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“Crime de um Estado racial”, afirma geógrafo sobre tragédia no litoral de SP

Desastre que já conta com 65 mortos e mais de 3 mil desabrigados poderia ser evitado; falta de destinação de recursos para prevenção e comunicação mais efetiva sobre o risco para os moradores são causas apontadas

Imagem da tragédia no Litoral Norte de São Paulo após as chuvas de 2023.

Foto: Imagem: Sérgio Barzagui/ Governo do Estado de São Paulo

24 de fevereiro de 2023

“Hoje o que acontece com a tragédia no Litoral Norte de São Paulo tem a ver com o processo histórico de desapropriação de populações negra, ribeirinha, de pescadores e indígena. Todos eles vão sendo expropriados de espaços e sendo colocados em situação de risco na vida urbana”. É o que explica o geógrafo Diosmar Filho, pesquisador da Associação de Pesquisa Iyaleta.

De acordo com o géografo, considerando que o próprio Estado é racial, todo o projeto que envolve pensar política pública de prevenção está baseado na racialidade dos espaços. Nesse contexto, os espaços criminalizados, como áreas de risco, são onde as populações em vulnerabilidade estão.

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“Nesses espaços, a política pública não está para prevenir a tragédia. Ela está para legislar de que forma se vai eliminar essa população. Então o racismo ambiental é uma prática de racismo institucional nesse caso, que é o racismo em que as instituições elegem a tragédia como princípio de gestão pública”, destaca Diosmar.

Após o desastre que assolou o Litoral Norte paulista, Adriano Liziero, o geógrafo do projeto Geopanoramas e documentarista, publicou nas redes sociais uma análise sobre como as casas de veraneio e a especulação imobiliária que empurraram as populações moradoras da Barra do Sahy, região mais atingida em São Sebastião/SP, para as encostas de risco da Serra do Mar.

“Em muitos trechos, é comum que a rodovia Rio-Santos seja a fronteira entre duas realidades. O lado da praia, com mansões ocupadas em poucos períodos do ano, e o lado da Serra, com moradias improvisadas, onde mora a população fixa que trabalha nas casas de veraneio”, destacou Adriano na publicação.

Até a manhã desta segunda-feira (27), foram confirmadas 65 mortes no Litoral Norte de São Paulo após as chuvas intensas, sendo 64 vítimas do município de São Sebastião/SP e uma de Ubatuba/SP. Em São Sebastião, mais de 850 pessoas seguem desalojadas. Em Ubatuba, de acordo com último boletim publicado, 150 famílias estavam desalojadas. Essas foram as maiores chuvas registradas em menos de 24 horas dentro do que há documentado no país.

Um cenário recorrente

Não é recente no Brasil, as tragédias causadas por chuvas intensas que causam deslizamentos de terra e grandes inundações nesse período do ano. Nessa mesma época, em fevereiro de 2022, por exemplo, a cidade serrana de Petrópolis/RJ foi também palco de uma tragédia que tirou a vida de mais de 200 pessoas. O estado de Pernambuco perdeu mais de 120 pessoas com deslizamentos de terras após as chuvas iniciadas em maio de 2022, além de municípios da Bahia em estado de calamidade pública por conta das chuvas no mesmo ano.

De acordo com levantamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de 1988 até este ano, já são 4.169 pessoas mortas no Brasil vítimas de deslizamentos de terra. Os dados nem estão atualizados ainda com a recente tragédia das chuvas ocorrida em São Sebastião e Ubatuba. Na série histórica, o ano de 2011, em que houve a tragédia com enchentes e deslizamentos na região serrana do Rio de Janeiro, foi o que mais teve número de mortos, com 969 óbitos.

No caso do Litoral Norte de São Paulo, o Governo de São Paulo e a Prefeitura de São Sebastião foram alertados com antecedência do risco de desastres por conta das fortes chuvas em áreas vulneráveis pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). No entanto, há moradores da região que relatam que não receberam alertas e que não houve uma ação efetiva do poder público para remoção de pessoas das áreas de risco.

