Memória histórica brasileira é negligente com personalidades negras que combateram o racismo e ajudaram a construir o país
Texto: Juca Guimarães I Edição: Nataly Simões I Ilustração: Alma Preta
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A história do território brasileiro é contada não apenas nos livros e nas universidades como também nos espaços urbanos e públicos. As homenagens realizadas ao longo dos anos evidenciam o apagamento da presença negra, a exemplo da cidade de São Paulo, que reúne uma série de monumentos dedicados à bandeirantes e opressores da população negra e indígena.
Fundado em 2015, o Núcleo de Pesquisa e Educação Patrimonial em Territórios Negros de São Paulo (Angana) é um coletivo de museólogas, geografas, historiadores e pesquisadores que atua na desconstrução do apagamento das participações políticas da população negra nos mais diversos ramos, fruto de um processo eugenista e racista.
“Batalhamos pelo direito à memória, onde os referenciais e experiências de matrizes centro-africanas sejam reconhecidos, valorizados e passem a compor o mosaico que forma cada um (a) de nós como sujeitos históricos e políticos”, afirma o coletivo, em nota enviada ao Alma Preta.
O Angana atua no fomento de processos de patrimonialização e musealização da cultura negra, destacando a presença da mulher negra com protagonismo, por meio de ações nas áreas de museologia, história, patrimônio, cartografia, toponímia e direitos humanos.
A participação da história negra na memória pública do país é uma reivindicação do movimento negro com destaque para o Centro Cívico Palmares e a Frente Negra Brasileira, entre outras instituições e coletivos de defesa da memória negra, afirma o Angana. A tentativa de esconder os heróis afrodescendentes e a luta pela liberdade e contra o racismo não diminui a força histórica do passado material e imaterial dos negros.
O escritor e ator Salloma Salomão relembra que uma figura histórica como o marinheiro João Cândido, líder do levante de 1910 contra o racismo e os espancamentos na Marinha, não tem uma estátua à altura no Brasil. Por outro lado, sua trajetória ficou marcada na luta negra e é celebrada, por exemplo, na música “Mestre Salas dos Mares”. “É uma das melhores chaves de interpretação sobre monumentos e memórias negras no Brasil. Eu a utilizei na abertura da minha dissertação”, conta Salomão.
Para o professor de geografia Glauco Queiroz, a visibilidade da história negra nos espaços urbanos de São Paulo, por exemplo, é uma ferramenta que auxilia o processo de educação. “Uma das possibilidades de combater esse racismo estrutural é através da cultura e da educação e ter monumentos que “reconte” a história da nossa cidade dando protagonismo a personagens importantes, que simplesmente, foram ignorados nos livros históricos é de suma importância”, destaca.
Queiroz defende que os monumentos de resgate da história negra sejam instalados em lugares onde a memória negra foi apagada. “Um exemplo é o bairro Liberdade, que só tem esse nome por conta da resistência negra no período vergonhoso da escravidão, e hoje é associado a colônia japonesa, que chegaram bem depois”, explica o professor.
São Paulo tem dois bons exemplos de reconhecimento da memória negra, que foram instalados a partir do movimento de resistência da própria população negra. Na região do largo do Arouche está a estátua de Luiz Gama, erguida após uma grande mobilização da imprensa negra, representada pelo jornal Progresso, pedindo apoio e doações. A campanha começou em 1929, quando foi constituída uma comissão. O monumento em busto e bronze foi inaugurado em novembro de 1931. Nesse meio tempo, por falta de dinheiro e entraves do poder público, a comissão teve que recorrer a ideias criativas para concluir a missão.
Luiz Gama foi um grande líder abolicionista. Gama tentou estudar direito na Faculdade do Largo São Francisco, mas foi proibido porque era negro. Mesmo assim, frequentou as aulas como aluno-ouvinte, estudou os livros da biblioteca e conseguiu, na Justiça, a liberdade para mais de 500 pessoas escravizadas ilegalmente no Brasil.
Na praça Antônio Prado, também no centro da capital paulista, em 2016 foi erguida a primeira estátua de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. Em Palmares, chegaram a viver 20 mil negros em liberdade, grande parte deles, anteriormente, eram escravizados nos engenhos de açúcar de Pernambuco. A obra surgiu a partir de um concurso promovido pela Secretaria Municipal de Igualdade Racial. O vencedor foi o artista plástico José Maria Ferreira dos Santos, o Jofe Santos, e o monumento fica no local onde era a antiga igreja do Rosário dos Homens Pretos.
O Alma Preta, com colaboração do coletivo Angana e do professor Glauco Queiroz, listou 15 figuras que poderiam ser homenageadas em monumentos na cidade de São Paulo. Confira:
1 – Luiza Mahin
Luiza Mahin foi articuladora em diversas levantes contra a escravidão no início do século 19, em Salvador, na Bahia. Nascida na África, comprou a própria liberdade e promoveu, entre outras, a revolta dos Malês e a Sabinada. É a mãe do advogado e jornalista Luiz Gama, um dos maiores abolicionistas do Brasil.
