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30 anos do Massacre do Carandiru: estamos prontos para falar sobre abolicionismo penal?

A Alma Preta Jornalismo conversou com sobrevivente do episódio conhecido como o mais violento da história do sistema prisional, com especialistas e com Ministério Público para entender como a chacina impactou a sociedade e a política nacional

Imagem: Itamar Miranda/Estadão Conteúdo/Arquivo

Foto: Imagem: Itamar Miranda/Estadão Conteúdo/Arquivo

1 de outubro de 2022

“Nenhum detento ou ex-detento tem dignidade no Brasil”, afirma Maurício Monteiro. O empresário tinha 23 anos quando a Polícia Militar do Estado de São Paulo adentrou o Pavilhão 9 da antiga Casa de Detenção deixando 111 presos mortos. Ele é um dos sobreviventes do episódio que ficou conhecido internacionalmente como Massacre do Carandiru. Em entrevista à Alma Preta Jornalismo, ele afirma que, 30 anos após a maior chacina que já aconteceu dentro do sistema prisional brasileiro, o país continua matando e “marcando” pessoas nas cadeias. 

A reportagem traz um panorama das heranças do Massacre do Carandiru ao longo desses 30 anos. Segundo especialistas, o episódio é um marco para a ruína do sistema carcerário do país, o estopim para o surgimento do crime organizado e um dos fatores que desenvolveram a cultura do aprisionamento defendido pelo governo Bolsonaro hoje. 

Segundo a história oficial, uma rebelião que supostamente começou por conta de uma briga de facções em um jogo de futebol, acabou com 340 policiais da Tropa de Choque entrando na penitenciária para conter de forma legítima a revolta.

“Ao contrário do que todo mundo diz, não foi uma briga que causou tudo aquilo porque briga em cadeia é comum. Os agentes separaram a briga e levaram os detentos para o castigo, os outros continuaram, cada um, fazendo suas atividades, no banho de sol. A gente ficou esperando os agentes ‘levarem a gente para a tranca’ e ficamos alí. Mas não foram eles que vieram ‘trancar a gente’, quando a gente viu era a polícia já atirando, descendo bala mesmo na gente”, narra Monteiro. 

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, 3.500 tiros foram disparados. Todos os mortos eram detentos. Após esse episódio, Maurício ficou mais 14 anos preso e diz que não viu outro caso de matança orquestrada pela polícia, porém, segundo ele, o Estado nunca parou de matar detentos e ex-detentos. 

“O sistema mata. Mata por falta de saúde, de alimentação, de condições básicas de saneamento e higiene. O sistema mata pela falta do Estado. Isso também é uma chacina que atinge toda uma sociedade, principalmente, as famílias, até os próprios agentes e as famílias deles”, afirma o sobrevivente.

Encarceramento

30 anos após o Massacre do Carandiru, com mais de 800 mil pessoas presas, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Desde a década de 1990, quando houve a ação, o número de presos no Brasil subiu 900%. Naquele ano, o país tinha cerca  de 90 mil, de acordo com o pesquisador da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Gênesis Cavalcanti. 

Dados do Infopen, o sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, apontam que o aumento da população prisional brasileira cresce a um ritmo de 8,3% ao ano. Nessa marcha, o número de presos pode chegar a quase 1,5 milhão em 2025. 

Monteiro cumpriu pena em regime fechado por cerca de 16 anos. Hoje, ele e outros sobreviventes do Carandiru se unem e criam a “1°Frente de Sobreviventes do Cárcere”, grupo que luta para manter a memória desse episódio viva para que os ex-detentos possam garantir os seus direitos. Além disso, ele tem um projeto em andamento chamado “Vista do ponto”, que visa a ocultação dos antecedentes dos egressos do sistema prisional. 

“O projeto é para proporcionar maior qualidade de vida na reinserção dessa pessoa em oportunidades de trabalho e segurança. Hoje, qualquer lugar que eu vou eu tenho uma marca deixada por esse sistema, um número. Qualquer pessoa pode ter acesso aos meus dados e aos antecedentes. Mesmo cumprindo minha pena e pagando pelos meus erros eu não posso trabalhar direito e não ando na rua com tranquilidade”, disse.  

