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“Agrotóxicos são ferramentas de racismo ambiental”, denuncia engenheira agrônoma

Audiência pública discute impacto dos agrotóxicos na saúde da população nesta terça-feira (26) no Senado; especialistas e quilombolas destacam que incentivo à agricultura familiar e à agroecologia deveria ser prioridade no país

A imagem mostra quilombolas produzindo seus alimentos saudáveis no roçado em paralelo a um homem usando agrotóxicos em uma plantação.

Foto: Imagem: Vinicius de Araujo / Alma Preta Jornalismo

23 de fevereiro de 2022

O impacto dos agrotóxicos na saúde da população será debatido na próxima terça-feira (26) em audiência pública interativa na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal. Na ocasião, será apresentado o “Dossiê contra o Pacote do Veneno e em defesa da vida”que compila informações contrárias ao uso de agrotóxicos e foi organizado pelas Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Associação Brasileira de Agroecologia e Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.

“A apresentação do dossiê objetiva não apenas documentar todo o processo, como e principalmente, subsidiar técnica e cientificamente as lutas no cenário legislativo nas esferas federal, estadual e municipal, travadas por parlamentares e, sobretudo, pelos movimentos populares e organizações da sociedade civil em defesa da saúde humana e ambiental e da própria democracia”, destaca a justificativa do requerimento para realização do debate, que foi proposto pelo senador Humberto Costa (PT-PE), segundo Agência Senado.

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A audiência pública surge no contexto da tramitação do projeto de lei que muda as regras atuais do registro de agrotóxicos e foi aprovado no dia 9 de fevereiro na Câmara dos Deputados. Depois de 20 anos do andamento do processo, ele aguarda agora apreciação pelo Senado.

Diante dessa legislação considerada mais permissiva à entrada de agrotóxicos no Brasil, quilombolas e especialistas apontam que iniciativas de incentivo à agricultura familiar deveriam ser a preocupação principal do país.

“É possível, sim, produzir muitos alimentos sem usar o agrotóxico. Nós, do Quilombo Ivaporunduva, já somos um exemplo, mas as comunidades quilombolas no geral produzem muitos alimentos sem nenhum tipo de agrotóxico”. É o que afirma Laudessandro Marinho da Silva, educador social e morador do Quilombo Ivaporunduva.

O quilombola conta que sua comunidade optou por ter uma certificação orgânica desde 2003, a qual proíbe o uso de qualquer defensivo agrícola no território, localizado na região do Vale do Ribeira, maior remanescente de Mata Atlântica em todo o país.

Por meio do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ), conjunto de saberes ancestrais aplicados no cultivo de alimentos, a comunidade de Ivaporunduva e outros quilombos da região conseguem produzir alimentos suficientes também para pessoas de fora do território.

Durante a pandemia, a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) enviou quase 333 toneladas de alimentos saudáveis produzidos por quilombolas da região para mais de 43 mil famílias em vulnerabilidade nas cidades de Eldorado, Jandira, Cananéia, Iporanga e São Paulo/Favela São Remo.

Quilombo Ivaporunduva

Produção agrícola no Quilombo Ivaporunduva | Crédito: Acervo pessoal de Laudessandro

“A gente está dentro de uma região da Mata Atlântica onde temos várias nascentes de rio, além do Rio Ribeira de Iguape. Então a gente preserva a natureza e também busca uma melhor qualidade de vida dos produtos saudáveis, não só para o nosso consumo, mas também para colocar produtos no mercado”, acrescenta Laudessandro.

Um argumento muito presente na defesa dos agrotóxicos é o de que o uso desses produtos é indispensável para a produção do volume de alimentos atuais e sua ausência geraria riscos à segurança alimentar.

Segundo a quilombola, engenheira agrônoma e mestre em Saúde Pública, Fran Paula, há uma narrativa muito grande que associa o uso de agrotóxicos como essenciais para a agricultura, o que, segunda ela, não é uma verdade já que a agricultura agroecológica é muito produtiva.

“A exemplo disso, nós temos os sistemas agrícolas tradicionais, que mantêm sua produção. O Brasil é um dos maiores produtores da América do Sul de arroz orgânico e açúcar orgânico de grande escala. O agrotóxico não se trata do que a agricultura precisa, se trata apenas do que a indústria tem para oferecer e colocar no mercado”, explica a engenheira agrônoma.

‘Pacote do Veneno’ ou ‘Lei do Alimento mais Seguro’?

