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Cobertura da Folha de S.Paulo sobre sistema carcerário reforça racismo segundo pesquisadores

23 de maio de 2018

Estudo também apresenta em detalhes os padrões de manipulação do veículo de comunicação, que privilegiou as fontes ligadas ao Estado, em detrimento de pesquisadores e dos movimentos sociais

Texto / Pedro Borges
Imagem / Agência Brasil

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A pesquisa “Narrativas brancas, mortes negras” é divulgada ao público nesta quarta-feira (23), das 19h às 22h, na Casa do Baixo Augusta. Organizado pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC-USP), Ponte Jornalismo e pelo Alma Preta, o material analisou a cobertura da Folha de S.Paulo sobre as rebeliões ocorridas no sistema carcerário, que ocorreram entre 1º e 14 de Janeiro, em 2017.

Nathalia Oliveira, coordenadora da INNPD, afirma que o material apresenta as estratégias de manipulação da grande mídia acerca de debates como racismo, guerra às drogas e encarceramento.

“O material aponta para o apagamento do debate racial, para a inversão dos motivos para as rebeliões nos presídios brasileiros, sem destaque para a privatização, guerra às drogas, a superlotação e com a justificativa no âmbito da falta de humanidade dos sujeitos presos. O estudo se torna uma importante ferramenta de luta contra as desigualdades no Brasil.”
Durante um ano, os pesquisadores utilizaram o método de análise de conteúdo de Laurence Bardwin, para entender a posição da Folha de S.Paulo acerca do assunto. Foram analisados dois grupos: o primeiro contabilizou as palavras mais e menos utilizadas, e o segundo, as fontes mais e menos recordadas pelos repórteres do jornal.

As fontes foram divididas em quatro grupos: as fontes oficiais representam o Estado; as oficiosas, os funcionários da máquina pública que não podem se posicionar em nome do Estado; as não-oficiais, que são as representantes da sociedade civil; e as disruptivas, que consistem em figuras pertencentes aos movimentos sociais.

Os números apontam para a presença significativa das fontes oficiais, principalmente quando comparadas às disruptivas, aquelas que apresentam posicionamento diferente do hegemônico.

Para analisar os dados, o estudo do pesquisador Perseu Abramo sobre os padrões de manipulação da grande mídia foi utilizado. Para ele, a mídia tenta impor a visão hegemônica sobre o fato por meio da repetição das fontes oficiais.

Dennis de Oliveira, orientador da pesquisa e chefe do departamento de jornalismo da ECA-USP, destaca que a desproporcional representação do Estado na cobertura da mídia acaba com alguns dos mitos sobre o jornalismo.

“Todos esses dados apresentados, por esse estudo realizado, respondem aquela ideia de que o jornalismo hegemônico é neutro, imparcial e objetivo, e aponta que pelo contrário, tem direção ideológica e tem perspectiva valorativa sobre os assuntos, e temáticas que envolvem a população marginalizada. Ele tende a neutralizar os direitos dessa população”.

No campo das ações foi possível ver quais as principais justificativas utilizadas pela Folha de S.Paulo para o problema em questão. Destaque foi dado para palavras que descrevem a barbárie dos sujeitos envolvidos na rebelião, como decapitado e carbonizado, em detrimento de outras. Esses sãos os casos de privatização e superlotação, palavras que explicam parte dos problemas do sistema carcerário de acordo com os movimentos sociais que debatem o tema.

Os analistas aqui observaram outro padrão de manipulação, de acordo com o estudo de Perseu Abramo, o da inversão. Para ele, quando dialoga com a perspectiva da mídia hegemônica, ela inverte as consequências e as causas.

Segundo a cobertura da Folha de S.Paulo, as rebeliões parecem ter sido motivadas pela desumanidade daqueles sujeitos ao invés dos problemas do sistema carcerário em si.

Rosane Borges, pós-doutora em comunicação e integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (COJIRA), acredita que a pesquisa apresenta como o jornalismo e a sociedade naturalizam a barbárie, quando atinge o outro, nesse caso, o sujeito negro. Ela afirma que a sociedade pactua com práticas punitivas não civilizatórias e traça a linha entre os que podem ser tratados como humanos e os não.

