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Descomemorando 1958: o racismo na Copa do Mundo

27 de junho de 2018

A jornalista Edda Ribeiro conversou com escritores e pesquisadores que desnudam o racismo na seleção brasileira do 1º título da Copa do Mundo. Eles revelam que os negros da equipe, inclusive Pelé e Garrincha, eram tidos como emocionalmente instáveis pela comissão técnica e discutem a relação deles com a questão racial.

Texto / Edda Ribeiro
Imagem / Reprodução

Até a seleção de Pelé e Didi entrar em campo, na estreia do Brasil contra a Áustria em 1985, os jogadores negros eram tidos como instáveis emocionalmente e, por isso, “amarelavam em jogos decisivos” Porém, para o jornalista Fábio Mendes, autor de Campeões da Raça – Heróis Negros da Copa de 1958, “foram justamente atletas brancos que tiveram momentos de descontrole emocional. E foram os negros que mostraram força psicológica quando o time mais precisou”. Com prefácio de Mauro Beting, o livro relata os racismos na primeira vitória do Brasil em Copa do Mundo, e a leitura sobre o preconceito no futebol após 60 anos, defendendo que a conquista contra a Suécia mostrou que um jogador negro não tem menos valor que um atleta branco.

Em suas páginas, Mendes não deixa de contar: refere-se a um descontrole emocional de Mazola após perder um gol feito, com sua pele branca e cabelos loiros no 0x0 de Brasil e Inglaterra em 58. Para ele, o jogador que mais segurou a onda no campeonato foi o meio-campo, o Didi, e encaminha o leitor para os 4 minutos iniciais da partida contra a Suécia: “Quando o Brasil sofreu o primeiro gol, alguns atletas sentiram a pressão. Mas o Didi não: ele foi pro gol, pegou a bola e caminhou devagarinho até o meio de campo com a bola sob o braço. E falou pro time que o Brasil era melhor e ia virar o jogo, como realmente aconteceu”. Ele termina a comparação lembrando dos dezessete anos de Pelé e seu brilho em campo.

A expectativa do livro é atrair os fãs do esporte, além do público interessado em histórias de superação e temas como racismo e direitos humanos. Em entrevista, Mendes, que já passou por veículos como a Folha de S. Paulo e Portal da Band, deu o tom histórico de vários episódios que ajudam a construir as relações sociais do futebol brasileiro.

Em sua pesquisa, o jornalista se deparou com os apelidos que determinavam quem era quem no campo: “O que mais me chamou a atenção foi a naturalidade com que se falava na época sobre o fato de o jogador negro “amarelar” em jogos importantes. Os insultos a que alguns jogadores eram submetidos, como ser chamado de “negro sujo”, também me impressionaram bastante”.

Capa do livro “Campeões da Raça”, do autor Fábio Mendes (Imagem / Reprodução)

A motivação de Mendes para focar na história de esportistas negros foi a contradição com a leitura do preconceito racial no futebol hoje: “É impensável imaginar que um jogador pudesse ser desqualificado por ser negro. Mas nos anos 1950 esse preconceito realmente existia”.

Assim como Fábio, a escritora Angélica Basthi também retratou um jogador em esteve em campo na Suécia. Em sua obra “Pelé: estrela negra em campos verdes”, dedica um capítulo para resgatar um Pelé de 1958, intitulado “Pretos e Heróis”. Ao ser questionada sobre um momento negativo do atleta, o racismo salta: “Foi uma cobertura feita pela revista O Cruzeiro, onde o repórter faz toda uma introdução de como as moças loiras brancas europeias se encantavam pelos jogadores negros. A reportagem traz o episódio de uma mãe e sua filha, que vê o Pelé e fala “mamãe, ele fala”. Ou seja, associa o corpo negro ao animal, que foi justamente por muito tempo o que justificou a escravidão negra no Brasil e no mundo”.

Para Basthi, foram muito os momentos em que Pelé era outros além de Edson: foi chamado de Gasolina, Crioulo e Alemão. “Esses apelidos que na verdade refletem uma dinâmica das relações sociais no Brasil, com esse recorte racial, que é marcar o lugar do negro a partir da sua pele, porque você não vê apelidos relacionados a pessoas brancas referentes a cor da pele. Somente as pessoas negras é que até hoje tem esses apelidos. Carinhosos, ofensivos, mas de qualquer forma, sendo afetivo ou mais agressivo, eles demarcam esse lugar da corporeidade do negro”.

