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Como o racismo estrutural dificulta o acesso dos quilombolas à saúde?

Comunidades quilombolas precisaram se unir em busca de vacinação prioritária e efetiva contra a Covid-19;  um em cada três quilombos ainda apresenta problemas na imunização

A foto mostra uma mulher quilombola sendo vacinada.

Foto: Imagem: Igor Santos

30 de dezembro de 2021

A luta dos quilombolas por direitos como saúde, alimentação, educação e território é atravessada pelo racismo estrutural, sobretudo frente aos desafios provocados pela pandemia. Durante a crise sanitária da Covid-19, as comunidades quilombolas precisaram se unir em busca de vacinação prioritária e efetiva.

As comunidades tradicionais foram reconhecidas como grupo prioritário de vacinação contra o novo coronavírus pelo Supremo Tribunal Federal (STF) somente em fevereiro de 2021. A conquista foi resultado da pressão exercida pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e por partidos de oposição ao governo federal por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742.

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Ainda assim, a vacinação dos quilombolas continua a enfrentar desafios. Um a cada três quilombos apresentam problemas na imunização de sua população, segundo dados coletados pela 3° edição do Vacinômetro Quilombola, monitoramento realizado pela Conaq em parceria com a Terra de Direitos e a Ecam.

De acordo com o levantamento, entre os 450.318 quilombolas identificados dos 1.214 quilombos de 24 estados do país consultados, 49,5% das pessoas tomaram apenas uma dose da vacina e 2% não tomaram o imunizante. Além disso, 449 quilombos apresentaram algum tipo de problema na vacinação, sendo que 171 desses territórios tiveram casos de recusa individual da imunização, 41 doses insuficientes registradas e 28 dos territórios não tiveram aceitação como grupo prioritário. Das comunidades consultadas, 75% não são tituladas.

O racismo somado a problemas gerados pela falta e subnotificação dos dados, desinformação, ausência de secretarias especiais focadas na saúde quilombola e a questão logística da distância desses territórios dos centros das cidades são apontados como motivadores desses dados.

Segundo Kátia Penha, coordenadora da Conaq no Espírito Santo e membro da coordenação da Rede Quilombola de Monitoramento da Vacina, o levantamento de dados proposto pelas próprias lideranças das comunidades tradicionais parte de uma invisibilidade de informações oficiais.

“Nós não éramos contados. Nós tivemos que enfrentar o racismo para sermos públicos prioritários. Eu acho que não é questão de prioridade, é questão de saúde pública, de direito constitucional, porque o nosso povo estava e continua morrendo. Nós precisávamos que essa pandemia não adentrasse e não fizesse de nós povos extintos”, declara.

Segundo boletim epidemiológico publicado em dezembro pela Conaq em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), foram 310 óbitos registrados e 5.660 casos confirmados de Covid-19 entre os quilombolas.

Kátia pontua que as lideranças enfrentaram municípios que se recusavam a vacinar nos quilombos, sendo que muitas comunidades não têm postos de saúde. “A gente teve que entrar com uma segunda ação contra o município, explicar e reexplicar o porquê as comunidades precisavam ser vacinadas. Também teve vacina desviada. Isso é racismo estrutural. Um racismo impregnado na gestão pública, porque você luta pra conseguir e luta para adquirir”, destaca.

De acordo com Celio Leocádio, presidente da Associação Quilombola de Volta Miúda (APRVM), do município de Caravelas, no Extremo Sul da Bahia, as comunidades quilombolas da região precisaram se unir para exigir a prioridade de vacinação.

“Nós fizemos uma reunião virtual com as lideranças das comunidades e chamamos uma advogada que criou um documento e encaminhamos para o Ministério Público Federal (MPF) e para a Defensoria Pública da União (DPU). O MPF notificou as prefeituras e, com 15 dias, os municípios aderiram ao pedido. Um município criou resistência e não abriu a vacinação da maneira que deveria”, revela.

