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Coletivo de mulheres negras pede revogação do edital do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura

Uma carta elaborada pelo grupo, que aponta irregularidades no processo seletivo e acusa a metodologia do prêmio de promover “racismo estrutural e linguístico”, foi publicada na internet e assinada por mais de 260 pessoas
Imagem mostra autoridades do governo federal, com destaque para a ministra da Cultura, Margareth Menezes, e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, celebrando o Prêmio Carolina Maria de Jesus.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

5 de janeiro de 2024

Um coletivo formado por seis escritoras negras pede a revogação do edital do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023, organizado pelo Ministério da Cultura (Minc). Uma carta elaborada pelo grupo, que aponta irregularidades no processo seletivo e acusa a metodologia do prêmio de promover “racismo estrutural e linguístico”, foi publicada na internet e assinada por mais de 260 pessoas.

O resultado final da seleção foi publicado pelo Minc no dia 7 de dezembro e premiou 61 escritoras em diferentes categorias de gêneros literários com R$ 50 mil cada. A primeira edição do prêmio teve recursos totais de R$ 3.050.000,00 (três milhões e cinquenta mil reais). Foram analisadas 1.922 obras literárias.

Maioria da população do país, as mulheres negras foram 12 das 61 escritoras selecionadas — cerca de 19,6% no prêmio que homenageia Carolina Maria de Jesus, autora do célebre “Quarto de Despejo”. O prêmio também selecionou seis pessoas com deficiência (9,8%), três indígenas (4,9%), três quilombolas (4,9%) e 37 escritoras em ampla concorrência (60,6%).

A carta divulgada pelo coletivo “Nós Carolinas do Brasil” questiona a aplicação do sistema de cotas na seleção. Isso porque, segundo as integrantes, o edital restringiu a participação de negras, quilombolas, indígenas, ciganas e PCD às vagas de cotas. Ainda de acordo com o movimento, as vagas cotistas não preenchidas por insuficiência de inscrições foram remanejadas para a ampla concorrência, na categoria chamada de “não se aplica”.  

“Tal aplicação desastrosa [do sistema de cotas] resultou na destinação de mais da metade do prêmio, 60,66% (37 vagas), para escritoras que, no ato da inscrição, não se identificaram nem como negras, quilombolas, ciganas, indígenas ou PCD”. 

Chama atenção também a desigualdade regional do prêmio. A região Norte, que concentra a maioria da população negra do país, é uma das menos representadas na seleção: apenas 6,56%. O Norte só fica atrás do Centro-Oeste, região de 4,92% das selecionadas. Em contrapartida, o Sudeste (52,46%) e o Sul (16,39%) concentram, juntos, quase 70% do recurso. A região Nordeste foi a segunda entre as escolhidas, com 19,67%.

‘A própria Carolina Maria de Jesus sequer seria habilitada no concurso’

A premiação estabeleceu como critério de desempate o “domínio técnico no uso dos recursos linguísticos”. Como resultado, nenhuma escritora quilombola ou indígena atingiu a nota máxima do edital. Para o movimento, o critério desconsidera “a imensa pluralidade linguística utilizada pela população brasileira”.

“O coletivo recebeu depoimentos de pessoas que não foram selecionadas sob o argumento de que a linguagem não se enquadrava no que foi solicitado pelo edital, inclusive uma escritora quilombola. Pensando nisso, a própria Carolina Maria de Jesus, que tinha uma forma ímpar de escrever e se comunicar e dá nome ao prêmio, sequer seria habilitada no concurso”, protesta Viviane Gonçalves, escritora classificada e uma das representantes do coletivo.

Movimento aponta irregularidades no edital do prêmio

Também foram apontadas irregularidades no processo seletivo. Segundo o argumento, foi criada uma vaga extra, preenchida por uma candidata que, inicialmente, se inscreveu como “negra” e, depois, entrou com recurso para mudar a categoria para “não se aplica”. Para o movimento, a postura correta da comissão de seleção deveria ser a de punir a candidata por burlar a autodeclaração em vez de criar uma vaga extra.

“Isso é gravíssimo! Uma mulher branca se autodeclarou erroneamente como ‘negra’. Todas nós assinamos o documento de autodeclaração racial, aceitando punições caso estivéssemos mentindo. Como é possível, então, que uma mulher branca seja premiada como ‘negra’ e, ao alterar a raça, ao invés de ser punida, é gratificada com uma vaga extra?”, questiona Laila Garroni, também participante do movimento.