O Projeto de Lei 6299 teve como autor em 2002 o então senador federal Blairo Maggi, um dos maiores representantes produtores de sojas do Brasil. Apelidado por parlamentares favoráveis de “Lei do Alimento Mais Seguro”, o ponto central atendido pelo PL é a aceleração do registro de agrotóxicos no país, que passam a ter seu trâmite de fiscalização e análise centralizado apenas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

Atualmente, a aprovação dos produtos é condicionada à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que analisa possíveis danos à saúde humana, ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que avalia os impactos ambientais, e também ao Mapa, que analisa a eficiência dos produtos e formaliza o registro após aval dos outros dois órgãos. Com a nova regra, a Anvisa e o Ibama se tornam órgãos consultivos nessa liberação.

Além disso, o projeto de lei também aumenta a multa por mau uso de agrotóxico e prevê um limite de dois anos para a análise do pesticida e expedição do parecer sobre o registro. Caso esse prazo não seja cumprido, deve haver a concessão de um registro temporário pelo órgão registrante.

Alguns argumentos favoráveis ao PL defendem que a mudança possibilitaria a entrada de produtos mais modernos e sustentáveis no país, já que o prazo de liberação se encurtaria diante de um tempo atual que pode ultrapassar oito anos.

De acordo com Yamila Goldfarb, geógrafa e vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), é importante considerar que o Brasil já tem uma legislação para agrotóxicos muito permissiva.

“A gente já permite agrotóxicos que são banidos em vários países e uma maior quantidade de resíduos. A nossa lei é muito permissiva e não seria necessário do ponto de vista econômico uma mais permissiva do que é. Então essa lei é muito fruto do lobby das indústrias produtoras de agrotóxicos que quer usar o Brasil como escoadouro de pesticidas que não são vendáveis em outros países com legislações mais restritivas”, explica a geógrafa.

Segundo a vice-presidente da Abra, a liberação de agrotóxicos tem que ser feita a partir de critérios científicos rigorosos que levem em conta a saúde animal, humana e ambiental. Assim, o projeto de lei apelidado por grupos desfavoráveis como “Pacote do Veneno” não vai só aumentar a quantidade de agrotóxicos aprováveis, como também concentrar a avaliação deles em um órgão em que o interesse econômico pode se sobrepor à segurança pública, ambiental e humana.

“É uma mentira essa ideia de que o agrotóxico é utilizado para produção de comida. Embora ele seja também utilizado na produção de produtos que são de fato a comida que vai na mesa das pessoas, a grande parte está indo para as commodities. É para produção de soja, milho, eucalipto, algodão e cana-de-açúcar, por exemplo. São essas as culturas que têm maior interesse no aprovação”, destaca Yamila.

Impacto aos quilombolas e aos direitos humanos

Quilombolas de Volta Miuda

Território Quilombola de Volta Miúda enfrenta batalhas contra empresa de celulose na defesa de suas terras | Foto: Arquivo pessoal – Celio Leocádio

O Governo Bolsonaro é recordista em aprovações de uso de agrotóxicos no Brasil. Desde o começo do mandato, o governo Bolsonaro publicou a aprovação de 1682 novos produtos agrotóxicos, de acordo com o Robotox, projeto da Agência Pública e Repórter Brasil para monitorar os registros no Diário Oficial da União. A atual gestão detém pelo menos 40% de registros desses produtos na história do país.

De acordo com a engenheira agrônoma Fran Paula, hoje existem várias pesquisas e dados científicos que comprovam a relação da exposição de agrotóxicos a diversas doenças, como o câncer. Os agrotóxicos também representam um dos principais fatores que levam à perda da biodiversidade, que gera mais desequilíbrio ecológico e ambiental.

Além disso, segundo Fran Paula, o problema dos agrotóxicos é de dimensão global, já que a indústria que movimenta o mercado investe em ações de comercialização de pesticidas altamente tóxicos em países do Sul Global, como o Brasil e África. Há inclusive denúncias que apontam violações de direitos humanos envolvendo o uso do produto.

“É comum a gente se deparar com denúncias do uso de agrotóxicos como uma arma química contra populações negras, indígenas, comunidades rurais negras e quilombolas em diversos territórios brasileiros. Isso é uma ferramenta do racismo ambiental. O agrotóxico sendo utilizado para expulsar famílias dos seus territórios e também privá-los ao meio ambiente saudável à medida que o uso dessas substâncias tem contaminado as fontes de água e os rios que são fundamentais para o abastecimento dessas comunidades e desses quilombos”, pontua a engenheira agrônoma.

Fran Paula conta que, recentemente, coordenou uma pesquisa no Pantanal em comunidades quilombolas que estão expostas a agrotóxicos devido ao avanço do agronegócio sobre os seus territórios, que recebem plantios de monocultivos de soja e intensa pulverização terrestre e aérea de agrotóxicos.

Na pesquisa, com a análise de resíduos de agrotóxicos nas águas das comunidades quilombolas, foram detectadas até nove tipos de ingredientes ativos de pesticidas presentes nas águas de rios dos poços artesianos, na água da chuva e tanques de pisciculturas, o que impacta a saúde das famílias.

