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‘Arrume seu cabelo’: CNN Brasil responde processo por racismo após exigência a jornalista com dreads

Emissora responde a outro processo na Justiça do Trabalho de São Paulo por comentários de superior contra editor de texto; CNN afirma não comentar processos em andamento e destaca diversidade na companhia
Imagem mostra um microfone vermelho da CNN Brasil.

Foto: Reprodução

20 de agosto de 2024

Resumo da Notícia

  • Profissional que trabalhou para a emissora nos EUA alega ter sido alvo de comentário e tratamento racistas
  • Empresa de jornalismo responde outros processos e têm um histórico de lidar com casos de racismo
  • CNN afirma não comentar processos em andamento, mas negou as acusações durante o processo

A CNN Brasil solicitou ao jornalista Fernando Henrique de Oliveira que arrumasse o seu cabelo “dread” por estar em “descompasso com a atividade”, segundo o ex-funcionário da empresa em depoimento à Justiça do Trabalho de São Paulo. Ele trabalhou para a companhia na redação de Nova York.

A Alma Preta teve acesso ao processo movido pelo profissional que corre em segredo de justiça, iniciado em novembro de 2020 contra a TV por racismo estrutural. 

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Segundo o documento, o juiz José Celso Bottaro, da 80ª Vara do Trabalho, considerou que as provas apresentadas pelo jornalista não foram suficientes para comprovar a tese de discriminação racial. A defesa recorreu e agora o caso vai ser julgado novamente, ainda sem data marcada para isso acontecer.

Uma testemunha ouvida no processo, que também trabalhou na TV, afirmou em depoimento que a editora de Internacional, Adriana Mabilia, comentou sobre a dificuldade de colocar Fernando no ar, “pois ele fugia do padrão exigido”. 

Oliveira também alega que a emissora explorou o fato de ele ser negro para convidá-lo a dar um depoimento pessoal sobre o assassinato de George Floyd. O profissional disse em depoimento que outros jornalistas não tiveram que fazer o testemunho pessoal sobre o caso. Além disso, “teve que reviver sua história de racismo mais uma vez na televisão.”

Sobre a diferença de tratamento entre profissionais negros e brancos, ele diz que foi encarregado de levar todo o equipamento da empresa para as gravações na rua e também o material que estava com outra jornalista branca por ser um profissional negro. Durante o depoimento também é citado que o profissional “recebeu um pedido da empresa pelo WhatsApp para fazer a segurança da [jornalista da empresa] no período da noite”. 

Ele ainda contou que era normalmente escalado para reportagens de “inferior relevância”, ou aquelas que envolviam riscos à saúde, a exemplo de materiais produzidos durante a pandemia da Covid-19. 

Ele afirma que era “exposto à contaminação pelo vírus da Covid-19 que foi especialmente grave em Nova York (DOC’s 10/12), ou, ainda, para fazer às vezes de ‘segurança’ da colega, que tinha medo de gravações noturnas sozinha nas ruas”, destaca outro trecho do documento.

Oliveira, que trabalhou como produtor na redação da cidade de Nova York, nos Estados Unidos, contratado sem registro na carteira de trabalho e mediante CNPJ, alegou ter sofrido tratamento desigual em relação a profissionais brancos, incluindo as diferenças salariais. 

A defesa do jornalista argumenta no processo que “todos os demais jornalistas negros recebem salários inferiores aos dos seus respectivos pares brancos. Na redação de Nova York, o reclamante recebia cerca de 3 vezes menos” do que outra jornalista branca. 

Além da alegação de racismo, o jornalista processa a emissora por fraude contratual, jornada de trabalho excessiva, acúmulo de funções, adicional de transferência e fraude na obtenção de visto de trabalho nos Estados Unidos. 

CNN Brasil nega acusações 

No processo, a empresa destacou que o profissional não era o único a usar o cabelo “dread”, já que outro âncora — que já conduziu o jornal “Live CNN” — fez participações com o cabelo parecido. Além disso, destacou que existem outros repórteres com o mesmo tipo de visual.

“A narrativa do Reclamante é tão absurda que ele mesmo traz aos autos, um print de uma reportagem que ele teria produzido, em que ele aparece com dread no cabelo. Ora, como a Reclamada teria discriminado o Reclamante quanto ao seu cabelo se não apenas ele apareceu na televisão com o dread como também outros jornalistas?”, diz a defesa da CNN. 

A CNN Brasil negou todas as acusações e ainda argumentou que a relação com o jornalista Fernando Henrique de Oliveira foi estritamente de “natureza comercial” e que ele tinha autonomia na prestação de serviços.

A empresa também afirmou no processo que o profissional teve oportunidades de se expressar sobre questões raciais e que sua demissão foi motivada por cortes de gastos. 