“A gente olha para o nosso passado e diz: ‘nossa, como a gente escravizou por tanto tempo?’. A escravidão é uma vergonha, embora a sociedade brasileira não se envergonhe. Eu alimento muito a ideia de que em algum momento da história a gente vai olhar para traz e dizer: ‘nossa, como nós encarcerávamos e em que condições’, ou seja, uma vergonha do ponto de vista da civilização”, afirma.

Outro fator que chamou atenção dos pesquisadores foi a citação, por uma única vez durante a cobertura, da palavra negro. Mesmo diante de um sistema carcerário seletivo e de estados onde há uma concentração significativa de negros presos, o marcador em questão foi omitido.

Atualmente, no Brasil, mais de 60% dos presos são negros, dados que variam de acordo com as regiões do país. Nos estados onde as mortes ocorreram essa marca é mais expressiva. Em Manaus por exemplo, 71,7% da população presa é negra; em Roraima, 82,2%; e no Rio Grande do Norte, 69,5%. Os dados são do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen 2014).

Para analisar essa constatação, foi usado o novo padrão de manipulação descrito por Perseu Abramo: o ocultamento. Para ele, quando é de interesse dos grandes veículos de mídia, a mídia deixa de citar um tema em questão.

“Não falar sobre o encarceramento em massa, políticas antiproibicionistas sobre drogas, extermínio da população negra, pobre, periférica, nessas coberturas, que envolve a crise prisional, é um modo de mascarar o que acontece porque esses temas são parte do problema e não dá para deixá-los de fora”, afirma Junião Junior, ilustrador da Ponte Jornalismo e um dos participantes da pesquisa.

Para ele, o material mostra como é preciso alterar a cobertura jornalística praticada no Brasil para se avançar sobre o problema do racismo, genocídio negro e encarceramento em massa no país.

“Essa pesquisa evidencia a necessidade de uma discussão para a formação de uma política de segurança pública sustentável, que proteja realmente o cidadão, principalmente o negro, pobre, periférico, que historicamente é a maior vítima desse processo, e não o contrário”, conta.

O agravante vem com a realidade brasileira, cerceada pelo mito da democracia racial, como apontam Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes, pesquisadores negros utilizados como base. Não trazer o debate racial fortaleceria o mito da democracia racial, um dos principais problemas para a superação do racismo no país.

A ex-ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e professora da graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG), Nilma Lino Gomes, acredita que o mito da democracia racial é perigoso, porque na medida em que nega a existência do racismo, o fortalece. “Senão são o racismo e o olhar mais violento por parte do Estado sobre a população negra, o que justificaria a maior presença de negros no sistema carcerário? A outra resposta possível é a maior propensão ao crime do sujeito negro, uma constatação racista.”

Dennis de Oliveira também crítica a cobertura da mídia hegemônica sobre as relações raciais no país, que também seria enviesada, de acordo com o pesquisador.

“O estudo demonstra também que a mídia hegemônica e o jornalismo hegemônico não abordam as relações raciais nessa perspectiva estrutural. Problemas como o da violência, massacre e da rebelião dos presídios não são cobertos como fenômenos que fazem parte de um processo de extermínio da população negra”, afirma.

A Folha de S.Paulo foi o veículo escolhido por dois motivos. O primeiro é a relevância do jornal, que em 2016 publicou uma matéria na qual aponta ser o jornal mais lido entre os deputados federais, pelo nono ano consecutivo.

A segunda razão é o estudo feito pelo próprio CELACC-USP sobre a cobertura da corrida presidencial de 2010, que aponta para a existência de um trio formador de opinião: Globo, Veja e Folha. Segundo o material, entender a posição da Folha de S. Paulo possibilitaria a compreensão do pensamento hegemônico brasileiro acerca do tema.

A equipe de reportagem do Alma Preta entrou em contato com a Folha de S. Paulo sobre o estudo e até o fechamento desta reportagem, não recebeu resposta alguma.

Para ter acesso ao material completo, acesse.

Saiba mais

A pesquisa “Narrativas brancas, mortes negras” será divulgada em 23 de maio (quarta-feira), das 19h às 22h, na Casa do Baixo Augusta (rua Rego Freitas, 533, São Paulo).

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