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Bem Viver e ancestralidade: idosas negras têm sabedoria dos quilombos para combater invisibilidade

Idosas negros lançam mão de conhecimentos de quilombos para promover qualidade de vida e combater invisibilidade
Ilustração mostra as mulheres negras, idosas e ativistas Lenny Blue e Maria Luiza Nunes.

Foto: Dora Lia/Alma Preta

22 de novembro de 2023

“O quilombo traz vários ensinamentos sobre como a gente enxerga o tempo e a relação com os idosos. Lá, a gente dormia cedo porque anoitecia e não tinha luz elétrica, e acordávamos ainda de madrugada, com o cantar do galo. Olha que maravilhoso, a natureza como referencial de tempo, substituindo o aparelho eletrônico e o despertador. É uma relação diferente da existente na cidade, onde precisamos lidar com a ansiedade e a correria”.

A reflexão é da empreendedora Maria Luiza Nunes, de 65 anos. Nascida em um quilombo da área rural do município de Salvaterra, no Arquipélago do Marajó (PA). Hoje, a idosa vive na capital paraense, Belém, junto com a mãe de 106 anos.

Conhecimentos ancestrais baseados nas relações sustentáveis entre o homem e a natureza são formas de aplicação do Bem Viver. Segundo o conceito africano do Ma’at, a prática consiste no enfrentamento ao capitalismo a partir do estímulo a uma vivência coletiva e comprometida com o meio ambiente. É dessa forma que a dona Maria Luiza invoca os saberes tradicionais para enfrentar os desafios do envelhecimento no centro urbano.

“A nossa principal forma de conexão com o Bem Viver é a partir das memórias afetivas. Por exemplo, meu referencial teórico é a casa de farinha do quilombo. É na casa da farinha onde, além de produzir esse ingrediente que é base no prato da comunidade, todo mundo trabalha de alguma forma, todo mundo come junto, inclusive os animais. É nessa hora que você fala para os mais velhos e para os mais novos e compartilha saberes”, acrescenta.

Imagem mostra a empreendedora Maria Luiza mostrando uma de suas artes.
O saber africano é tema das estampas feitas pela empreendedora Maria Luiza Nunes. Foto: Fernando Assunção/Alma Preta

A empreendedora se utiliza, ainda, de filosofias africanas para enfrentar a “terceira idade”. O sankofa diz que o homem precisa voltar às raízes para poder avançar. Para Maria, a luta pela qualidade de vida passa pela luta pela volta a um passado em consonância com o meio ambiente.

“Minha mãe chegou aos 106 anos sem agravantes na saúde, porque, na infância e na juventude, ela não comeu comida contaminada com agrotóxico. Nos rios, você quase não tem mais água pura, ela já sai da nascente contaminada. As casas não têm mais quintais, as ruas não tem mais as mangueiras”, descreve.

Direito ao envelhecimento é negado a pessoas negras

Não é possível falar em Bem Viver para pessoas negras idosas sem apontar que o direito ao envelhecimento com dignidade é negado sobretudo para esse público. A pesquisa “Pele Alvo: a Bala não Erra o Negro”, aponta que 87,4% das pessoas mortas pelas polícias de oito estados brasileiros em 2022 eram negras.

Segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país tem 22.169.101 pessoas idosas a partir de 65 anos, o equivalente a 10,9% da população. Desse total, os homens pretos e pardos têm uma taxa de mortalidade até os 60 anos, enquanto a população branca começa a morrer a partir dos 75, como aponta o relatório “Envelhecimento e Desigualdades Raciais”.

Para a advogada e ativista Lenny Blue, co-fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU), existe no Brasil um genocídio dos idosos e idosas negros.

“É preciso inserir na pauta de nossas discussões a questão da velhice negra. Idosos negros foram os que mais morrerem na pandemia de covid-19 e isso não virou manchete em lugar nenhum. Se existe um genocídio que impede o nosso direito a envelhecer, existe o genocídio da velhice negra que impede o direito de envelhecer com dignidade”, dispara.