Desinformação sobre a vacina atingiu os quilombolas

Um desafio ainda enfrentado na vacinação dos quilombolas é a recusa individual de alguns deles se vacinarem. Na 1° edição do Vacinômetro Quilombola foi identificado que ao menos 12% dos quilombos consultados apresentaram casos de recusa à vacinação. Já a 3° edição do levantamento identificou esse problema em quase 15% dos quilombos, com ao menos 209 quilombolas acima dos 60 anos que ainda não foram vacinados.

Somadas as três edições do monitoramento, 872 quilombolas acima dos 60 anos não receberam a vacina ou receberam tardiamente. “Nós enfrentamos duas questões. Primeiro as informações que chegam desencontradas da vacina. Tem várias comunidades em que telefone não pega, mas as informações chegam pelo rádio. Tem também a questão da religião. Teve pessoas que não se vacinaram e morreram por ouvir o pastor e o líder religioso. Teve também a falta de informação do município”, explica Kátia.

A coordenadora da Conaq/ES também pontua que as falas do presidente Jair Bolsonaro sobre a eficácia e a segurança da vacina desinformam a parte da população quilombola que, por conta disso, decide não se imunizar.

Segundo Benedito Alves da Silva, liderança do Quilombo de Ivaporunduva, em Eldorado, no Vale do Ribeira, interior de São Paulo, a vacinação, que já está avançada em sua comunidade, foi o que efetivamente protegeu os quilombolas da região da contaminação e dos óbitos. Ele foi o segundo quilombola do estado de São Paulo a receber a primeira dose do imunizante.

“Quando surgiu o coronavírus, não demorou muito para chegar por aqui. Não só nesse quilombo, mas em todos os outros aqui da região. Por aqui, nós tivemos 18 pessoas que foram infectadas, mas nenhuma precisou de hospitalização. A partir do momento que o pessoal foi vacinad, não teve mais a presença dessa doença na comunidade. Se não fosse a vacina, poderia ter mais gente por aqui infectada”, pontua.

As iniciativas das próprias comunidades quilombolas foram as responsáveis por evitar mais mortes e óbitos diante da falta de políticas públicas que garantissem esse direito.

“Os próprios quilombolas fizeram a maioria dos protocolos de proteção, como barreiras sanitárias e campanhas para máscara e álcool em gel. A gente teve, durante esses dois anos, muita ajuda e colaboração de diversos segmentos que contribuíram com as comunidades quilombolas”, destaca Kátia Penha.

Racismo estrutural é a raiz do problema

A dificuldade para que os quilombolas tenham seus direitos plenamente garantidos é apontada como, principalmente, um reflexo do racismo estrutural vivenciado no Brasil e reforçado pelas instituições públicas. Segundo levantamento produzido pela Conaq e pela Terra de Direitos, 55 discursos racistas foram proferidos por autoridades públicas entre 2019 e 2020, o que incita a retirada de direitos da população negra e que reforça estereótipos racistas.

“O racismo estrutural está em todos os setores da vida dos negros, dos quilombolas, principalmente, que vivem em regiões afastadas das cidades. Tanto na área da saúde, como na área da educação, como na área da cultura, do trabalho e da renda. Em todos os aspectos da vida, o racismo estrutural se faz presente”, destaca Fátima Diniz, uma das coordenadoras do Movimento das Mulheres de Alcântara (MOMTRA), região do Maranhão em que, segundo ela, já está com a população quilombola quase completamente vacinada.

“Enquanto houver racismo no Brasil, a gente não vai avançar em nada, porque tudo para o povo preto, pobre ou periférico é muito dificultoso. A cor da pele é muito mais do que a vida humana no Brasil. Isso é doloroso e assustador. Enquanto a gente não superar esse racismo impregnado na cabeça desses brancos que são os gestores, a gente não vai avançar nas políticas e, principalmente, na política que é essencial para a gente”, finaliza Kátia Penha, da Conaq.

Leia também: Racismo estrutural: O que significa e como combatê-lo?

Este conteúdo é resultado de uma série de reportagens sobre Racismo Estrutural com o apoio do Governo do Estado da Bahia.

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