Josilvado dos Santos, que trabalha em um mercadinho no município de Ubatuba, relata que o alerta que chegou a receber pelo celular partiu de outros moradores que compartilharam a informação sobre o risco das chuvas intensas e de possíveis deslizamentos, mas não viu uma movimentação do poder público mais direta de remover as pessoas ou auxiliar quem poderia ser impactado.

“Fomos impactados com muita lama, perdas de produtos e máquinas”, destaca o morador de Ubatuba, que também ressalta que todos os anos o município enfrenta problemas por conta das chuvas. Inclusive, não é a primeira vez que ele tem prejuízos dentro do mercadinho em que trabalha, partindo do proprietário buscar solucionar o problema por conta própria.

Em São Sebastião, o Camilo Terra, do Coletivo Caiçara: São Sebastião, Ilhabela e Caraguatatuba, conta que alertas da Defesa Civil do Estado de São Paulo sobre os riscos de intensas chuvas chegaram a circular em grupos de pescadores e de caiçaras da região. Considerando as áreas de risco já conhecidas do local, que já sofreram com impactos e mortes devido a chuvas intensas em outros anos, já era sabido que poderia haver grandes desastres e danos.

“Não houve uma ação preventiva pra retirar essas pessoas dos locais que são sabidos de áreas de risco. Não houve isso e o pior, houve o incentivo para que turistas viessem para São Sebastião e convites para todos prestigiarem as festas de Carnaval da cidade. É uma omissão contínua de todos os níveis (municipal, estadual e federal) que não tomaram as providências”, comenta.

Tragédia no RJ em 2011

Igreja de Santo Antônio, em Nova Friburgo, RJ, atingida pelo deslizamento provocado pela chuva em 2011 | Foto: Divulgação

De acordo com o climatologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden, mesmo que as chuvas do Litoral Norte de São Paulo tenham superado a previsão meteorológica para o período, os alertas de risco já poderiam ter sido suficientes para ações mais efetivas para reduzir a magnitude da tragédia.

“Se os alertas tivessem sido seguidos e a população tivesse uma maior percepção dos riscos, poderia ter sido reduzido o número de mortos, mas a tragédia em termos de volume de chuva, de deslizamento de terra e queda de barreira poderia ter acontecido igual”, comenta.

Segundo o geógrafo Diosmar Filho, o fato dos alertas não terem virado uma ação pública é como legislar pela tragédia. “O que aconteceu em São Paulo faz parte do crime de um Estado racial. Se a gente não reconhecer que o Estado é racial, não vamos saber também narrar o que é o racismo ambiental quando ele se manifesta na institucionalidade. A institucionalidade é a negação do direito à política pública de prevenção”, ressalta.

Em nota na última segunda-feira (20), o Ministério Público de São Paulo disse que será apurada a eventual responsabilidade dos gestores locais na tragédia ocorrida, “mediante a falta de iniciativas na remoção de moradores de áreas de risco”.

Leia mais: É possível reduzir os deslizamentos de terra em áreas de risco?

Cortes de despesas com prevenção de desastres

Além disso, nos últimos anos, mesmo diante do aumento dos impactos dos fenômenos naturais, são observados cortes de despesas para prevenção de desastres no país. Segundo levantamento da Associação Contas Abertas, a verba federal prevista para ações contra desastres naturais é a menor dos últimos 14 anos.

No Orçamento da União, aprovado pelo Congresso Nacional, está previsto 1,17 bilhão, valor que seria ainda menor sem a aprovação da PEC da Transição no final de 2022, que contestou o valor de R$ 671,54 milhões para ações de prevenção e gestão de desastres em 2023 propostos pelo governo Bolsonaro.

O levantamento também destaca que, nos últimos 13 anos, do valor total autorizado em orçamento (R$ 64,1 bilhões em valores constantes), foram efetivamente pagos R$ 40,7 bilhões (63,6%). Dentre os seis municípios que o Estado de São Paulo decretou em estado de calamidade pública nesta semana (Bertioga, Caraguatatuba, Ilhabela, Guarujá, São Sebastião e Ubatuba), apenas Guarujá e Ubatuba chegaram a receber recursos dos programas federais de prevenção e recuperação de desastres em 2022.

Nos últimos três anos, segundo o levantamento, os municípios de Bertioga, Ilhabela e São Sebastião não receberam nenhum recurso dos programas federais de prevenção e recuperação de desastres.