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Em rebelião na penitenciária de Junqueirópolis (SP), detentos exibem faixas com as frases “PCC, paz, justiça e liberdade” e “Contra a opressão / Imagem: Alex Silva/Estadão Conteúdo

O que esperar da justiça

Em entrevista, o promotor de Justiça Márcio Friggi, do Ministério Público de São Paulo, disse que os policiais envolvidos na chacina já estão condenados e algumas famílias tiveram sucesso e conseguiram a reparação pecuniária do Estado. A única coisa que falta para que os agentes cumpram suas sentenças é o Tribunal de Justiça de São Paulo analisar recursos sobre a quantidade da pena. “Ninguém será absolvido”, garante. 

Após o massacre, a Justiça Militar abriu um inquérito e indiciou 121 policiais militares. Porém, em 1996, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que a ação da PM na invasão do Carandiru havia sido legítima. Todas as fases dos julgamentos finalizaram no ano de 2014. 

Ao todo, 73 policiais foram condenados por 77 das 111 mortes que aconteceram no massacre. Todos, no entanto, puderam recorrer em liberdade. Três réus foram absolvidos por falta de provas. Muitos deles continuaram trabalhando na polícia. Eles pegaram de 48 a 624 anos de prisão. 

Leia mais: Câmara quer anistiar policiais envolvidos no Massacre do Carandiru

Esse ano, tramitou na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei que visa a anistia desses agentes, o PL 2821/2021, de autoria do deputado Capitão Augusto (PL-SP), líder da Bancada da Bala na Casa. Friggi considera a medida estritamente política e a classificou como absurda por ferir a decisão do júri popular que condenou todos os réus. “Se não houver anistia, cedo ou tarde eles devem pagar”, afirmou.

Sobre o prazo para que haja o cumprimento da sentença, o procurador afirma que 30 anos é “um descalabro” e nada justifica esse tempo. “Uma justiça lenta, morosa, é o palco da impunidade”. Ele reitera que o Ministério Público não tem mais o que fazer para acelerar o processo que está sob responsabilidade do TJSP. 

Abolicionismo penal 

A professora Marta Machado, do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, afirma que o Estado brasileiro tem total responsabilidade sobre a vida dos detentos. Ela conta que, enquanto estão cumprindo a pena, eles ficam sob custódia do Estado e a pena prevista em lei é unicamente a de privação da liberdade, todos os outros direitos humanos devem ser garantidos. 

“Isso agrava mais a situação [do Massacre do Carandiru], porque foram pessoas que estavam sob tutela do Estado e foram executadas pelo Estado”, considera. 

Durante muito tempo, o Carandiru foi um exemplo de sucesso na reinserção de infratores à sociedade. A Casa de Detenção, construída na década de 1920 de acordo com as normas do Código Penal Republicano de 1890 e do chamado “Direito Positivo”, ganhou notoriedade internacional. A ideia era que as humilhações públicas e as torturas fossem deixadas de lado para que a disciplina fosse aplicada aos infratores até que pudessem retornar ao convívio comum. 

Marta considera que este formato implementado no Complexo do Carandiru em seus anos iniciais de funcionamento, apesar de não ser perfeito, ia ao encontro do conceito de abolicionismo penal, por questionar o modelo com a exclusão da sociedade. Porém, rapidamente o sistema ruiu, levando ao encarceramento em massa e a ausência do Estado.

“Esse modelo de prisão que exclui para depois reintroduzir gera mais malefícios que benefícios. É isso que fala o abolicionismo penal: deixar livre para ressocializar. Porém, o sistema carcerário brasileiro se tornou um holocausto, um local insalubre e violento”, explica a professora.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada três pessoas presas, duas são negras. No país, dos 657,8 mil presos em que há a informação da cor/raça disponível, 438,7 mil são negros (ou 66,7%). Os dados são referentes a 2019.

