Por: Pedro Borges, Pedro Oliveira e Thaís Ellen
O Carrefour firmou novos contratos milionários com empresas de segurança privada e manteve a terceirização de parte do setor da rede de supermercados. Os acordos contradizem o que foi anunciado pela multinacional duas semanas depois da morte de Beto Freitas, sobre a “internalização dos serviços de segurança”.
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O comunicado foi uma resposta às provocações do Comitê Externo Independente, formado por pessoas negras empreendedoras e de movimentos sociais. A empresa afirmou na nota que a internalização da segurança da rede de supermercados tinha o objetivo de implementar “práticas antirracistas e de uma cultura de respeito aos direitos humanos”.
João Alberto Freitas, homem negro de 40 anos, foi espancado por seguranças particulares da empresa Vector, contratada pelo Carrefour, em uma unidade da rede em Porto Alegre (RS), no dia 19 de novembro de 2020, um dia antes da data em que se comemora a Consciência Negra no país. Após uma onda de protestos em várias cidades, o Carrefour se movimentou para evitar processos na justiça e promoveu ações para recuperar a imagem da empresa. A rede de supermercados firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões e com a promessa de promover ações de combate ao racismo.
Os contratos, com prazos de 12 meses ou firmados por tempo indeterminado, somam valores acima de R$ 40 milhões anuais, quantia que representa 35% do pagamento estipulado pela empresa com o TAC. O Carrefour mantém a contratação de 470 profissionais de seguranças terceirizados, registrados por quatro diferentes companhias do setor: Protege, CTS, Segurpro e Absolute.
No TAC assinado, a rede de supermercados se comprometeu a internalizar “as equipes de prevenção” da loja até dezembro de 2021. “Os compromissários expandirão a internalização, até dezembro de 2021, às demais lojas em território nacional”. Com base na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), o TAC obrigou o Carrefour a contratar de modo direto as funções de porteiro e vigia, que têm a possibilidade de revistar uma pessoa após furto, mas tem as ações mais concentradas em observar e chamar a segurança em caso suspeito. O acordo não cita a necessidade de internalizar equipes de vigilantes e guardas de segurança.
André Zanetic, pesquisador da USP e especialista em segurança privada, explica que não há, na prática, uma grande diferença entre as funções estabelecidas para vigias e vigilantes. “A única diferença na verdade é a questão do porte de arma e a capacitação obrigatória. O vigilante e o segurança têm de fazer uma série de cursos, ter formações de defesa, curso da Polícia Federal. Mas na prática, não há uma grande diferença de funções”.
Ela ainda sinaliza que as empresas preferem contratar o serviço de vigias e não de vigilantes por uma questão de custo. A mão de obra dos vigias é mais desvalorizada, por exigir menor formação.
“É o que a gente tem visto muitas empresas fazerem, inclusive grandes empresas, contratar esse pessoal menos qualificado. Com isso, existe a probabilidade de você ter problemas relativos à conduta desses profissionais, e isso se relaciona também a um aspecto fundamental de como o contratante, a empresa, direciona a ação desses vigias. A gente tem inclusive uma seletividade enorme nessa ação que acaba repousando, sobretudo, na população negra”, explica.
Como resposta ao TAC, o Carrefour lançou a política EuPraticoRespeito, uma maneira de orientar os profissionais da empresa para o não cometimento de violações de direitos humanos.
Vigias e porteiros, apesar de terem a possibilidade de abordarem pessoas e desenvolverem atividades semelhantes a de guardas de segurança, não são regularizados pela Polícia Federal. Há um menor controle sobre essa profissão, na comparação com a outra.
André Zanetic acredita que a situação precisa ser melhor discutida no país e há a necessidade de se aumentar a regulação sobre os vigias. “Acho que isso extravasa a questão do Carrefour, porque não é através do TAC que isso vai ser resolvido. O TAC é só uma questão específica com o que aconteceu com o Carrefour. A questão específica de regular melhor a segurança é algo mais amplo, da legislação do setor como um todo. O Carrefour tomou essas medidas, e aí tem que ser monitorado se essa internalização pode fazer uma diferença mesmo”.
As renovações
Um dos acordos renovados pelo Carrefour foi a Protege S.A, contrato existente desde 29 de março de 2019, e renovado em 23 de fevereiro de 2021, com longevidade de tempo indeterminado. O novo contrato firmado com a Protege tem o valor mensal de R$ 153 mil, cifra anual de R$ 1,836 milhão e conta com 23 funcionários da área.
A rede renovou contrato com outras empresas também, com sinalizações parecidas para todas. Nos acordos, está posto que as empresas de segurança privada devem comprovar reciclagem dos funcionários, formação na área dos direitos humanos e não utilização da violência. A rede de supermercados também exige a apresentação de comprovantes de que esses profissionais passaram por essas formações e avaliações psicológicas.
O acordo também diz que o Carrefour pode romper o contrato com a Protege “por danos morais e de imagem eventualmente causados à contratante”, com aplicação de multa de 30% do valor equivalente a 12 meses de contrato. O Carrefour também coloca como princípio o desejo de romper com o contrato quando houver um caso de discriminação e ou de desrespeito aos princípios éticos da empresa. Cláusulas semelhantes foram colocadas para as demais empresas.
Os serviços da Protege foram contratados para as unidades de Santa Maria (RS), Canoas (RS), Juiz de Fora (MG), Belo Horizonte, Uberlândia (MG) e Contagem (MG). Há inclusive funcionários de segurança privada contratados para a cidade de Porto Alegre, onde João Alberto Freitas foi assassinado por funcionários da Vector.