Laila também diz que uma escritora negra, com média inicial de 28,5 pontos, teve a pontuação aumentada para 30 (a pontuação máxima), sem que apresentasse recurso e sem justificativa para o reajuste, e passou a ocupar a vaga deixada pela participante que trocou para a categoria de ampla concorrência. “Esses dois motivos, por si só, são suficientes para revogar o edital”, avalia.

“Criamos esse movimento porque entendemos que o edital é excludente, tem falhas, prioriza grupos como pessoas brancas e, pior, leva o nome de Carolina Maria de Jesus, mas não contempla mulheres negras, indígenas, quilombolas e PCD. Nosso objetivo não é desmerecer o trabalho das escritoras selecionadas, mas que o conjunto das participantes sejam respeitadas”, explica Viviane.

O que diz o Ministério da Cultura?

A Alma Preta Jornalismo solicitou um posicionamento do Ministério da Cultura acerca das questões apontadas pelo coletivo “Nós Carolinas do Brasil”. Em nota, o Minc afirma que na categoria “não se aplica”, que corresponde à ampla concorrência, “uma das escritoras premiadas é uma mulher transgênero e outras cinco se intitulam pardas, ou seja, negras segundo o critério de classificação étnico-racial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”.

Segundo a pasta liderada por Margareth Menezes, a Comissão de Seleção do concurso foi formada por 74 avaliadoras externas, grupo que incluiu professoras, escritoras, servidoras públicas e gestoras de todo o país.

O ministério diz que, “como não houve inscrições de ciganas, as três vagas dessa categoria foram destinadas à ampla concorrência, conforme previsto no edital”. “Além disso, as categorias indígenas e quilombolas registram quatro e três obras habilitadas, respectivamente. Assim, outras três vagas foram destinadas à ampla concorrência”, detalha o comunicado.

A pasta também se manifestou sobre a divulgação do resultado e a candidata na qual o coletivo apontou irregularidade na seleção.

“Cabe ressaltar que, quando da divulgação do resultado preliminar da seleção, foi constatada que uma candidata que optou pela ampla concorrência – e obteve pontuação máxima (30 pontos) – foi incluída na categoria ‘mulheres negras’. Após apresentação de recurso solicitando a correção de sua categoria, e sendo o mesmo deferido, chegou-se ao número de 37 candidatas na categoria”, diz o Minc.

“Com isso, e a fim de evitar um sorteio para excluir uma das selecionadas com pontuação máxima, a Comissão de Seleção solicitou dotação orçamentária para, em vez de excluir, incluir mais uma candidata na lista de premiadas. Assim, o total passou de 60 para 61 obras selecionadas”, complementa.

De acordo com o ministério, as candidatas também poderiam solicitar a reconsideração de suas notas.

“A Comissão de Seleção achou por bem enviar o “espelho das notas” – detalhamento da pontuação dada aos critérios por cada avaliadora -, às solicitantes. Contudo, ressalta-se que essa não era parte fundante da propositura de recurso. Já entre os pedidos de revisão que apresentavam duas notas discrepantes (entre as duas avaliadoras), a obra foi reavaliada por uma terceira integrante da Comissão”, pontua.

“Ademais, todas as etapas da premiação – desde a habilitação até a seleção das obras – seguiram os ritos do processo administrativo público, com tomadas de decisão orientadas pela Consultoria Jurídica do Ministério da Cultura. Também foi priorizada, em todos os estágios do processo, a transparência, com divulgação das ações relativas ao edital na imprensa nacional e no Portal do MinC na internet. Foi, ainda, disponibilizado atendimento por e-mail e telefone às candidatas, para orientação e esclarecimento de dúvidas”, conclui a nota do Minc.

Leia a íntegra do carta do coletivo ‘Nós Carolinas do Brasil’

“Nós, Mulheres Negras e Escreviventes do Brasil e seus apoiadores, viemos por meio desta carta manifestar nosso profundo descontentamento com os critérios e processos pouco transparentes aplicados na seleção e o consequente resultado da primeira edição do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023 . O edital, promovido pelo Ministério da Cultura, apresentou falhas gravíssimas e deve ser revogado, revisto e relançado. Entre os erros, se destaca o uso de metodologias de avaliação excludentes e promotoras do racismo estrutural e linguístico, aspectos fortemente desafiados pelo trabalho da autora que dá nome à iniciativa.

