O número de denúncias de casos de tortura em unidades prisionais aumentou em 37,65% dentro de 19 meses entre 2021 e 2022 comparado ao mesmo intervalo de tempo entre 2019 e 2020. É o que aponta o relatório “Vozes e Dados da Tortura em Tempos de Encarceramento em Massa”, lançado na última terça-feira (17) pela Pastoral Carcerária Nacional.
Segundo o documento, entre 1° de janeiro de 2021 a 31 de julho de 2022, foram 223 casos de violações de direito registrados, totalizando 369 denúncias. Já entre 1° de janeiro de 2019 e 31 de julho de 2020 foram registrados 162 casos. Um único caso sobre uma unidade prisional específica pode ter sido originado por mais de uma denúncia.
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Segundo a Pastoral Carcerária Nacional, a ampliação no número de casos abertos possivelmente dialoga com o reconhecimento institucional da Pastoral Carcerária, o retorno das visitas pastorais após a pandemia da Covid-19, além do recrudescimento e a brutalidade crescente do sistema penal. “Ao longo dos últimos anos, a violência contra as pessoas presas tem crescido cotidianamente, mediante diversas ferramentas de tortura”, afirmam no relatório.
De acordo com Carol Dutra, integrante do setor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, muitas das denúncias chegam por meio de relatos de familiares e religiosos que visitam as unidades e conseguem presenciar as diversas violações às quais as pessoas presas são submetidas.
“Ao longo destes anos, tem-se formado a consciência coletiva de que tortura não é somente aquela descrita na lei: é também a falta de água, comida, lugar para dormir, entre outras violações de direitos”, explica Carol.
“Somado a isso, o aumento dos casos também dá a luz ao trabalho contínuo de redes, mecanismos e organizações de familiares de pessoas e defensores dos direitos humanos que foram criados durante a pandemia e, cotidianamente, nos enviam denúncias de violações em unidades prisionais do Brasil inteiro”, complementa a integrante da Pastoral.
Entre as denúncias registradas até o ano passado, há uma série de diferentes violações e torturas. Em muitos casos, há mais de um tipo de violação. São eles: 123 casos de negligência na prestação de assistência material, 116 casos de agressão física, 106 casos de negligência na prestação de assistência à saúde, 81 casos de tratamento humilhante ou degradante como manter pessoas presas sem banho de sol, 67 casos de violações contra familiares de pessoas presas, como negação do direito de visita, 41 casos de agressões verbais e 37 casos de condições degradantes de aprisionamento, como superlotação.
Além disso, há casos registrados de negligência na prestação de assistência jurídica, casos de vítimas de castigo coletivo, uso de tropas de intervenção, prática de revista vexatória, discriminação em razão da cor, etnia, identidade de gênero ou orientação sexual, além de casos de violência sexual praticada por funcionários da unidade prisional.
“A tortura faz parte da estruturalidade do sistema prisional. São múltiplas as formas de violência que produzem sofrimento nas pessoas presas e seus/suas familiares, todas elas direcionadas para uma gama de funcionalidades que dialogam com a manutenção do racismo, da misoginia, da homotransfobia e das demais opressões que sustentam a elite nacional na regência do modo de produção”, destaca trecho do relatório.
São Paulo soma o maior número de registros
O relatório revela que, no período mencionado, os cinco estados com mais números de casos abertos pela Pastoral Carcerária foram: São Paulo com 71 casos (31,83%), Minas Gerais com 31 casos (13,90%), Goiás com 17 casos (7,62%), Rio Grande do Sul com 13 casos (5,82%) e Ceará com 11 casos (4,93%).
São Paulo possui a maior população carcerária do país, com mais de 200 mil pessoas presas. “Esses números mostram a permanência do estado de São Paulo como território de extrema truculência e brutalidade contra as pessoas presas. Nos últimos relatórios publicados pela Pastoral Carcerária, o estado também se posicionou na liderança dos estados mais denunciados”, afirma trecho do documento.