O Carrefour também celebrou outro contrato, firmado desde 19 de janeiro de 2017, com a CTS Vigilância e Segurança LTDA, responsável pelo “contrato de prestação de serviços de vigilância armada e segurança patrimonial para as unidades, centro de distribuição e plataformas da região sudeste (São Paulo/Rio de Janeiro)”. O valor do acordo é de R$ 32.039.806,44, para os doze meses de contrato, quantia que representa 27% do valor da TAC, e foi assinado no dia 10 de fevereiro de 2021 com prazo vigente indeterminado. A CTS é a empresa com mais profissionais de segurança privada contratados, número que chega a 396 vigilantes.
A multinacional, a CTS e uma empresa de gestão de estacionamento são, inclusive, alvos de uma ação de indenização por danos materiais e morais por conta de um furto de bicicleta, nas dependências da unidade do Carrefour Villa Lobos, em São Paulo. O caso ocorreu em 16 de março de 2022, meses depois do período, acordado pela TAC, de que o Carrefour deveria ter internalizado toda a segurança dos estabelecimentos. A ronda do estacionamento é feita pela CTS por vigilantes de moto.
A Segurpro Vigilância Patrimonial LTDA teve o contrato, existente desde 2 de junho de 2016, renovado no dia 16 de agosto de 2021, um mês depois da assinatura da TAC. No texto, está escrito que “O presente Contrato entra em vigor na data de sua assinatura e permanecerá vigente por prazo inicial de 12 (meses), a contar da data da assinatura do presente instrumento, passando a viger por prazo indeterminado após transcorrido esse prazo inicial”. O valor mensal do serviço prestado é de R$ 448 mil reais, valor anual de R$ 5.381.392,92, com a contratação de 37 profissionais, distribuídos em unidades de Fortaleza (CE), Brasília (DF), João Pessoa (PB), Cabo de Santo Agostinho (PE), Recife (PE) e Natal (RN).
O Carrefour também deu continuidade ao acordo com a empresa Absolute Segurança Patrimonial, contrato existente desde 19 de janeiro de 2017, e renovado com diferentes cláusulas. Os serviços são para Curitiba, Londrina e Pinhais, com 14 funcionários, no valor mensal de R$ 87.591. O prazo do contrato também tem tempo indeterminado.
Carrefour e outros órgãos
O TAC foi assinado com o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS), o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE-RS), a Defensoria Pública da União (DPU). O texto do acordo aponta que todos esses órgãos tinham a responsabilidades de acompanhar esse tópico, sobre a implantação de um modelo de segurança próprio do Carrefour.
O TAC prevê penalidades para o Carrefour em caso de descumprimento de alguns pontos do acordo. Antes de aplicar multas, os órgãos pedem um retorno sobre um aspecto não respondido no prazo de 15 dias. Sem uma resposta e sem um consenso entre as partes para uma prorrogação do tempo, o caso é repassado para o poder judiciário.
O descumprimento dos prazos e acordos podem gerar multas de R$ 25 mil para cada ponto violado, e o acordo sinaliza que as multas não podem ultrapassar a casa de R$ 500 mil. Apenas em caso de descumprimento das obrigações, no prazo de três anos, o teto das multas pode chegar a R$ 750 mil. A rede de supermercados não recebeu, até o momento, qualquer multa por parte dos órgãos responsáveis por fiscalizar a execução da TAC.
Não há, contudo, previsão de multa para o descumprimento do artigo em específico que trata sobre os serviços de segurança privada e os contratos do Carrefour com essas empresas. Apesar disso, há a possibilidade de repassar a situação para o poder judiciário avaliar, em caso de entendimento de que a rede de supermercados descumpriu a TAC. Não existe também uma previsão de ruptura do acordo, em caso de desacato contínuo por parte do Carrefour.
O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul afirmaram que o TAC “está sendo cumprido e fiscalizado”.
“Quanto a questionamento específico encaminhado pela agência de notícias, é preciso esclarecer que a cláusula a Cláusula 2.6.10 que trata das equipes de prevenção refere-se à expansão da internalização dos fiscais de loja (CBO* 5174-25), sendo que esta medida foi informada pelo Grupo Carrefour como tendo sido cumprida dentro do prazo (dezembro/2021), constando essa informação em relatórios de auditoria externa, previstos na cláusula 4 do TAC”. A nota também reitera que os órgãos vão enviar, no mês de março, um ofício para obter informações atualizadas sobre o cumprimento desse aspecto do acordo.
O Carrefour afirma que seguiu as orientações do TAC e contratou funcionários de prevenção e fiscalização até agosto de 2021, dentro do prazo estipulado pelo acordo. A rede de supermercados também afirmou ter reformulado todo o código de conduta interno da companhia.
Sobre os contratos com as empresas de segurança privada, a rede afirma que as empresas “exercem exclusivamente a atividade de vigilância”. A companhia também destaca que “todos os contratos foram devidamente revisados com a inserção de cláusulas de responsabilidade social que reconhece expressamente o respeito aos direitos humanos e treinamentos anuais na área de combate à discriminação e à violência, reforçando o modelo de atuação de segurança humanizada, promovendo um ambiente seguro e agindo com respeito e cordialidade com todas as pessoas”.
A equipe de reportagem também questionou a Educafro e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, ligado à Arquidiocese de São Paulo, sobre a concordância em assinar o TAC com a exigência do Carrefour não contratar terceirizadas apenas para vigias e porteiros, e não para vigilantes e seguranças. As duas organizações não se posicionaram até o fechamento da reportagem.
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