Empresa ofereceu valores irrisórios aos parentes da vítima; membros do Comitê aguardam próximas reuniões para definir ações de enfrentamento ao racismo no grupo de supermercados
Texto: Edda Ribeiro (colaboradora) I Edição: Pedro Borges I Imagem: Sérgio Ávila/AFP
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Após dois meses do assasinato de João Alberto Silveira Freitas, a filha Thais Freitas segue fazendo acompanhamento psicológico para lidar com a perda do pai. “Não está sendo fácil, até porque faz pouco tempo ainda”, disse ao Alma Preta. Aos poucos, ela diz que a família tenta aceitar a ausência de João Alberto Silveira de Freitas, morto em novembro do ano passado na unidade Carrefour do bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre (RS).
Thais, de 22 anos, colocou na rotina outra atividade ligada ao pai. Semanalmente, ela frequenta o Projeto Pedreira, que reúne pessoas na Comunidade Maria da Conceição, na zona leste de Porto Alegre, e ajuda a organizar intervenções artísticas com o projeto. Cerca de 11 voluntários preparam uma imagem a ser vista via satélite, projetada nos telhados das casas da vila. Um coração amarelo terá os dizeres Beto e Jane, homenageando Alberto Freitas e Jane Beatriz Machado da Silva, servidora e ativista negra morta por policiais em dezembro.
“Ajuda muito. Vou pra lá, me distraio, ajudo eles no que posso. É bem legal o que estão fazendo”, diz Thais, que tem uma filha de 6 anos, também fazendo acompanhamento psicológico desde a morte do avô. A homenagem, que também terá os dizeres “Todas as vidas importam”, terá a cor amarela representando Oxum, orixá do Candomblé.
Antônio Marcos Pereira, um dos organizadores do Projeto Pedreira, diz que apesar de poucos participantes na ação, é um projeto grande e uma boa manifestação contra o racismo estrutural. O jovem ajudou a colocar na rua o chamado Ato Ecumênico, para chamar atenção pelas mortes de pessoas negras na cidade, em especial a de Beto e Jane. Hoje, o ato deve também estar organizado para que o assassinato de Beto não seja esquecido.
Beto foi agredido e asfixiado por dois seguranças da rede de supermercados Carrefour no dia 19 de novembro de 2020. Aos 40 anos, o soldador deixou a noiva Milena Borges, o pai João Batista Rodrigues Freitas, filhos e neta. A notícia da brutalidade marcou o feriado da Consciência Negra, 20 de novembro.
Pai de Beto aguarda decisão com Defensoria Pública
Embora o Grupo Carrefour afirme que “vem prestando todo o suporte necessário aos familiares”, o pai de Beto Freitas, o pastor João Batista Freitas recebeu, após mais de um mês da morte do filho, um auxílio de R$ 800 para ajudar no custeio do funeral. O valor foi um pedido feito por ele, em nenhum momento oferecido pela empresa. Por conta de sua rotina com a religião, ele dispensou acompanhamento psicológico.
Rafael Peter Fernandes, advogado do pai de Beto, relatou que a empresa pouco se movimentou para auxiliar o pastor. “Chegaram a oferecer ajuda financeira em forma de rancho e cesta básica, o que deixou o Sr. João bastante chateado. Entendemos que não era esse o objetivo da questão”, contou Fernandes.
Há duas ações judiciais indenizatórias abertas por parte do advogado – uma contra o Carrefour e a empresa Vector, responsável pela contratação dos seguranças do supermercado – e outra contra o estado do Rio Grande do Sul, por conta do vazamento dos antecedentes policiais de Beto. “Isso ocorreu por ele ser um homem negro e de classe baixa, tudo na intenção de desqualifica-lo”. A defesa aguarda a mediação com a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul.
Segundo Fernandes, o advogado do Carrefour os procurou para um acordo extrajudicial, oferecendo R $200 mil. A proposta não foi aceita.