2 – Raquel Trindade
Escritora, artista plástica, folclorista e dançarina, Raquel Trindade foi uma das figuras mais importantes da cultura regional de São Paulo e do país. Ela fundou o Teatro Popular Solano Trindade (TPST), na década de 1970, e o movimento de artes da Praça da República, na década de 1960. Raquel é fundadora também da Nação Kambinda de Maracatu.
3 – Carolina Maria de Jesus
Autora do clássico “Quarto de Despejo”, de 1960, um livro-diário fundamental na literatura brasileira do século 20. Carolina também compôs sambas, escreveu poesias, contos e crônicas. Em vida, a escritora publicou ainda as obras “Casa de Alvenaria” (1961), “Pedaços de Fome” (1963) e “Provérbios” (1963). Após a sua morte, em 1977, foram lançados outros seis livros inéditos.
4 – Madrinha Eunice (Deolinda Madre)
Popularmente conhecida como Dona Eunice e carinhosamente chamada de Madrinha Eunice, foi fundadora e dirigente da Escola dos Lavapés e do Time de Futebol Lavapés Clube. Ela é uma das figuras mais importantes da história do samba em São Paulo.
5 – Abdias do Nascimento
Na década de 1930, participou da Frente Negra Brasileira, em São Paulo, no combate à discriminação racial. Foi fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), na década de 1940. Abdias também era ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico e professor universitário. Em 2010, seu nome foi indicado para o prêmio Nobel da Paz.
6 – Geraldo Filme
Cantor, compositor e militante do movimento negro no Brasil. Conhecido como “Seu Geraldo” ou “Geraldão da Barra Funda”, é possível associar sua história de vida à história da resistência negra, na cidade de São Paulo, em seu processo de urbanização. Dentre suas obras, destaca-se “O Canto dos Escravos” (1982), em parceria com Clementina de Jesus e Doca, onde interpretam cantigas ancestrais dos negros benguelas, resgatando heranças centro-africanas na música brasileira.
7 – José Correia Leite
Escritor e jornalista, José Correia Leite fez junto a José de Assis Barbosa uma frente de luta para salvaguardar as memórias negras da cidade de São Paulo, que tinham sido preteridas nos planos de comemoração do IV Centenário da capital paulista.
8 – Raul Joviano do Amaral
Uma das figuras fundamentais na disputa pela preservação da memória da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, com sua obra “Os Pretos do Rosário de São Paulo”.
9 – Francisca de Andrade e Dolores Silva
Como emblema de inúmeras trajetórias de mulheres negras, as quais construíram projetos vitais para a comunidade negra, destacam-se as professoras Francisca de Andrade e Dolores Silva, que atuaram na Frente Negra Brasileira em compromisso com um projeto pedagógico e político de valorização da identidade e memória negra.
10 – Lino Guedes
Importante membro da imprensa negra, destacando-se como um dos fundadores do Jornal Getulino (Campinas) e um dos Diretores do Jornal Progresso (São Paulo). Poeta e escritor, é autor de obras como “O Canto do Cysne Preto” (1927), “Ressurreição Negra” (1929), “Negro Preto Cor da Noite” (1936), “Urucungo” (1936), entre outras.
11 – Dona Micaela Vieira
Mulher negra que desempenhou primorosamente o ofício de parteira na Zona Leste da cidade de São Paulo, especialmente no bairro da Penha, no pós-abolição. Mais conhecida como Tia Micaela, percorria a pé longas distâncias, desvendando as veredas do bairro e, por meio de suas mãos, fazendo “brotar” novas vidas. Dada às dificuldades dos longos trajetos e meios restritos de locomoção, a sua coragem e valentia evidenciam sua importância histórica.
12 – Dona Silvina Maria Narcizo e Edemundo Narcizo
Dona Silvina Maria Narcizo nasceu no final do século 19 e exerceu um importante papel social no seio da sociedade da Penha, bem como no interior da comunidade negra, em virtude da função que realizava como guardiã da Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, ação que realizava juntamente com seu companheiro Seu Edemundo Narcizo, com grande dedicação. O casal contribuiu com a preservação desse importante patrimônio negro, a única Igreja do Rosário dos Homens Pretos da cidade de São Paulo e que permanece de pé em seu local de origem desde a fundação, em 1802.
13 – Adhemar Ferreira da Silva
O atleta conquistou as medalhas de ouro no salto triplo nos Jogos de Helsinque de 1952 e de Melbourne em 1956. No ano de 2012, foi imortalizado no Hall da Fama do Atletismo. Adhemar foi o único brasileiro a representar o país no salão da Federação Internacional de Atletismo (IAAF). Também foi ator, escultor e articulador cultural na embaixada brasileira em Lagos, Nigéria, entre 1964 e 1967. Como ator, participou da peça “Orfeu da Conceição”, de Vinicius de Moraes e do filme franco-italiano Orfeu Negro, de 1959, feito a partir do texto teatral que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro no Festival de Cannes.