O preconceito racial, dizem os fãs e curiosos do esporte, também era institucional. Basthi escreve a situação em que o psicólogo da Seleção Brasileira, João Carvalhaes, avaliou os jogadores negros com nota baixa, em especial o Pelé (o jogador foi avaliado em 5,5 em escala de zero a 10), e que essa avaliação foi decisiva para que o técnico Feola o afastasse do time titular. A motivação da contratação de Carvalhaes já era por questões raciais: o mito de que goleiros negros não davam conta do serviço, criado a partir de 50, com a performance do atleta Barbosa sendo o bode expiatório. Mendes discorda: “De fato, o Carvalhaes não era favorável à escalação de Pelé e Garrincha, mas não por motivos raciais. Para ele, ambos eram jovens e imaturos demais para uma competição tão importante. O racismo foi fruto, na verdade, de um antigo relatório de um ex-técnico da seleção, que foi levado em conta por alguns membros da comissão técnica”.

Mendes teve contato com dirigentes, ex-jogadores e familiares, e promete boas histórias em sua obra. Ao ser indagado sobre um dos jogadores de maior destaque em 58, Fábio foi compreensivo: “Tentei entrevistar o Pelé, mas não conseguiu. Ele estava inacessível na época e hoje sabemos o porquê – ele enfrenta problemas de saúde e não queria se expor”.

“PRETOS E HERÓIS”

Basthi conta com entusiasmo sobre um momento de glória do considerado melhor jogador jovem e Chuteira de Prata da Copa de 58: “Fiquei surpresa em saber que o Pelé tinha parado uma guerra civil na Nigéria. Achei inusitado. Provavelmente não vai se repetir na história mundial. Existia uma guerra civil interna, e houve um acordo para que as pessoas pudessem ver o Pelé jogar. O conflito parou por 48h, para o público visse um fenômeno mundial. Foi surpreendente”.

Sobre a cobrança que o jogador recebe por não colaborar e se manifestar sobre a luta antirracista, a escritora ressalta o que é mais próprio da exigência da linguagem e da percepção do Brasil sobre a questão racial: “No momento em que reacendem os debates na sociedade brasileira sobre a questão racial, principalmente na década de 70, ele (Pelé) preferiu silenciar. Mas antes, nos anos 60, o Pelé era rei. Ele simbolizava a ascensão do negro no futebol, a ascensão do negro na sociedade, e a grande resposta da sociedade negra brasileira para todas aquelas discriminações”.

Angélica Basthi, autora do livro “Pelé: estrela negra em campos verdes”. (Imagem / Reprodução)

A obra, lançada em 2001, sendo uma biografia não-autorizada, recebeu o silêncio perturbador do Camisa 10. Mas a autora afirma: “Eu sei que houve a leitura do livro, mas o fato de ele não ter dito nada, e de não ter tido nenhuma repercussão negativa, significa que ele compreendeu o que estava escrito ali. Ele se posicionava como o Pelé se posiciona sobre o racismo, como um homem de 70 e poucos, hoje mais de 80, poderia se posicionar”.

A complexidade da trajetória de Pelé ajuda a entender as contradições da sociedade brasileira: “Não é simples fazer afirmações, porque nada do que se fale, ou até o que o próprio Pelé fala dele mesmo, apaga o fato dele ter nascido lá em Minas Gerais, na cidade de Três Corações, numa família negra”, afirma Basthi. E completa: “O silêncio do Pelé expressa toda uma trajetória onde a gente vê, por exemplo, o mito da democracia racial, a expressão do uso que fizeram da imagem dele”.

60 ANOS DEPOIS

O 5X2 para o Brasil não será esquecido, e nem dos personagens que o proporcionaram. Mas algumas mudanças na narrativa política dos movimentos identitários fazem com que figuras do país do futebol discordem parcialmente de Basthi: “O Pelé, desde o início de sua carreira até os dias atuais decidiu pelo silêncio, jamais se manifestou em favor da luta contra o racismo. Acredito que como o maior jogador de futebol do planeta ele poderia ter feito algo em favor da luta, contra o racismo que atinge seus familiares e amigos”, afirma Marcelo Carvalho, Diretor-Executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Carvalho acredita que não há diferença nos casos de racismo nesses 60 anos de Copas, Para ele, a diferença existe “no enfrentamento, nas denúncias, na maneira que a mídia vê cada situação”. Ele comenta também a existência do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, com normas aprovadas desde 2003 e que já garantiu punição para casos de racismo conhecidos no futebol, como o do Tinga em 2005, do Dida em 2014 e do goleiro Aranha, no mesmo ano.

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