Procurada pela reportagem, a emissora informou que não se manifesta sobre processos em andamento na justiça e disse valorizar a diversidade. “A CNN Brasil não comenta processos judiciais em andamento, especialmente aqueles que tramitam sob segredo de justiça. A CNN Brasil valoriza a diversidade e o respeito a todos os seus colaboradores, mantendo um compromisso contínuo com a igualdade e a inclusão em todas as suas práticas”, diz o comunicado.

Juiz alega falta de provas no caso de racismo 

O juiz Bottaro afirmou que a diferença salarial e a menor exposição na TV eram justificadas pela diferença de funções entre ele e outros jornalistas, e não por discriminação racial

O juiz rejeitou a alegação de racismo estrutural e discriminação relacionada ao estilo de cabelo “dread”, argumentando que a questão não foi levantada na petição inicial, o que a torna processualmente inadequada. Além disso, destacou que a presença de outros jornalistas negros com dreadlocks na mesma emissora enfraquece a tese de discriminação racial.

O magistrado também considerou que o depoimento da testemunha de Oliveira não era confiável, por ela demonstrar estar emocionalmente envolvida no caso. 

A defesa do jornalista entrou com recurso contra a decisão do magistrado sobre o caso de racismo estrutural, alegando não haver como “desconsiderar o episódio relatado pela testemunha quanto a discriminação pelo tipo de cabelo do recorrente, sob o argumento de que ‘nem sequer foi relatada na causa de pedir da inicial’”.

Além disso, destaca que a testemunha deixou claro que houve determinação do superior Américo para que ele e Fernando dessem depoimento sobre as situações de racismo, o que também ocorreu com mais de uma pessoa negra dentro da empresa. 

“E nesse ponto cabe esclarecer que o fato de o reclamante ter publicado tal depoimento posteriormente em sua página pessoal em nada contraria a tese inicial. A ação versa sobre a obrigação imposta pela ré para que o reclamante desse depoimento pessoal sobre o racismo por ser negro, o que extrapolou o poder potestativo”, diz trecho do recurso. 

A defesa ainda defende que a testemunha narrou o exemplo de racismo — o fato do jornalista ter menos exposição de sua imagem na TV — “porque seu cabelo fugia do padrão exigido pela ré, conforme lhe disse a chefe Adriana. Tais episódios apenas exemplificam as situações que o reclamante e seus pares (negros) foram expostos durante a contratualidade na ré, e configurando o racismo estrutural.” 

Apesar de protocolado, o recurso ainda não tem data para ser apreciado pelo tribunal.

Vínculo de trabalho reconhecido

Embora Bottaro tenha negado a tese de racismo estrutural, o magistrado reconheceu o vínculo empregatício entre o profissional e a CNN Brasil. A decisão determinou que a emissora pague ao jornalista verbas rescisórias como indenização prevista no art. 479 da CLT (por conta da dispensa antecipada do contrato a termo), férias proporcionais e 1/3 constitucional, 13º salários proporcionais de 2019 e 2020, FGTS, vale-refeição e multa do artigo 477 da CLT. O valor exato a ser pago será apurado na parte final do processo.

A TV também foi condenada a anotar a carteira de trabalho do jornalista em oito dias a partir do trânsito em julgado, sob pena de a Secretaria da Vara fazê-lo.

Outros pedidos, a exemplo do adicional de transferência, equiparação salarial, acúmulo de função, horas extras, adicional noturno, indenização por Descanso Semanal Remunerado nos domingos e feriados trabalhados, e danos morais foram negados.

Além disso, a CNN Brasil também foi condenada a pagar os honorários advocatícios de 5% sobre o valor do crédito bruto, que foram apurados em liquidação de sentença. A decisão cabe recurso. 

A defesa do jornalista recorre da decisão do magistrado em relação à jornada de trabalho, classificação da sua função principal como produtor, equiparação salarial, adicional de transferência e fraude na obtenção do visto de trabalho. E ainda solicita a inclusão da Convenção Coletiva de Trabalho no processo e o aumento do valor dos honorários advocatícios de 5% para 15%.

“Racismo estrutural está em todos os espaços”

Codeputada da Bancada Feminista do PSOL em São Paulo, Carol Iara afirma que o “racismo estrutural está em todos os espaços no Brasil e as empresas de telecomunicações não fogem disso”. 

Iara lamenta o tratamento desigual em relação aos jornalistas brancos. “É lamentável que ainda hoje tenha ocorrido a reprodução desse racismo através do pagamento de salário diferenciado entre brancos e negros, injúria em redações e TVs, ofensas racistas sobre o cabelo crespo e a estética negra, ou ainda desvio de função para um jornalista fazer ‘segurança’ de outra jornalista branca”, afirma.

A parlamentar acrescenta que a luta contra o racismo, equidade e boas condições de trabalho não é nova. “É uma luta de muitos anos na teledramaturgia e telejornalismo a equidade racial e a representatividade e boas condições de trabalho”. E espera que com “as derrotas judiciais, essas empresas possam agir com justiça restaurativa e políticas afirmativas para promover o antirracismo dentro da empresa e em suas aparições públicas.”

