“As chuvas sempre fizeram parte da rotina, mas este ano, com as obras mal feitas, casas que nunca haviam sido atingidas no Flexal foram alagadas. E isso ocorreu após uma chuva rápida, em fevereiro. Se fosse uma tempestade prolongada, como as que duram dez dias em outros estados durante o inverno, a situação seria ainda mais grave”.
O depoimento acima é do comerciante Valdemir Alves dos Santos, de 54 anos, que mora há mais de 30 anos no Flexal de Cima, no bairro de Bebedouro, em Maceió.
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No dia 5 de fevereiro deste ano, os pluviômetros (que medem a quantidade de chuva) de Maceió registraram 84 mm de chuva em 24 horas, superando a média esperada para todo o mês, de 80 mm.
O temporal resultou em 45 ocorrências em toda a cidade, deixando 27 pessoas desalojadas e três desabrigadas.
Nos Flexais, a Defesa Civil de Maceió afirma que “registrou apenas cinco ocorrências, todas sem gravidade”. A declaração, porém, é contestada por Valdemir e outros moradores do bairro.
As comunidades Flexal de Baixo e Flexal de Cima estão, atualmente, isoladas socioeconomicamente após serem afetadas pelo afundamento do solo causado pela extração de sal-gema pela mineradora Braskem.
Elas ficam no bairro Bebedouro, um dos cinco bairros fantasmas que a tragédia criou — junto com Bom Parto, Pinheiro, Mutange e uma parte do Farol.
A tragédia completou sete anos no último dia 3 de março e é reconhecido como o maior desastre ambiental em área urbana do mundo. O impacto levou à desocupação de 15 mil imóveis e forçou cerca de 60 mil pessoas a abandonarem suas casas.
Mesmo sob condições precárias, Valdemir e cerca de 2 mil pessoas ainda vivem nos dois Flexais.
Obra piorou impacto das chuvas
De acordo com o comerciante, uma obra de requalificação viária realizada na região, como parte do Projeto de Integração Urbana e Desenvolvimento dos Flexais — iniciativa voltada à melhoria da infraestrutura e das condições de vida da comunidade — acabou trazendo impactos negativos.
Segundo ele, as intervenções, que tinham como objetivo beneficiar os moradores, acabaram gerando o efeito oposto: o impacto das chuvas foi agravado pelas obras executadas.
“Quando choveu [em fevereiro], a água deixou de escoar como antes, o que agravou ainda mais a situação dos moradores. Um rapaz cuja casa teve parte do imóvel desmoronada. Isso não aconteceu apenas por causa da chuva, mas também devido à movimentação das máquinas durante as obras”, relata o morador.
Sobre o assunto, Valdemir ainda afirma que, embora a chuva tenha durado apenas um dia, já foi suficiente para causar diversos transtornos na comunidade.
“A chuva que caiu naquele dia foi a prova disso. Se eles dizem que não foi grave, é porque não moram aqui”, brada Valdemir.
O comerciante ainda expressa preocupação com o risco de novas chuvas intensas e a falta de ação do poder público. “Se uma chuva maior acontecer, a população aqui vai ter que sair nadando, procurando um lugar seguro”.
Mudanças climáticas
As fortes chuvas que atingiram Maceió em fevereiro deste ano surpreenderam pela intensidade e volume, especialmente nas áreas mais vulneráveis da cidade, como a comunidade dos Flexais.
De acordo com o meteorologista e superintendente de Prevenção em Desastres Naturais da Secretaria do Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Alagoas (Semarh), Vinicius Nunes Pinho, o fenômeno foi causado por um vórtice ciclônico de altos níveis (VECAN), um sistema climático que, neste caso, trouxe chuvas para a faixa litorânea, um comportamento atípico para o período.
Embora o volume de precipitação tenha superado a média histórica, o grande desafio foi a concentração da água em um curto espaço de tempo.
“Em Maceió, por exemplo, em apenas 30 minutos, houve um acumulado significativo de chuva. A cidade não está preparada para suportar um volume tão alto em tão pouco tempo, especialmente nas áreas de risco”, alerta.
Para o metereologista, o aumento da frequência e intensidade dos eventos climáticos também preocupa. Pinho ressalta que as altas temperaturas registradas em Maceió nos últimos anos estão diretamente relacionadas a esse fenômeno.
“Em 2024, tivemos o ano mais quente registrado na cidade, e 2025 também tem apresentado temperaturas acima da média”, destaca.
De acordo com o metereologista, o calor excessivo contribui para a formação de chuvas rápidas e intensas, muitas vezes acompanhadas de ventos fortes e descargas elétricas, como as que ocorreram nas últimas semanas.
Essa situação se reflete de maneira mais grave nas áreas de risco, como os Flexais, que enfrentaram sérios problemas devido à falta de infraestrutura capaz de lidar com eventos climáticos desse porte.
“A drenagem urbana não consegue dar conta de volumes tão grandes de água em tão pouco tempo, o que torna as regiões mais vulneráveis as mais impactadas”, explica Pinho.
Falta de assistência da prefeitura e da Braskem
O morador e comerciante Valdemir Santos critica a falta de assistência às famílias que moram na borda da área de risco do afundamento dos bairros.
Segundo ele, “a Braskem aqui não oferece assistência a ninguém, e a prefeitura de Maceió também não”.
“Eles estão sendo forçados a fazer paliativos que não resolvem nada”, critica.
