Entrevista: Pedro Borges / Entrevistado: Deivison Nkosi
Deivison Nkosi é uma das principais referências no Brasil para discutir a obra do psicalista Franz Fanon. Deivison também faz parte do Kilombagem, organização do movimento negro localizada em São Paulo que trabalha com a formação política da comunidade negra.
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{payplans plan_id=15 SHOW}P: Por que o negro é visto como o malandro? Onde surge essa ideia?
R: Essa pergunta suscita uma breve reflexão sobre a transição entre a escravidão e o trabalho livre no Brasil. Temos que lembrar, em primeiro lugar, que durante o período escravista os africanos escravizados (ou livres) e seus descendentes ocupavam todos os postos de trabalho existentes enquanto os portugueses (e seus descendentes) preferiam a mendicância a se submeter ao trabalho duro, entendido como coisa de negro. Ocorre que eles, os brancos, nunca foram marginalizados ou estigmatizados por isso.
No entanto, com a transição para o trabalho livre (que durou algumas décadas), os negros deixaram de ser vistos como trabalhadores desejáveis. Não atoa, como sabemos, é exatamente nesse período que as elites brasileiras financiaram a chegada de mão de obra estrangeira, majoritariamente europeia.
O ponto é que para as elites herdeiras do colonialismo, o Brasil do pós abolição deveria ser branco, capitalista e cristão, e o negro, portanto, teria como única alternativa a marginalidade e/ou o subemprego.
Não apenas as favelas e os cortiços, mas os postos de trabalhos mais desqualificados e desvalorizados passaram a ser ocupados de forma precária por uma massa de gente sofrida que as vezes tinha emprego e as vezes não.
Muitos ficavam ali, disponíveis, aguardando o próximo carregamento ou próximo bico, enquanto isso, faziam samba, jogavam capoeira ou simplesmente aguardavam por uma oportunidade. Outros desistiam de esperar e assumiam a marginalidade como meio de vida e até identidade.
Não é segredo para ninguém que a Lei da Vadiagem, criada em plena ditadura do Governo Vargas, teve como público alvo essa massa negra que não tinha espaço no projeto de nação que se desenhava. Assim, colava-se nos homens negros a ideia de malandragem ou vadiagem.
P: Até que ponto existe a diferenciação entre o negro enquanto malandro e o negro enquanto marginal?
R: É interessante pensar que em muitos momentos, os dois termos foram ressignificados pelos negros. O primeiro, ganha sentidos diversos ao longo da história e em alguns casos, chega a ser o nome de uma entidade da Umbanda (Malandro) e aparece em alguns sambas cariocas ou raps paulista como termo que designa um cara esperto, versátil, e as vezes, enrolador. Ainda está na memória da minha geração a frase cantada por diversos grupos de Rap segundo o qual afirmava “malandragem de verdade é viver”.
O mesmo acontece, no caso da capoeira com o termo “vadiagem” ou “vadiação” que ganha uma conotação positiva em alguns casos bastante específicos.
Isso significa que não é sempre que o termo malandro está associado à ideia de marginalidade, embora a sua origem tenha sido essa. Há vários momentos em que as pessoas assim rotuladas criam maneiras para atribuir novos significados a estes rótulos. Esse jogo de significação não é uma via única, nem por parte de quem rotula, e nem por parte de quem é rotulado. O ponto, se quisermos recorrer à Frantz Fanon, é que nem sempre o rotulado consegue ressignificar o rótulo, e as vezes, preocupados em valorizar uma marca que lhe atribuiram, incorrendo no risco de ficar preso a ela.
P: O Estado influencia na construção da imagem do negro enquanto malandro? Como?
R: Sim. Mas é necessário dizer que a participação do Estado é ambígua diante dessas imagens. Se pensarmos a Lei 10.639/03, por exemplo, temos um típico caso em que o Estado busca desfazer essa imagem, ou pelo menos, apresentar outras possibilidades de olhar para o negro. Mas ao mesmo tempo, esse mesmo Estado – que na maioria das vezes nem o cumprimento da Lei garante – atua no sentido oposto, invizibilizando o negro em todos os aspectos de suas políticas públicas. O Negro não existe para a maioria das políticas públicas, exceto na condição de marginalizado ou malandro.
É por isso que diante dele (o Estado), o negro é suspeito até que ele prove o contrário. Não há outro momento em que o negro é visto como ser humano. Daí o Estado só chegar nas favelas com a polícia. Nunca de outra forma.
Mesmo as políticas redistributivas ou de cidadania – que são altamente necessárias – só pensam o negro na condição de negação da humanidade, nunca como parte ativa dela. Quando dizemos que “queremos levar oficinas de arte para as periferias para que os jovens pretos não se tornem bandidos”, estamos afirmando que eles não são sujeitos de direitos e que só merecem as políticas porque nos ameaçam. Se não fossem virar bandidos, poderiam morrer a mingua que a nossa vida – nós os ditos cidadão de bem – seguiria linda, bela e branca, como pretensamente sempre foi.
P: Os veículos de comunicação também fortalecem para a consolidação da imagem do negro enquanto malandro? Como?
R: Bom, o tempo todo né. Mas não é só a mídia da burguesia racista, não, viu? As vezes, as nossas mídias seguem o mesmo padrão. É só você olhar os filmes estadunidense dirigidos por Pretos, ou os clips brasileiro de rap. Acostumamos tanto a ser vistos como “malandros” que muitas vezes, nos limitamos a nos apresentar como tal, ignorando também que há muito mais a ser dito. Mas enfim, romper com isso é difícil, mas precisa ser feito. Felizmente, tenho visto boas produções audiovisuais apontando rupturas nesse sentido, mas precisamos falar mais disso. E não estou dizendo que romper o estereótipo do malandro é botar terno e gravata e recitar Voltaire no original, mas precisamos pensar nisso.
P: Quais são os reflexos dessa política de classificar o negro enquanto malandro?
R: Morte, mano! Morte do mano. A negação do mano enquanto (hu)mano. Tem uma morte que antecede o tiro, que é essa que me fixa a um estereótipo. Quando os soldados do PCC assassinaram policiais em 2006, os colegas de trabalho das vítimas resolveram vingar as mortes e assim o fizeram. Os jornais falavam em “mortes de suspeitos em confrontos com a polícia”. Em uma semana, foram executadas 497 pessoas, quase todos pretos e os poucos brancos, de tão pobres, quase pretos. A pergunta é: qual foi o critério de inclusão na lista de suspeitos?
A mesma pergunta pode ser feita na lista de chacinas ocorridas em São Paulo, ou na lista de jovens executados nos morros do Rio de Janeiro ou da Bahia. Há um verdadeiro genocídio em curso. Mas os assassinos não estão sós.
Eles foram informados por uma cultura, uma mídia, uma produção de conhecimento, uma política pública cidadã que diz que o malandro, o marginal, o bandido, o suspeito tem cor e essa cor é preta. Esse é o ponto!
O que não significa, como coloquei acima, que a gente não possa dar outros significados aos termos que criaram para nós. Podemos e precisamos, mas muitas vezes não conseguimos transcendê-los. Mas transcender não significa negar, que precisaremos ser malandros, as vezes, jogar capoeira de angola com os símbolos e inverte-los, de vez em quando, se preciso for. Mas ficar ligados porque há um genocídio que começa antes do tiro.{/payplans}