Em São Paulo, a norte-americana criticou a democracia estabelecida no Brasil, o governo Bolsonaro e exaltou o trabalho realizado pelas mulheres negras
Texto / Lucas Veloso | Edição / Pedro Borges | Imagem / Artur Renzo
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O que há de errado com a raiva [dos negros]? Essa foi uma das colocações feitas pela ativista norte-americana Angela Davis na conferência de encerramento do seminário “Democracia em Colapso?”, no último sábado (19), em São Paulo.
Durante o momento das perguntas, foi questionada sobre o sentimentos das pessoas negras perante as violações dos direitos. O participante disse que na sociedade brasileira ‘os negros devem ser mansos’.
“Tenho problemas com a raiva quando é mal direcionada, mas a raiva, quando é bem direcionada, nos ajuda a progredir”, pontuou. “Mulheres negras têm a reputação de serem raivosas e isso é bom, completou a ativista.
Angela é filósofa, professora emérita do departamento de estudos feministas da Universidade da Califórnia e ícone da luta pelos direitos civis. Integrou o Partido Comunista dos Estados Unidos, tendo sido candidata a vice-presidente da República em 1980 e 1984.
Atuante no grupo Panteras Negras, foi presa na década de 1970 e ficou mundialmente conhecida pela mobilização da campanha “Libertem Angela Davis”. Autora de vários livros, sua obra é marcada pelas reflexões acerca do racismo, encarceramento e a contribuição das mulheres negras.
Durante seu discurso no sábado, Davis fez diversas citações a mulheres brasileiras, como a vereadora Marielle Franco, definida como ‘farol de esperança. “[Ela] acreditava que o racismo poderia ser abolido, que não estávamos destinados a viver com ele. A liberdade é uma luta constante, e Marielle sabia disso”.
A cantora Preta Ferreira, uma das lideranças de moradia em São Paulo, que ficou presa por 108 dias em São Paulo, foi lembrada no discurso inicial. Angela parafraseou a militante. “Preta livre, e sim, pretas livres”, bradou, seguida de fortes aplausos da platéia. “Liberdade para as mulheres negras deveria significar liberdade para todos”.
Para a filósofa, o Brasil tem grandes pensadoras feministas, mas ainda recorre aos Estados Unidos. “Eu sinto que preciso representar para vocês o feminismo negro. Por que vocês têm que olhar para os Estados Unidos? Eu aprendi mais com Lélia Gonzalez [antropóloga e ativista negra brasileira, morta em 1994] do que vocês aprenderão comigo.”, pontuou.
Democracia
Sobre o tema da conferência, Angela criticou a democracia que privilegia grupos sociais, em detrimento da população negra.
“A democracia, nos Estados Unidos como no Brasil, é uma democracia racista porque exclui os negros, é misógina porque exclui as mulheres, é elitista porque exclui os pobres, inclusive homens brancos, e é excludente também com as pessoas com deficiência”, analisou. “A democracia que virá terá de corrigir tudo isso”.
É de Angela a frase “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Neste sentido, a filósofa, ressaltou a importância de envolve-las. “Não há democracia sem a participação das mulheres negras, afinal, elas representam os pobres, os indígenas, as vítimas de violência racial e os oprimidos.”.
Para ela, os atuais modelos de democracia são influenciados pela supremacia branca, prejudicial às populações mais vulneráveis socialmente. Ainda, de acordo com o pensamento, Angela relaciona as penitenciárias como lugares para onde são enviadas as populações que não foram atendidas pelos governos em seus direitos. “Se não lida com as pessoas, livre-se delas”, resumiu.
Socialista, a ativista defendeu que só com uma ‘transformação socialista’ a democracia terá uma ‘transformação radical’ com garantia de inclusão e diversidade.
À la Trump
A ativista apontou, em diversos momentos, semelhanças entre o governo de Jair Bolsonaro e de Donald Trump. Sobre o presidente brasileiro, ela disse que “parece se identificar com ditaduras militares”.
“Há pouco tempo, pessoas que amam a liberdade, como eu, olhavam para o Brasil como um farol de esperança, uma vez que afro-brasileiros e especialmente mulheres afro-brasileiras estavam emergindo e trazendo demandas democráticas raciais”, destacou em determinado trecho.
Sem fazer citações nominais, Angela disse que, como Trump, o presidente do Brasil reforça uma agenda preconceituosa contra o país e os movimentos sociais.
Em tom de brincadeira, Angela lembrou que para não citar o nome do presidente americano, um grupo de mulheres costuma se referir a ele como o ‘morador da Pennsylvania Avenue, número 1600’, o endereço oficial da Casa Branca, sede do governo norte-americano.
Veganismo
Entre as centenas de perguntas do público presente, dezenas questionavam a escolha da ativista pelo veganismo. Primeiro, ela lembrou que deixou de comer carne durante o cárcere, pois na comida tinham larvas. Isso era nojento para ela.
Depois, quando descobriu o tratamento dado aos animais abatidos, decidiu não consumir mais o alimento por não concordar com as práticas. “Essa consciência vem dos indígenas, baluartes do mundo em que habitamos”, observou.
“Sabe de uma coisa? Se não salvar o planeta, nada do que fazemos tem valor. Deveríamos estar pensando sobre os oceanos, o ar”, completou.