O impacto da desvalorização dos imóveis na região também é uma preocupação. O comerciante atribui essa perda à própria Defesa Civil da gestão do prefeito João Henrique Caldas, o JHC (PL).
“Desde o primeiro mandato dele, temos sofrido com a desvalorização do nosso patrimônio”, critica.
Além dos problemas estruturais, ele alerta para o impacto emocional da crise. “Nada do que estão fazendo aqui está ajudando. Só está piorando psicologicamente a população, que sofre cada vez mais”, afirma.
O morador relata que o sofrimento tem levado muitas pessoas ao limite. “Muitas pessoas estão até se matando, tamanha a pressão e o sofrimento. Psicologicamente, ninguém mais vive bem aqui”, lamenta.
De acordo com o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB), pelo menos 20 pessoas afetadas pela mineração tiraram a própria vida desde 2018.
Piora na mobilidade urbana
Os moradores dos flexais enfrentam dificuldades cada vez maiores para sair de suas casas e se deslocarem por Maceió.
“Não temos mais mobilidade urbana”, diz Valdemir. “O trânsito piorou muito. O caos só aumentou, e as vias foram fechadas”, afirma.
Ele recorda que, antes, uma das vias permitia que ele fosse ao centro de Maceió em até 15 minutos, dependendo do tráfego. Mas essa rua foi fechada, deixando os moradores sem acesso direto ao centro da cidade.
O morador também observa que o trânsito se agravou com a mudança da população do bairro do Pinheiro, um dos afetados, para a parte alta da cidade.
“Sabemos que toda a população que saiu do Pinheiro, que está na parte alta, agora usa o mesmo trânsito da Fernanda Lima”.
A situação piora nos horários de pico. “Essa população toda sobe para a parte alta e agora desce em conjunto, pela manhã e à tarde, voltando para o centro para trabalhar. Com isso, o congestionamento fica ainda mais intenso”, reclama o comerciante.
Para quem anda de ônibus, está ainda mais crítica. Com a retirada de parte da população dessas áreas, as empresas de transportes deixaram de circular na região. O comerciante diz que isso fez com que resultasse em longas esperas.
“Hoje, você espera meia hora por um ônibus no ponto. Quando ele finalmente chega, tem que enfrentar o trânsito”.
Durante audiência pública chamada pela Defensoria Pública de Alagoas (DPE-AL) no último dia 13 de fevereiro, os moradores destacaram o crescimento da violência na região, especialmente contra as mulheres, que têm que percorrer grandes distâncias para acessar o transporte público.
Urbanista defende realocação imediata e ações emergenciais
O arquiteto e urbanista Dilson Ferreira, professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), destaca que, devido ao risco constante de alagamentos e deslizamentos, é urgente a implementação de um monitoramento constante e ações concretas da Defesa Civil e da prefeitura.
Segundo o arquiteto, seria essencial revisar e atualizar os planos de drenagem e contenção de enchentes, além de monitorar intensivamente o nível das lagoas e dos rios nas cabeceiras.
“Alertas antecipados à população e planos de evacuação adequados são medidas urgentes. O que está acontecendo na região dos Flexais não é apenas um problema climático, mas também o resultado de um isolamento social provocado pela Braskem”, afirma.
O especialista defende a realocação dos moradores de maneira imediata.
“A realocação é a única solução possível, visto que a área dos Flexais é definida pelo plano diretor da cidade como uma ‘área de restrição à ocupação’. A própria legislação da cidade impede a ocupação dessa área, então qualquer projeto urbano ali é inviável”, esclarece.
Ferreira ainda foi enfático sobre a tentativa de revitalização da área, que considera ineficaz. Para ele, projetos urbanísticos impostos sem a participação da comunidade não são a solução.
“Não adianta a prefeitura de Maceió tentar impor um projeto de revitalização que não teve a participação dos moradores. A revitalização não resolve o problema de uma região isolada, sem infraestrutura e sem serviços básicos”, ressalta.
Outro lado
Procurada pela Alma Preta, a Defesa Civil de Maceió informou sobre a possibilidade de ampliação do mapa de risco com a inclusão dos Flexais.
Segundo o órgão municipal, até o momento, não há indícios de que as patologias encontradas na localidade estejam relacionadas ao processo de afundamento do solo causado pela mineração. Logo, não haveria dados que justificassem a atualização do “Mapa de Linhas de Ações Prioritárias (versão 5)”.
Sobre as ações para minimizar os impactos causados pelo afundamento do solo na região, a pasta informa a existência do Projeto de Integração Urbana e Desenvolvimento dos Flexais. Ele prevê a implementação de 23 medidas socioeconômicas voltadas para a recuperação e o desenvolvimento da área afetada.
“Essas medidas incluem ações nas áreas de segurança, saúde, mobilidade, assistência social, educação, entre outras. Há, entre as medidas, ações que são emergenciais e que já estão em andamento”, explica. O andamento das medidas pode ser conferido por meio deste link.
Já a Braskem diz que continua a implementar as medidas socioeconômicas previstas no projeto citado anteriormente. Além disso, destaca que o objetivo principal da iniciativa é o de “reverter o ilhamento socioeconômico da região, por meio de 23 medidas, das quais 14 já foram executadas”.
Além disso, a companhia diz que a região dos Flexais é constantemente monitorada e, segundo estudos técnicos, não apresenta movimentação de solo associada a afundamentos. Leia o pronunciamento na íntegra clicando aqui.