A Pastoral acrescenta que o número reduzido de casos abertos em determinados estados não representa a ausência de violações ou a preservação dos direitos das pessoas presas nesses territórios. “Pelo contrário, o baixo números de casos pode ser resultado de atmosferas punitivas que circundam o espaço prisional, que ameaçam e alimentam o medo dos/as denunciantes que são coagidos/as a ficarem em silêncio. Esse cenário de medo e punição, dificulta a construção robusta de canais de denúncia na localidade”.
Falta ação dos órgãos competentes
Segundo o relatório publicado, uma das expressões mais evidentes da tortura prisional, que a posiciona no epicentro da gestão carcerária, é a completa falta de vontade por parte do Estado em investigar ou responsabilizar os eventuais autores das violências.
O documento informa que em 16% dos casos denunciados não houve resposta dos órgãos competentes às denúncias da Pastoral. Quando houve uma resposta, o que representou 80% dos casos, a principal medida adotada pelo órgão competente foi a instauração de um procedimento interno, considerado um passo inicial. No entanto, segundo informações da Pastoral, o acompanhamento dos casos mostra a inefetividade das ações adotadas.
“O Estado tem a predileção em ouvir a própria Administração, ignorando as vítimas. Em mais de 43% das respostas recebidas pela Pastoral, foi determinada a prestação de esclarecimentos para a unidade prisional ou para a secretaria estadual responsável pela gestão carcerária, demonstrando a escolha política em ouvir exclusivamente o investigado ao invés das vítimas. Os órgãos do sistema de justiça preferem escutar a versão da direção da unidade ou da secretaria do que as pessoas presas, muitas vezes encerrando o caso só com essas informações unilaterais prestadas pelo Estado”, diz o relatório.
Ainda segundo o documento, a escolha em ouvir o Estado em vez da vítima já revela a estrutura racista e punitivista que sustenta a justiça criminal brasileira. “As vítimas são majoritariamente pretas e estão presas, condenadas ou acusadas, suas vozes e dores não são passíveis de escuta pelo Estado, fazendo com que a máquina de morte carcerária continue em operação”, complementam.
Denunciar os crimes de tortura
De acordo com Carol Dutra, além de denunciar as violações, é importante dar visibilidade e se atentar ao cenário de violações de direitos que ocorrem dentro das unidades prisionais. Segundo ela, no momento em que uma pessoa é presa no Brasil, consequentemente ela acaba também perdendo suas identidades, subjetividades e vozes.
“Quando uma pessoa é encarcerada, toda a sua família e amigos são consequentemente, também encarcerados, e passam a também serem submetidos a uma série de violações. Portanto, ouvir essas pessoas e permitir que elas sejam protagonistas de suas próprias histórias é o primeiro passo da luta anti-cárcere”.
Após esse passo, ainda de acordo com a integrante do setor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, é importante entender a seletividade da justiça penal e como o cárcere faz parte do projeto do Estado sobre a população negra e periférica.
“É importante percebermos que, apesar de a luta antitortura caminhar na direção do abolicionismo penal e de um mundo sem cárceres, precisamos lutar também pela transformação das estruturas de poder e do ordenamento jurídico”, afirma.
A Pastoral Carcerária Nacional é uma das entidades que assinam a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, lançada em 2013. Na ocasião, movimentos e organizações sociais de enfrentamento ao Estado Penal apresentaram uma agenda para o sistema prisional, cuja proposta central apontava para a exigência de um programa de desencarceramento que estabelecesse metas claras para a redução imediata e drástica da população prisional.
“Dentre as diretrizes articuladas pela agenda estão a ampliação das garantias da execução penal, a abertura do cárcere para a sociedade, a suspensão de qualquer investimento em construção de novas unidades prisionais, a proibição absoluta da privatização do sistema prisional, dentre outras. A leitura, reflexão e o compartilhamento da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, é essencial para dar visibilidade e incentivar a movimentação e organização da sociedade civil, do judiciário e dos órgãos institucionais para o combate ao encarceramento”, explica Carol.
A Pastoral Carcerária conta com um espaço para os membros da entidade, vítimas, familiares e outros interessados denunciarem situações de violações de direitos em unidades prisionais. A organização se compromete a encaminhar os relatos para as autoridades competentes e acompanhar o resultado. O formulário de envio, além de outros meios de contato, estão disponíveis no site da Pastoral.
Veja abaixo o vídeo de apresentação do relatório publicado:
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