Comitê criado pela empresa avalia reunião
No dia 17 de dezembro de 2020, após nascimento do Comitê Externo sobre Diversidade e Inclusão, sugerido pelo grupo de supermercados, uma audiência com nomes do movimento negro e a empresa teve sua transmissão encerrada a pedido de representante do Carrefour. A solicitação foi acatada pela juíza Dulce Opptiz. Conforme noticiado pela Folha de S. Paulo, a transmissão foi feita por membros do Educafro.
Frei David, um dos representantes do coletivo, contou que o Carrefour estava avaliando instantaneamente o aparecimento do nome da empresa nas redes sociais, assim como na imprensa. “Ao detectarem o nosso comunicado divulgado nas redes sociais, citando o Carrefour, colocaram funcionários na cola”, revelou. A Educafro entende que a transmissão era legítima.
“Entendemos que o sigilo de uma audiência, quando necessário, tem por objetivo defender e proteger a vítima. Nesse caso, a vítima somos nós, os afro-brasileiros. Nós tínhamos certeza de que publicizar era uma maneira eficiente de nos protegermos”, defende Frei David.
Em sua defesa, o Carrefour apelou para a confidencialidade, dizendo entender que “a evolução das conversas seria mais produtiva e eficiente se discutida entre as partes”.
Para Bruno Candido Sankofa, advogado especialista em direito Antidiscriminatório, ‘a violação é coletiva, o interesse coletivo está evidentemente presente, portanto não se aplicaria a confidencialidade’. “A Lei 13.140/2015, do Marco Regulatório da Mediação, combinada com a resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, informam que a confidencialidade compreende o dever de manter sigilo sobre todas as informações obtidas na sessão, a não ser que as partes autorizem a publicidade, o sigilo viole a ordem pública ou às leis vigentes (…). A Carrefour aparenta uma camuflagem no problema social a partir do sigilo, o que tem sido prática de gestão de marketing negativo de empresas acusadas de atos discriminatórios”, explicou.
À frente da Revista Raça, o diretor Maurício Pestana, que integra o Comitê, acredita que não seja da alçada dos membros definir sobre transmissão ou não de reuniões da empresa. “O comitê é propositivo, mas é óbvio que um comitê formado por pessoas como Silvio Almeida, eu, Adriana Barbosa, entre outros, caso não tivéssemos a certeza de que será cumprido tudo que está sendo proposto, inclusive por nós e por mais de 600 entidades de todo o Brasil, não estaríamos lá. E vou mais longe! Diferente do que estamos acostumados a ver no Brasil, tudo lá será colocado a público, não só para que seja acompanhado por nós, mas por toda a sociedade”, pontuou.
A criação do Comitê recebeu críticas da Coalizão Negra por Direitos, que publicou, em dezembro de 2020, uma carta que reúne mais de 150 organizações afirmando que a empresa tem objetivos de “monetizar a vida interrompida tragicamente de João Alberto com a criação de um fundo de igualdade racial de valor irrisório ao lucro da empresa, e, por fim, buscará escamotear sua responsabilidade via comitê”.
Em resposta, o Carrefour, procurado para esta reportagem, define o objetivo do Comitê: “o Carrefour Brasil espera que estas medidas sejam um importante passo de um longo caminho no combate à discriminação racial”. A nota informa ainda que a Companhia continua “atuando firmemente para que todo tipo de discriminação seja combatida todos os dias, para que negros e negras ocupem seus lugares de fala, de trabalho e de respeito na sociedade”. O Carrefour afirmou estar “comprometido em oferecer todo suporte à família do Sr. João Alberto, através de apoio psicológico e financeiro”. O grupo rompeu o contrato com a empresa de segurança Vector no dia seguinte à morte de Beto.
“Um país que é signatário dos pactos internacionais de Direitos Humanos, que produz conhecimento da letalidade no ambiente privado pelo justiçamento com recorte de raça, gênero e origem, não deveria admitir de maneira nenhuma a desvirtuação da norma de sigilo em detrimento do não enfrentamento da violência racial. É o compromisso que se espera não só do judiciário, mas também das empresas que possuem grande parte de suas receitas em um país de maioria populacional negra”, finalizou Sankofa.
Até o fechamento desta reportagem, os membros não foram avisados da nova data de reunião com o Carrefour.