento de possibilidade, de compartilhamento das ideias com outras pessoas. O primeiro passo que fiz foi criar um site onde pudesse publicar. Eu mesma criei o site, na troca de muitas ideias com outras pessoas.

Eu sempre tive em mente que o projeto tinha que ser acessível. Eu não queria produzir ou criar um projeto que servisse só para quem está na universidade, nas academias, nas instituições formais de pesquisas. Mas que a população, de forma geral, que o meu povo, que o próprio território pudesse se identificar e se sentir representado com o que estava escrito. Então, eu começo a trabalhar e trazer conceitos e reflexões dessas práticas de uma forma bem popular, bem acessível, contando sempre os debates em torno de algum tema.

Tem um texto que eu gosto muito, que é “A saúde do corpo da terra”. É um debate sobre o conceito de saúde, sobre a determinação social de saúde, mas de uma forma que eu sempre trago algum elemento do cotidiano, daquela população, do território, para que as pessoas possam associar essa discussão e também entender a relação direta entre alimentação, ancestralidade, nossa cultura e o que a gente acredita que seja saúde. Esse é um texto que eu escrevo a partir da vivência com a minha mãe, uma raizeira que produz práticas de cuidado e saúde a partir do manejo das plantas medicinais. É gostoso de ler, porque parece uma história sendo contada com vários conceitos, com vários processos de reflexões e debates que são feitos fora do território.

Da mesma forma, tem um artigo sobre mudanças climáticas que eu uso a chuva do Caju, uma chuva muito conhecida no Mato Grosso, principalmente nas comunidades tradicionais. É um evento mesmo dos povos que vivem em biointeração com a natureza. Então, é um momento esperado e celebrado, porque é a primeira chuva que ocorre nessa região do Centro-Oeste. O artigo, “A chuva do Caju e as mudanças climáticas” é uma forma de aproximar um debate tão urgente e necessário, que são as alterações climáticas com os eventos importantes nos territórios, como a chuva do Caju.

Toda a minha publicação é ilustrada, ela tem um depoimento audiovisual também, para que o acesso seja bem mais ampliado. Nem todo mundo é alfabetizado nos territórios rurais, nem todo mundo tem acesso à internet. E é uma forma também de que esse conteúdo seja absorvido por várias gerações, pelas crianças e pelos adultos.

Eu sempre busco associar esses tipos de metodologia. Normalmente, eu faço parcerias com artistas locais do território, quilombolas, negros e indígenas que me ajudam a construir e deixar os artigos de uma forma mais convidativa e mais ilustrativa.

O visual também é comunicação!

CBJC: Você utiliza o conceito de “reparação biocultural”. Em que consiste este termo e como você tem enxergado o potencial dessa reparação para promover uma abordagem climática mais justa?

FP: O conceito de reparação biocultural é um conceito que eu tenho usado mais recentemente. Importante destacar que nesses debates e conceitos nunca é a Fran sozinha, a Fran pesquisadora. Mas sim um reflexo de todos os encontros, todas as encruzilhadas, todos os processos de trocas que eu venho fazendo nos últimos anos, com várias redes, vários movimentos, sobretudo movimentos negros, não só no Brasil, mas também da América Latina.

Então, a reparação biocultural promove o encontro entre a vida dos povos, a relação com o seu território, com a sua cultura, com a ancestralidade. Normalmente, quando se fala em reparação histórica para a população negra no Brasil, essa reparação está associada somente a direitos negados, básicos, como acesso à educação. A gente precisa falar em reparação biocultural, porque ele traz toda a contribuição do nosso povo, da vida, do modo de conviver com a natureza, do modo de se relacionar com o território, do modo de manejar a terra para essa conta. E isso é preciso, porque nos coloca num lugar de construtores dessa nação.

O que foi perdido, o que foi imposto, o fato da gente não conseguir reproduzir as nossas práticas tradicionais, ancestrais, também é uma violência, também gera ônus aos nossos modos de vida, à nossa alimentação. Eu falava do meu teste de DNA recentemente, mas eu sei agora que eu tenho uma dieta alimentar afro-originária, africana e indígena. E que se eu não me alimento dessa dieta alimentar, dessa base, eu vou estar adoecendo o meu corpo.

Quando eu falo em reparação biocultural, eu estou falando também de toda a contribuição ecológica, de serviços ecológicos que o nosso povo desenvolveu e prestou historicamente no Brasil. Desde que aqui chegou, domesticando espécies, manejando a biodiversidade, fundamental para o equilíbrio climático e para a produção de alimentos. Tem um texto recente que publiquei sobre reparação histórica para falar da agricultura, de que não existe história da agricultura e domesticação de espécies no Brasil sem a população preta. Sem a população africana que chegou aqui e que trabalhou de forma forçada, de forma explorada.

Mas não era só o trabalho manual. O trabalho intelectual, o trabalho do conhecimento ancestral que esses povos tinham nos diversos cultivos e no manejo do gado. Eu sou de uma região do Pantanal onde as comunidades quilombolas, a população negra trabalhadora, basicamente é especialista em manejo do gado.

Esse trabalho biocultural, esse trabalho intelectual precisa ser remunerado. Não só agora, mas por todo serviço prestado por essa população

Esse éum debate que tem aparecido cada vez mais nos países da América Latina. Principalmente na Colômbia, que eu acho que é uma grande referência para a gente.

A gente acompanha o trabalho do Processo de Comunidades Negras – PCN, parceiro da Conaq, parceiro das comunidades quilombolas e afrodescendentes, no sentido de fazer essa conta ao nível da América Latina. O tanto que o nosso povo, o tanto que o acesso a território, a biodiversidade também entra na pauta de reparação biocultural a essas populações.