Autoridades em São Sebastião

Visita de autoridades à cidade de São Sebastião (SP) em decorrência das enchentes | Crédito: Foto: Ricardo Stuckert/PR

O economista Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da Associação Contas Abertas, explica que isso acontece, muitas vezes, porque não chegam projetos a Brasília para que os recursos possam ser direcionados.

“Aí eu indago, municípios pequenos como São Sebastião e Bertioga, por exemplo, possuem em seus quadros técnicos, engenheiros e pessoas capazes de fazerem um projeto tecnicamente bem feito sobre uma contenção de encostas ou sobre uma drenagem de rios? Certamente não. E nem tem recursos para contratar uma empresa especializada”, comenta Gil.

“Se não houver uma integração técnica permanente entre União, estados e municípios para que inclusive esses projetos sejam desenvolvidos e cheguem à Brasília, a tendência é que esse problema continue a acontecer”, destaca o secretário-geral da Associação Contas Abertas.

Só alertas por mensagens ou ações após a tragédia não são suficientes

O climatologista José Marengo ressalta que, diante de eventos extremos que têm se tornado cada vez mais corriqueiros no Brasil e no mundo, é necessário olhar para propostas de adaptação a essa situação para proteger a população e evitar os impactos negativos.

“O ideal seria que as pessoas morassem em áreas longe de risco, de rios, de encostas e morros. Obviamente isso é muito difícil, porque não podemos deslocar toda uma cidade. Mas o que poderia ser feito é primeiro identificar áreas seguras e marcar isso de forma que a população, assim que escutasse os alertas, fossem para lá”, comenta.

Ainda segundo ele, a melhor forma de fazer esses alertas seria por sistemas de sirenes, porque mensagens por celular ou redes sociais podem não ser transmitidas em casos de queda de energia e de torres de telefonia celular.

“Poderíamos adaptar para que a população salve suas vidas. Para isso é preciso haver também campanhas para melhorar o entendimento da população sobre os desastres, melhorar a nossa percepção de que desastres acontecem e continuarão acontecendo”, enfatiza.

O geógrafo Diosmar Filho relembra que o Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) que começou a ser publicado em 2021 já destaca que as desigualdades urbanas vão ser causadoras de maiores tragédias diante das mudanças do clima.

“As chuvas de verão são mais intensas, são mais concentradas e elas aprofundam sobre os territórios onde há uma desigualdade mais latente. Essas são questões que precisam ser vistas de uma outra forma e não no modelo que a gente tem de garantir infraestrutura. Não é uma política para infraestrutura sobre tragédia”, explica Diosmar.

Animal resgatado

Animais resgatados em meio à tragédia | Crédito: Governo de São Paulo

Segundo ele, é necessário mirar em uma política de prevenção que pense questões de moradia, acesso à terra, saneamento, condições de saúde e assistência social, por exemplo. “O Brasil hoje tem uma agenda climática voltada à Amazônia, mas o maior desafio não é só a Amazônia Floresta. O maior desafio é uma agenda climática de adaptação que aprofunde sobre as desigualdades e a eliminação daquilo que são os pontos de vulnerabilidade social, econômica, ambiental e climática que estão a maioria da população nas cidades, tanto no território do bioma Amazônia, quanto em toda o grande litoral brasileiro”, complementa.

De acordo com dados do Censo de 2010 cruzados com informações do Cemaden, há cerca de 8,3 milhões de pessoas morando em áreas de risco hoje em 872 municípios do país.

Na última terça-feira (21), Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança Climática, e Luciana Santos, ministra de Ciência, Tecnologia e Inovações, propuseram a realização de um seminário para desenhar um plano emergencial de adaptação a eventos climáticos extremos em municípios brasileiros.

Segundo a ministra do Meio Ambiente, o objetivo é usar bases de dados já existentes para propor intervenções do poder público em regiões vulneráveis, como decretar antecipadamente emergência climática que poderia dar um acesso mais fácil a recursos, criação de planos de defesa civil e educação para riscos climáticos e reassentamento de moradores.

Leia também: Dia Mundial do Meio Ambiente: como as mudanças climáticas já impactam as populações no Brasil?

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