Ação na justiça do trabalho contra CNN não é novidade 

Em outro processo movido em março de 2023, também no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo, o jornalista Renan de Souza, o qual foi escolhido uma das 100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo com menos de 40 anos em 2020, entrou com uma ação trabalhista contra a CNN Brasil, acusando a empresa de racismo estrutural e assédio moral.

Ele, que foi contratado para atuar como editor de texto na CNN Brasil, em São Paulo, alega que a emissora só começou a contratar jornalistas negros após a polêmica contratação de William Waack, demitido da TV Globo por racismo. Apesar disso, continuou a praticar discriminação, pagando salários menores aos jornalistas negros e os relegando a funções menos importantes.

O jornalista também afirma ter sido alvo de comentários racistas por parte de seu superior, Asdrúbal Figueiró, durante a cobertura da morte de George Floyd nos EUA. No fim de maio de 2020, o gerente de conteúdo passou a criticar o profissional na ilha de edição ao dizer que o material jornalístico estava “enviesado”, porque Souza era “negro”. 

Também sobre o caso, ele afirma que o seu chefe quis tirar o segundo off que dizia que a vítima era “um homem negro, de 46 anos”. “Eu contra-argumentei dizendo que estávamos reportando um caso de racismo. A matéria já não dizia mais que o policial estava com o joelho no pescoço do George Floyd e não poderíamos deixar de dizer que era um caso contra um homem negro”, disse o jornalista em depoimento em juízo. Ele afirma ainda que o seu chefe respondeu que todo mundo já estava vendo que ele era negro.

Após o incidente, Souza diz que passou a ser perseguido por Figueiró, que lhe teria atribuído metas inatingíveis e negado folgas e feriados “enquanto concedia folgas a outros empregados, agindo com distinção”.

A emissora também refutou a tese de racismo estrutural ao afirmar que não adota e nem permite práticas discriminatórias. E ainda destaca que seus programas contam com a participação de profissionais com representatividade racial e de gênero em diversas funções. Em relação às diferenças de salário, afirma que a discrepância entre Souza e outros jornalistas ocorre devido a fatores como experiência e qualificação, e não à raça. 

A CNN ainda ressaltou em processo a existência de um programa de diversidade chamado “Plural”, que abrange políticas de diversidade tanto internas quanto externas. A empresa afirma que o programa inclui palestras, discussões e atividades para conscientização dos empregados, além de reportagens e programas veiculados.

Na decisão envolvendo o jornalista, a juíza responsável pelo processo Gilia Costa Schmalb, Titular da 65ª Vara do Trabalho de São Paulo, declarou que ele não apresentou evidências suficientes para comprovar a existência de práticas discriminatórias na empresa, como, por exemplo, a diferença salarial entre funcionários negros e brancos com as mesmas qualificações e funções.

A magistrada entendeu que o reclamante não conseguiu comprovar a existência de um sistema de desigualdades baseado em preconceito racial na emissora, e que as situações relatadas por ele não foram suficientes para configurar racismo estrutural ou assédio moral.

A sentença em primeira instância julgou procedente em parte os pedidos do jornalista, a exemplo do direito do pagamento em dobro dos Descansos Semanais Remunerados trabalhados. Além disso, também acatou a integração das horas extras, férias, 13º salário e FGTS.

A defesa de Renan entrou com recurso alegando que o juiz desconsiderou as provas que demonstram o assédio moral e o racismo estrutural praticado pela empresa. O pedido será apreciado no início de setembro. 

Histórico da companhia de casos de racismo

Em abril de 2021, a Alma Preta trouxe à tona outro caso de racismo na CNN Brasil. A jornalista Basília Rodrigues foi vítima de perseguição dentro da emissora, motivada por discriminação racial.

Uma funcionária chegou a dizer para outra colaboradora responsável pela edição das entradas ao vivo, que “se ela fosse loira e de olho azul, você não estaria enchendo o saco dela.” 

As fontes ouvidas na época relataram uma espécie de perseguição à jornalista. A edição do jornal Novo Dia chegou a reclamar que a jornalista estava “descabelada”. Relatos apontam que Basília chegou a mudar o cabelo, que é crespo, de um lado para o outro, o que faz com que ele fique mais volumoso.

“Um dia reclamaram da parede branca, depois reclamaram que ela estava à frente de uma prateleira. A gente vê pessoas em um caos, com a parede repleta de coisas, e entra sem qualquer tipo de problema”, declarou um funcionário.

Alguns trabalhadores, incomodados com a situação na época, chegaram a afirmar que o tratamento negativo e diferenciado dispensado à comentarista era tão evidente que “só não enxergava quem não queria”.

  • Jean Albuquerque

    Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

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