CBJC: Como já observado na questão anterior, você deixa evidente que o Brasil carrega uma herança de economia escravagista, com expropriação de conhecimento e saberes de populações tradicionais e construção de um modelo produtivo voltado ao monocultivo e à exportação. Na sua visão, como esse modelo afeta a biodiversidade e a capacidade das comunidades de garantirem segurança alimentar? E quais têm sido as estratégias de enfrentamento ao modelo imposto?

FP: Um dos projetos que venho desenvolvendo, que é a minha tese de doutorado, é sobre os sistemas agrícolas tradicionais. Eu comecei com as práticas, quando eu iniciei o projeto Agricultura Ancestral, e agora eu estou olhando de uma forma mais ampliada, para os sistemas nos quais essas práticas estão inseridas. Sistemas culturais, de organização social, de relação ser humano-natureza.

Tem sido muito importante ampliar essas reflexões para outros territórios, outros biomas, para além do Pantanal, para além do Mato Grosso. Hoje eu tenho um projeto em parceria com a CONAQ, onde eu já estou há algum tempo sistematizando, fazendo um diagnóstico da agricultura quilombola justamente para entender essa relação direta desses povos com o manejo da biodiversidade e dos sistemas agrícolas tradicionais. São sistemas centenários que vêm sendo adaptados há mais de 400 anos.

Como o Brasil conseguiu discutir sustentabilidade ambiental sem olhar para os territórios quilombolas, sem olhar para os territórios indígenas? Isso é impossível, porque se a gente pensar o tempo de ocupação do território, do manejo agrícola, dos sistemas, dessas práticas ancestrais, você vai ver que é adaptação. Olhar para essas iniciativas, para essas práticas, para esses sistemas nos ajudam e trazem elementos fundamentais para pensar em uma escala do local para o global, já que populações afrodescendentes, populações indígenas não existem só no Brasil, mas nas Américas como um todo, na África e em outros continentes que também estão desenvolvendo práticas tradicionais e ancestrais. Precisamos aprender com essas tecnologias, com essa ciência construída há muito tempo, adaptada e ressignificada constantemente, que demonstram sustentabilidade e resiliência.

CBJC: Como você enxerga o papel das organizações e movimentos de base na promoção da justiça climática e segurança alimentar, especialmente num contexto de aprofundamento das desigualdades raciais e de gênero? Como podemos nos organizar?

FP: Eu sempre falo que populações tradicionais, indígenas e quilombolas, apresentam uma organização que não é compreendida pela lógica racista e ocidental. As pessoas têm mania de olhar para os nossos movimentos e titular eles como desorganizados. Se não fosse a organização, a gente não estaria vivo até aqui.

O primeiro passo diante desse aprofundamento das desigualdades raciais de gênero é reconhecer os diversos processos organizativos do nosso povo. E de que movimentos de base a gente está falando? Quais as formas que esses movimentos se organizam? Não tem um formato certo ou verdadeiro. E eu acho que a gente precisa popularizar isso, a gente precisa olhar para o tecido social brasileiro como diverso em seu formato de organização. E a partir do momento que a gente aceitar a diversidade de se organizar, a gente avança.

O comum é o passo seguinte, que é o que nos mobiliza enquanto organizações, enquanto povo. Desde que a gente se entenda, desde que a gente se comunique. Só assim a gente consegue fortalecer a sociedade brasileira e reduzir a desigualdade racial e de gênero. Mas ainda acho que não estamos nos comunicando de forma suficiente. Não estamos nos escutando ou nos vendo na nossa diversidade. Isso é muito ruim, porque fragmenta e enfraquece a nossa luta. E, diante de um contexto de guerra, que vivemos historicamente, a gente precisa ter estratégias de coletividade, de compartilhamentos. Então, quando eu penso sobre o papel das organizações e movimentos, a base é isso.

Como vamos, nas nossas diferenças, nas nossas diversidades, caminhar para um lugar comum que fortaleça essa luta? Que reconheça que algumas pessoas não têm o mesmo acesso que as outras? Das condições do processo de produção do conhecimento, das condições de incidência política, das condições que são dadas e que não são dadas também. Em termos de mobilização social, é preciso que nós, população negra, população indígena, possamos viver em paz para ter condições mais justas nessa luta.

Eu quero finalizar com o conceito de paz quilombola. Que é o conceito que eu venho trazendo sempre nas minhas escritas, na minha reflexão. Que é um conceito cunhado pela Beatriz Nascimento: a paz quilombola é uma paz que nos convida à ação. É nesse momento que nós, enquanto população preta, população quilombola, conseguimos ser altamente produtivos. A gente consegue traçar as nossas estratégias de sobrevivência. A gente consegue produzir o nosso alimento saudável. A gente consegue cuidar da natureza, da biodiversidade. O momento de paz quilombola é uma ameaça dentro da guerra que a gente está. Por isso que a gente ainda aguarda reparação histórica. Por isso que os nossos territórios não estão titulados, assegurados. Mas é preciso promover essa paz quilombola. E não enxergar essa paz como algo neutro, como algo ocioso. A paz é o momento, é a condição justa que a gente tem para fazer a luta por alimentação saudável e por justiça climática.

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  • CBJC

    O Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC) é uma organização nacional da sociedade civil dedicada às temáticas da população negra na agenda climática do Brasil. A missão é ampliar o debate público e influenciar políticas públicas de justiça climática e equidade racial a nível local, regional e nacional.

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