É também o que acontece no Território Quilombola de Volta Miúda, no município de Caravelas, no Extremo Sul da Bahia, que foi cercado pelo monocultivo de eucalipto por empresa de celulose. De acordo com Celio Leocádio, atual presidente da Associação Quilombola de Volta Miúda (APRVM), a comunidade é impactada à medida em que há uma perda da biodiversidade da região.

Segundo Celio, são águas contaminadas, córregos que deixaram de existir e mortandade de abelhas, o que causou a desativação da casa de beneficiamento do mel que possuem.

“A gente está ilhado pelo eucalipto em torno da nossa comunidade, então a empresa de celulose faz todo o combate do tratamento da monocultura dela pra qualquer tipo de praga. Assim, os insetos e predadores saem da plantação de eucalipto e vem para as pessoas da comunidade que fazem seus plantios”, afirma Celio, que explica que isso leva até alguns quilombolas da região a se verem na necessidade de usar agrotóxicos.

De acordo com Celio Leocádio, antes a comunidade quilombola conseguia plantar seus alimentos de acordo com as estações do ano e de forma mais natural. “Hoje a gente não tem mais nada natural por conta dessa maneira que fomos impactados na nossa vida cotidiana”, ressalta.

Leia mais: Estudo aponta sucateamento generalizado de políticas sociais no Brasil

Alternativas quilombolas para segurança alimentar

Quintais quilombolas e Fran Paula

Quintais quilombola no Pantanal – MT | Crédito: Acervo pessoal de Fran Paula

De acordo com Fran Paula, a produção de alimentos fica sob a responsabilidade dos agricultores familiares que produzem em sua maioria em sistemas diversificados com mais equilíbrio e menos utilização de agrotóxicos.

“Quanto menos agrotóxicos, mais segurança alimentar a população brasileira tem. Os agrotóxicos são um dos fatores que leva à insegurança alimentar e nutricional da população à medida que contém resíduos de produtos químicos que provocam o adoecimento da população brasileira”, explica a também mestre em Saúde Pública.

O conhecimento ancestral envolvido nas produções das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, por exemplo, se apresentam como uma outra lógica possível e mais saudável para a produção de alimentos. O quilombola Laudessandro Marinho conta que as produções do Quilombo Ivaporunduva são pensadas para se integrarem ao ambiente ao redor, com soluções de defensivos naturais oferecidos pela própria natureza.

“A gente tem que saber adaptar a planta que a gente vai consumir e vender ao sistema da mata. Plantamos de acordo com a lua para que as pragas e ervas daninhas não ataquem tanto. Plantamos em lugares em que vai ter bastante árvores para proteger de quedas, para poder fazer também a adubação e o controle natural de irrigação também. A gente planta algum tipo de folha que também exala algum cheiro que espanta insetos”, exemplifica Laudessandro.

Celio Leocádio também ressalta a importância de existirem treinamentos para as comunidades de forma que elas possam implementar estratégias de combate saudáveis em suas produções.

Roçados quilombolas

Falta um projeto político que priorize a segurança alimentar | Crédito: Acervo pessoal de Fran Paula

No Território Quilombola de Volta Miúda, existem pessoas que aprenderam a fazer uma calda natural de folhas do fumo para espantar insetos de plantações. A Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, dava esse suporte para a comunidade, mas hoje está praticamente desativada.

De acordo com Yamila Goldfarb, o que tem acontecido no Brasil e no mundo é que se está deixando de produzir alimento para produzir commodities. “O problema não é que falta agrotóxico para produção de alimentos, o que falta é um projeto político econômico de zoneamento ecológico e econômico no país que priorize a segurança alimentar”, destaca a vice-presidente da Abra.

Há um projeto de lei de iniciativa popular de 2016 chamada Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA) que visa uma redução gradual do uso de agrotóxicos e estimula a transição orgânica e agroecológica. “Se a gente quer controlar e reduzir os impactos dessas substâncias, precisa restringir a utilização e implantar imediatamente uma política para redução de agrotóxicos no país”, finaliza Fran Paula, que também integra a coordenação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.

Serviço

A audiência pública interativa na Comissão de Direitos Humanos para apresentação do ‘Dossiê contra o Pacote do Veneno e em defesa da vida’ acontece às 9h da próxima terça-feira (26) na sala 2 da Ala Senador Nilo Coelho, Plenário nº 2, em Brasília, com transmissão online na TV Senado.

O evento será interativo e os cidadãos podem enviar perguntas e comentários pelo telefone da Ouvidoria do Senado (0800 061 2211) ou pelo Portal e‑Cidadania, que podem ser lidos e respondidos pelos senadores e debatedores ao vivo.

Leia também: Quilombolas de Sergipe denunciam retaliação do Incra a servidor público

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