Invisiblidade dos idosos na pauta dos movimentos

Segundo Lenny, a invisibilidade da discussão acerca dos idosos e idosas negros contribui para o cenário. “A velhice negra é invisibilizada, não se fala dela. Os movimentos sociais, mesmo negro, não colocam a demanda da idosidade na pauta. Então o que acontece? Não se pleiteia políticas públicas, porque se não se fala disso, não existe. E essa é uma das piores violências que eu considero com a velhice negra”, afirma.

Estudo da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que os idosos negros na cidade de São Paulo apresentam piores condições de escolaridade, renda, hipertensão arterial e menos acesso a serviços privados de saúde em relação aos brancos. Além disso, 45,5% dos idosos pardos e 47,2% dos idosos pretos descreveram seu estado de saúde negativamente, enquanto nos idosos brancos esse número foi de 33%.

“O racismo estrutural, que segue a linha do tempo desde a infância, na ausência de educação, no subemprego, péssimas condições de moradia, ausência de acesso à saúde, se potencializa na idade idosa”, defende a ativista.

‘Não existe afrofuturismo sem olhar para a ancestralidade’

Lenny Blue defende, ainda, que o olhar para o idoso e combate à invisibilidade desse público também perpassam pela relação cotidiana. “Não existe afrofuturismo sem olhar para a ancestralidade. Só que isso tem que ser real. É uma reflexão: você convida quantas pessoas idosas para passear?”, provoca.

A empreendedora Maria Luiza relata que essa relação com os idosos é uma das práticas quilombolas. “É verdade que existe uma máxima no movimento negro e nos terreiros de que se deve respeito aos mais velhos, mas na prática essa geração ‘tombamento’ quer ‘tombar’ até os saberes dos nossos ancestrais e nos rejeitam. Mas no quilombo ainda temos esse costume de passear com o idoso, conversa. É preciso resgatar isso”, complementa.

Qualidade de vida

Aos 70 anos, Lenny Blue continua ativa na luta pelos direitos das pessoas idosas. “Esse é meu projeto de vida. Embora tenha 70 anos, enquanto eu viver, quero viabilizar e acabar com essa invisibilidade, e tenho essa luta como um alerta contra as formas modernas de apagamento e de silenciamento, que são amparadas pelo colonialismo”, explica a advogada.

Imagem mostra a ativista Lenny Blue.
Aos 70 anos, Lenny Blue continua ativa na luta pelos direitos das pessoas idosas: “Esse é meu projeto de vida”. – Foto: OAB/SP

O senso coletivo e a ideologia sankofa, para Maria Luiza, são premissas da qualidade de vida na idosidade. 

“Eu acho que isso vai dar uma qualidade de vida para nós e para a geração futura: quando a gente aprender a se preocupar também com o ‘pirão’ do outro. O que o outro vai comer? Será que ele tem o que comer? E que bom se a gente puder lutar por um ‘pirão’ sem veneno. É preciso cultivar práticas, como a importância de ter sua horta, seu quintal produtivo. O Bem Viver, o envelhecer com dignidade, perpassa por isso tudo”.

MA’AT O Bem Viver Na Consciência Negra. Este conteúdo faz parte de uma série baseada no Bem Viver, movimento baseado nos conhecimentos ancestrais, colaborativismo e equilíbrio ambiental. Uma forma de repensar a exploração do trabalho e a fruição da vida.

Leia também: Mulheres negras mostram como é possível a prática do Bem Viver na moda

  • Fernando Assunção

    Atua como repórter no Alma Preta Jornalismo e escreve sobre meio ambiente, cultura, violações a direitos humanos e comunidades tradicionais. Já atua em redações jornalísticas há mais de três anos e integrou a comunicação de festivais como Psica, Exú e Afromap.

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