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A implosão do Carandiru, que chegou ter até 7 mil pessoas, aconteceu em 2002 / Foto: Ângelo Perosa

Ausência de Políticas Públicas 

Segundo especialistas, em 30 anos, poucas políticas que visam aprimorar o sistema penitenciário foram implementadas. Marta Machado destaca a Lei Anti-drogas (Lei 11.343/06), instituída pelo governo de Luís Inácio Lula da Silva, que, no lugar de ajudar a resolver o encarceramento em massa, potencializou principalmente a prisão da juventude negra periférica, fazendo inchar as cadeias do país. 

Outra política implementada, indicada pelo jornalista Bruno Manso, foi a dissolução de presídios de grande porte, como o próprio Carandiru, que chegou a comportar mais 7 mil detentos, para a construção de cadeias para até 800 pessoas. O objetivo era dificultar os motins. Porém, a política fracassou devido à suporlotação. De acordo com o Conselho Nacional do Ministério Público, em 2019, o Brasil possuía 1397 estabelecimentos prisionais com uma taxa de ocupação de 161,39%.  

O sistema prisional brasleiro é uma política pública com grande impacto no orçamento. O valor investido é aferido a partir do que é gasto com cada preso. Até 2012, não se tinha noção do orçamento real para manter esse aparelho. Hoje, sabe-se que cada unidade da federação deposita uma quantidade de verba diferente, variando também de acordo com a especialidade das unidades prisionais. Conforme o Departamento Penitenciário Nacional, em média, esse custo mensal é de R$2.146 por detento, sendo a Paraíba o estado cujo orçamento é menor (R$ 955 por pessoa), e Tocantins o maior (R$ 4200 por pessoa). 

Leia mais: Pena de fome: alimentação em presídios está longe de ser digna

Manso, que é coordenador do Observatório de Segurança Pública de São Paulo, considera que ao longo desses 30 anos mais de 1 milhão de pessoas passaram pelo sistema carcerário paulista. Segundo ele, por esse mecanismo ser muito caro, a má gestão e a ausência do poder público nos presídios fez com que o Estado passasse a delegar a ordem dentro das penitenciárias para os próprios detentos. Essa espécie de autogestão corroborou para o surgimento de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC). 

“O PCC surge na Casa de Custódia de Taubaté, posteriormente ao Massacre do Carandiru, em 1993,  como uma forma de lutar por direitos e mostrar que o inimigo é o sistema, e não ele mesmos”, expõe o jornalista. 

Atualmente, o PCC é uma das organizações criminosas mais expoentes do mundo, com controle de rotas de tráfico de drogas em toda a América Latina e em países da Europa.  

Cultura do encarceramento

Após o ocorrido, a política de encarceramento do Brasil ganha diversas facetas. Marta Machado pontua que essa cultura se ramifica na educação, com as escolas militarizadas; na saúde, com os hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas; e na política e sociedade como um todo, com o advento do governo Bolsonaro e do bolsonarismo. Para ela, existe um fortalecimento da ideia de ordem por meio da exclusão do outro, do que é diferente e da punição. 

Bruno Manso salienta ainda que, dentro desses anos, o poderio do crime organizado conseguiu, também, chegar na política, o que torna o Estado fragilizado em sua soberania. O jornalista explica que o dinheiro que o crime gera, para circular, acaba por entrar na economia formal, e entrando na economia tem mais chances de financiar a política, apoiando parlamentares que podem defender os interesses desses grupos. 

“Existe casos de empresas privadas, que fornecem serviços para o Estado e que têm ligação com o PCC. Então, a política se torna mais vulnerável a esses grupos”, diz. E continua: “Em locais como a Amazônia, por exemplo, existem muitas cidades que se formaram entorno do garimpo ilegal, da grilagem de terras, com o dinheiro fruto desses crimes. Muitos prefeitos, deputados, são eleitos defendendo esses interesses”.

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