Já dizia Benito di Paula, na canção Retalhos de Cetim: “Mas chegou o carnaval e ela não desfilou”. No caso, não é ela, é ele, o intérprete Alessandro Jorge Theófilo de Souza, integrante da Escola Camisa Verde e Branco (SP), que, assim como milhares de pessoas, não desfilou no Carnaval deste ano, adiado em diversos estados brasileiros em razão da pandemia da Covid-19.
Tiganá, como Alessandro é conhecido popularmente, canta desde 2002 no carnaval e a ausência dos festejos em 2021 é um fato atípico, que o cantor ainda está tentando se acostumar tanto psicologicamente quanto financeiramente. “Já cantei na Mocidade Alegre, Leão de Nova Iguaçu, Unidos da Ponte, Alegria da Zona Sul e em várias outras. É estranho não ter carnaval”, explica.
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Apaixonado pela tradicional folia, Tiganá tem investido na venda de marmitas para complementar a renda mensal e espera ansiosamente pela vacina e retomada dos ensaios no barracão. Para ele, não ter a renda oriunda da festa é um prejuízo financeiro. “Financeiramente, me incluo nos prejudicados com o adiamento do carnaval, afinal, tudo aumenta – contas, compras – mas a renda do trabalhador não. Com as quadras fechadas e sem movimento de pessoas, quem depende disso não recebe”, desabafa.
Tiganá acredita que o carnaval sempre contribuiu para os trabalhadores negros poderem se manter. Ele diz que o adiamento prejudica, além de músicos e intérpretes, outros serviços essenciais para a festa anual acontecer. “O carnaval sempre abriu portas, gera muito emprego formal e informal. Temos os ambulantes que vendem seus alimentos, os que vendem capas de chuva e etc”, exemplifica.
A festa, originada da população negra, contrata diversos profissionais durante o período de preparação para o desfile. Segundo o sociólogo Tadeu Matheus, ex-presidente da Camisa Verde e Branco, a cadeia produtiva do carnaval precisa – por agremiação – de 200 a 300 trabalhadores, em média.
“Funcionários de barracão, costureiros do ateliê, equipe de quadra, logística, produção. São muitas pessoas que trabalham o ano inteiro para o carnaval acontecer. Com certeza, o adiamento ou possível cancelamento do carnaval prejudica muita gente, pois essas pessoas se programam e fazem planos durante o ano todo para poder trabalhar no período”, comenta o também mestrando em Mudança Social e Participação Política e autor do livro “Casa Verde: Uma Pequena África Paulistana”.
Tadeu Kaçula, como é conhecido na escola de samba, afirma também que existem pessoas que vivem somente do carnaval, pois o ofício demanda muito tempo, fato que impede que o trabalhador tenha outra ocupação. “A nossa vida é fazer a gestão do carnaval, vivemos disso. Presidentes, carnavalescos, responsáveis pelo barracão. É necessário ter gente trabalhando 24h para poder pensar em patrocinadores, fornecedores, organizar reuniões, produzir o que será exposto na avenida. Esses profissionais dependem do carnaval e também dos recursos que vêm da prefeitura e patrocinadores para poder trabalhar exclusivamente com o carnaval”, explica.
Setor de serviços
Dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo (CNC) estimam que, baseado em 2020, o adiamento da folia em fevereiro deixa de movimentar cerca de R$ 8 bilhões na economia, bem como, em média, 25 mil empregos temporários e informais.
Para a Mestra em Economia Política, Regiane Wochler, atualmente existe uma situação calamitosa para os trabalhadores do setor de serviços, cultura e entretenimento. O setor é sazonalmente beneficiado pelo carnaval, fonte de geração de emprego e renda direta e indireta para a cidade de São Paulo. Juntamente com o fim do auxílio emergencial, em dezembro de 2020, essa situação se agravou.
“Muitos dos profissionais negros, que atuam no carnaval, vivem de atividades ligadas à cultura, atividades estas que foram fortemente impactadas pelas restrições impostas para contenção da pandemia e fez com que a única fonte de renda desses trabalhadores nos últimos meses fosse o auxílio emergencial, que foi cancelado”, explica a também pesquisadora das questões ligadas às desigualdades socioeconômicas com recorte de raça e gênero.
Além dos títulos acadêmicos, Regiane é passista na escola Colorado do Brás e pondera que a tradicional folia em São Paulo é uma importante fonte de receitas para o município e setores, principalmente o hoteleiro, que esgota sua ocupação nessa época. “Para se ter uma ideia, segundo dados da CNC, no carnaval de 2020 foram criados 25,4 mil vagas de empregos temporários entre janeiro e fevereiro com salário médio de R$ 1.909,73. Segundo dados da Fecomércio SP, a renda gerada pelo carnaval de São Paulo em 2020 superou R$ 900 milhões. Cerca de 12 mil pessoas trabalharam como ambulantes na venda de bebidas nas ruas”, contextualiza.
De acordo com a economista, a suspensão do carnaval deixa esses profissionais sem uma fonte de renda importante num momento em que a economia do país ainda está bastante afetada pela pandemia ainda em curso e, portanto, não é capaz de gerar empregos em outras áreas. “A iniciativa privada e sociedade civil têm atuado para minimizar esses efeitos. Essa semana a Ambev anunciou que pagará auxílio aos profissionais informais que atuariam como ambulantes nesse carnaval, além de doar as caixas térmicas que seriam utilizados no carnaval ao SUS para transporte de vacinas. Para as agremiações, em novembro do ano passado a Prefeitura de São Paulo anunciou que manteria os repasses para que as entidades pudessem dar conta das despesas fixas nesse período”, complementa.
A Liga das Escolas de Samba de São Paulo propõe que a festa seja realizada em julho, caso a vacinação contra a Covid-19 esteja avançada. Até o momento, cerca de 4 milhões de brasileiros já foram imunizados, segundo informações das secretarias estaduais de saúde.