Contrariando o legado deixado por Carolina Maria de Jesus, o prêmio estabeleceu como critério de maior peso, em caso de empate, o ‘DOMÍNIO TÉCNICO E INVENTIVIDADE NO USO DOS RECURSOS LINGUÍSTICOS’. Desconsiderando assim a imensa pluralidade linguística utilizados pela população brasileira. A medida força uma adaptação que tenta restringir nossa rica diversidade a um único modelo de escrita considerado como ‘correto’, modelo decorrente da norma linguística imposta pelos colonizadores desta nação. Sendo assim, a postura adotada torna o edital, uma vez aparentemente ‘inclusivo’, metodologicamente fundamentado na exclusão. Uma prova concreta disso é que absolutamente nenhuma escritora quilombola ou indígena atingiu a nota máxima neste edital.

Além da racista e supressiva proposta de alienação de traços culturais linguísticos, o mesmo edital – que prorrogou por diversas vezes o seu resultado – ofereceu apenas três dias para que as escritoras discordantes de suas avaliações apresentassem recurso. O documento, no entanto, deveria ser redigido pelas autoras sem conhecimento das notas recebidas em cada critério. O detalhamento das médias obtidas só foi disponibilizado após a divulgação das vencedoras. Qual chance de argumentação temos se nos é negligenciado saber como estamos sendo julgadas? Nesse mesmo aspecto, nos chama a atenção o caso do surgimento repentino de uma vaga de número 61 (o edital previa somente a premiação de 60 obras). A ocupante do lugar extra teve nota máxima desde a primeira avaliação, e mesmo assim entrou com recurso mudando somente a categoria em que se encontrava, de ‘negra’ ela passou a ser ‘não se aplica’. A ocorrência nos sugere que temos mais chances quando ‘deixamos de ser’ negras. Ou que, sendo uma mulher ‘não se aplica’, temos o poder de criar vagas.

Queremos uma investigação séria sobre como o sistema de cotas foi aplicado nesta premiação. Ações afirmativas são cruciais para equidade de oportunidades em um país tão desigual quanto o Brasil. Elas devem ser aplicadas visando garantir a inclusão de um percentual MÍNIMO de grupos menos privilegiados. No entanto, suspeitamos que a metodologia escolhida neste edital fere gravemente tal preceito ao restringir a participação de cotistas (negras, quilombolas, indígenas, ciganas e PCD) SOMENTE às vagas do quadro de cotas. Tais escritoras foram ceifadas da chance de participação em ampla concorrência, na categoria denominada ‘não se aplica’. A mensagem transmitida é a de que essas mulheres só têm capacidade de concorrer apenas entre si, mesmo as que obtiveram nota máxima na avaliação. Tal aplicação desastrosa resultou na destinação de mais da metade do prêmio, 60,66% (37 vagas), para escritoras que no ato da inscrição não se identificaram nem como negras, quilombolas, ciganas, indígenas ou PCD. Importante também apontar que essa porcentagem final foi obtida também pelo remanejamento de vagas cotistas não preenchidas (insuficiência de inscrições) para a categoria ‘não se aplica’.

Ao identificarmos tais falhas, é inevitável não conjecturar que nem mesmo a célebre Carolina Maria de Jesus, símbolo maior desta ação, teria chance de ser selecionada em seu próprio prêmio. Uma infeliz projeção que mostra que o nosso país ainda engatinha no que diz respeito a reconhecer talentos para além do padrão colonial. No entanto, é imperativo afirmar que não nos colocamos contra a existência do edital. Bem pelo contrário. Tal iniciativa é de extrema urgência no atual contexto da luta anti colonial que vivemos. Um período que torna cada vez mais populares pensadoras como Lélia Gonzaléz, que repercutiu a existência do ‘pretuguês’, e Nego Bispo, que tanto propagou a importância do respeito à diversidade linguística dos povos não-colonizados.

Ainda acreditamos no potencial deste edital de proporcionar uma importante demarcação nesta luta que é primordialmente anti racista. Porém, precisamos reconhecer que o que assistimos foi a desastrosa execução de uma metodologia de análise que reforçou a legitimidade colonial. Desta forma pedimos a revogação do resultado da primeira edição do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura, bem como a investigação de seus processos e o relançamento do mesmo dentro dos moldes que reflitam e apoiem de fato o legado deixado por Carolina Maria de Jesus . Confiamos no Ministério da Cultura na reestruturação da nova edição da competição celebratória das tantas outras Carolinas desse país.

Atenciosamente,

Carolinas e apoiadores.”

  • Fernando Assunção

    Atua como repórter no Alma Preta Jornalismo e escreve sobre meio ambiente, cultura, violações a direitos humanos e comunidades tradicionais. Já atua em redações jornalísticas há mais de três anos e integrou a comunicação de festivais como Psica, Exú e Afromap.

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