Em cada canto das cidades nos deparamos com nomes de ruas, pontos turísticos e monumentos que homenageiam figuras geralmente associadas com o passado histórico do Brasil. No entanto, em uma história marcada pela colonização e exploração do povo negro e indígena, avenidas com nomes de princesas, duques e estátuas de homens brancos ainda podem carregar contextos marcados pela exploração de povos originários e tradicionais do país.
Em Salvador, que durante os séculos XV e XIX foi o segundo maior porto de desembarque de africanos nas Américas, casarões, prédios, ruas e estátuas ainda levam nomes de pessoas ligadas ao tráfico de africanos escravizados, como o do português Conde Joaquim Pereira Marinho, considerado um dos maiores traficantes de escravizados na Bahia, e do Barão de Cotegipe, proprietário de terras e antiabolicionista.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Mesmo após 172 anos da extinção do tráfico negreiro e de 134 anos da abolição da escravidão, a representação de nomes como esses pela cidade ainda escancaram uma ferida aberta.
Pensando em provocar novas narrativas na cidade mais negra fora da África, projetos em Salvador buscam mapear e proibir monumentos e homenagens ligadas à escravidão e movimentos contrários aos direitos humanos. Nesse sentido é que surge o projeto Salvador Escravista, um coletivo formado por historiadores, pesquisadores e especialistas que mapeiam pontos históricos da cidade que homenageiam pessoas associadas à morte e exploração de pessoas negras e povos originários.
“Qualquer homenagem que se faça é a construção de uma narrativa do seu passado. A manutenção de estátuas, homenagens e nomes de logradouros públicos de traficantes de escravos, indígenas e colonizadores […] foram subterfúgios para que senhores de terra – engenhos, pecuaristas – mantivessem o trabalho escravo ao longo dos quatro séculos, desde a Colônia até o final do Império, e está aí a ferida aberta até hoje”, diz Cândido Domingues, historiador e integrante do projeto.
Leia também: Fogo na estátua de Borba Gato reacende debate sobre manutenção de monumentos racistas
No site do projeto é possível encontrar um mapa de Salvador com nomes de espaços, monumentos e casarões que fazem referência a figuras problemáticas, além do contexto histórico colonial que marcam esses lugares e as pessoas homenageadas.
Ao todo, o site conta com quatro listas: “Homenagens controversas”, “Homenagens reparadoras”, “Lugares esquecidos” e “Lugares de memória”, que trazem estudos de especialistas sobre o passado escravista em Salvador e dos espaços que foram tomados pelos colonizadores. No site, um mapa indica mais de 30 locais em Salvador, entre homenagens controversas, reparadoras e lugares de memória.
Para o historiador, os questionamentos feitos atualmente sobre homenagens a um passado colonial e genocida são fruto de um processo de luta dos movimentos sociais, que buscam cobrar reparação e protagonismo sobre as suas próprias narrativas.
“É primordial para o Estado escolher os seus heróis e nessas escolhas de heróis, nem todo grupo social vai estar contemplado, principalmente porque as Américas têm a sua história marcada na escravidão dos povos africanos e indígenas”, explica Cândido Domingues, que também é professor da história do Brasil na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e pesquisa sobre a história do tráfico escravo na Bahia.
Durante o processo de mapeamento do projeto, os pesquisadores descobriram que as maiores homenagens reparadoras estão na região do Subúrbio de Salvador, composta por cerca de 90% da população negra.
“Aqui a gente tem várias travessas 13 de maio, principalmente no Subúrbio. A estátua de Luiz Gama está no bairro do Retiro, [a rua] Revolução dos Malês está na Liberdade… Então, no paradoxo, acaba que – se pensarmos numa história mais recente – a gente percebe o movimento dessas populações buscarem renomear a cidade”, comenta Cândido Domingues.
Reparação histórica
No campo político, a busca por reparação histórica e simbólica também tem sido provocada. Na Assembleia Legislativa da Bahia, parlamentares negros e negras em prol dos direitos humanos buscam condenar o passado de violência que ainda hoje vulnerabiliza e impõe marcadores de desigualdades sociais à população negra.
Em fevereiro deste ano, a deputada Olívia Santana (PCdoB), primeira deputada negra da Bahia, e o deputado Ubirajara Coroa (PT), conhecido como Bira Corôa, apresentaram um projeto de lei (PL) que busca proibir homenagens e monumentos a escravocratas, defensores do Golpe Militar, nazistas e neonazistas a bens públicos, escolas, prédios e rodovias da Bahia. Segundo os parlamentares, o mantimento de nomes que remetem à escravidão significa a manutenção do sofrimento e da violência praticados por séculos contra as pessoas negras.
“No Brasil o racismo é estrutural, fruto de nosso passado escravista. Ele nos legou uma cultura avessa às pessoas negras, com uma elite preconceituosa, que enaltece personalidades e autoridades ligadas a um passado escravagista e excludente”, argumenta a deputada Olívia Santana na apresentação do PL.
Um dos artigos do projeto de lei também pede a renomeação de prédios, locais públicos estaduais e rodovias cujos nomes estão ligados ao contexto tratado no PL, válido também para a retirada de estátuas e monumentos que prestam homenagem a escravocratas. Atualmente, o PL está encaminhado à Secretaria Geral da Mesa.
“A escravatura durou no Brasil quase 400 anos, marcada por toda sorte de violações de direitos humanos e práticas abomináveis de subjugação de vários povos africanos. Sua abolição não assegurou condições materiais de vida e de trabalho para os libertos, ao revés, gerou uma comunidade desprovida de condições mínimas de subsistência, fato que repercute até os dias atuais, em todas as esferas sociais, econômicas, políticas e no tratamento que a sociedade dispensa às pessoas negras”, cita a parlamentar.
Representatividade
O questionamento das figuras que são homenageadas pela cidade já tem causado mudanças na capital baiana. No início do ano, a prefeitura de Salvador sancionou um projeto de lei que alterou o nome da Avenida Adhemar de Barros para Avenida Milton Santos, em homenagem ao geógrafo baiano considerado como um dos principais intelectuais do século 20.
Nas redes sociais, a campanha Avenida Milton Santos defendia a alteração do nome, já que o político paulista Adhemar de Barros era uma figura problemática: foi apoiador do regime militar e teve a carreira repleta por escândalos de corrupção, além disso, ele não tinha nenhuma relação histórica com Salvador.
Para além da troca do nome, a alteração da Avenida Adhemar de Barros para Milton Santos trouxe mudanças simbólicas e representativas, isso porque a região abriga o maior campus da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde o geógrafo lecionou e dedicou grande parte dos seus estudos.
“Quando a gente fala em demarcar os espaços da história negra e indígena em Salvador, é dar uma outra narrativa dessa cidade para os povos negros que habitam aqui, que é de 80% da população”, completa o historiador Cândido Domingues.
Leia também: Rio de Janeiro vai mapear roteiros turísticos de cultura negra