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Em Salvador, projetos levantam discussão sobre monumentos ligados à escravidão

Em um país marcado pela exploração e genocídio da população negra e indígena, iniciativas buscam mapear e vetar narrativas construídas a partir da colonização

Imagem enquadra a estátua de Cristóvão Colombo sobre uma pilastra

Foto: Foto: Felipe Azevedo e Souza

21 de abril de 2022

Em cada canto das cidades nos deparamos com nomes de ruas, pontos turísticos e monumentos que homenageiam figuras geralmente associadas com o passado histórico do Brasil. No entanto, em uma história marcada pela colonização e exploração do povo negro e indígena, avenidas com nomes de princesas, duques e estátuas de homens brancos ainda podem carregar contextos marcados pela exploração de povos originários e tradicionais do país.

Em Salvador, que durante os séculos XV e XIX foi o segundo maior porto de desembarque de africanos nas Américas, casarões, prédios, ruas e estátuas ainda levam nomes de pessoas ligadas ao tráfico de africanos escravizados, como o do português Conde Joaquim Pereira Marinho, considerado um dos maiores traficantes de escravizados na Bahia, e do Barão de Cotegipe, proprietário de terras e antiabolicionista.

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conde pereira marinho FGMsiteConde Pereira Marinho, considerado um dos maiores traficantes de escravo da Bahia | Foto: Fundação Gregório de Matos

Mesmo após 172 anos da extinção do tráfico negreiro e de 134 anos da abolição da escravidão, a representação de nomes como esses pela cidade ainda escancaram uma ferida aberta.

Pensando em provocar novas narrativas na cidade mais negra fora da África, projetos em Salvador buscam mapear e proibir monumentos e homenagens ligadas à escravidão e movimentos contrários aos direitos humanos. Nesse sentido é que surge o projeto Salvador Escravista, um coletivo formado por historiadores, pesquisadores e especialistas que mapeiam pontos históricos da cidade que homenageiam pessoas associadas à morte e exploração de pessoas negras e povos originários.

“Qualquer homenagem que se faça é a construção de uma narrativa do seu passado. A manutenção de estátuas, homenagens e nomes de logradouros públicos de traficantes de escravos, indígenas e colonizadores […] foram subterfúgios para que senhores de terra – engenhos, pecuaristas – mantivessem o trabalho escravo ao longo dos quatro séculos, desde a Colônia até o final do Império, e está aí a ferida aberta até hoje”, diz Cândido Domingues, historiador e integrante do projeto.

Leia também: Fogo na estátua de Borba Gato reacende debate sobre manutenção de monumentos racistas

No site do projeto é possível encontrar um mapa de Salvador com nomes de espaços, monumentos e casarões que fazem referência a figuras problemáticas, além do contexto histórico colonial que marcam esses lugares e as pessoas homenageadas.

Ao todo, o site conta com quatro listas: “Homenagens controversas”, “Homenagens reparadoras”, “Lugares esquecidos” e “Lugares de memória”, que trazem estudos de especialistas sobre o passado escravista em Salvador e dos espaços que foram tomados pelos colonizadores. No site, um mapa indica mais de 30 locais em Salvador, entre homenagens controversas, reparadoras e lugares de memória.

Para o historiador, os questionamentos feitos atualmente sobre homenagens a um passado colonial e genocida são fruto de um processo de luta dos movimentos sociais, que buscam cobrar reparação e protagonismo sobre as suas próprias narrativas.

“É primordial para o Estado escolher os seus heróis e nessas escolhas de heróis, nem todo grupo social vai estar contemplado, principalmente porque as Américas têm a sua história marcada na escravidão dos povos africanos e indígenas”, explica Cândido Domingues, que também é professor da história do Brasil na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e pesquisa sobre a história do tráfico escravo na Bahia.

Durante o processo de mapeamento do projeto, os pesquisadores descobriram que as maiores homenagens reparadoras estão na região do Subúrbio de Salvador, composta por cerca de 90% da população negra.

“Aqui a gente tem várias travessas 13 de maio, principalmente no Subúrbio. A estátua de Luiz Gama está no bairro do Retiro, [a rua] Revolução dos Malês está na Liberdade… Então, no paradoxo, acaba que – se pensarmos numa história mais recente – a gente percebe o movimento dessas populações buscarem renomear a cidade”, comenta Cândido Domingues.

Reparação histórica

No campo político, a busca por reparação histórica e simbólica também tem sido provocada. Na Assembleia Legislativa da Bahia, parlamentares negros e negras em prol dos direitos humanos buscam condenar o passado de violência que ainda hoje vulnerabiliza e impõe marcadores de desigualdades sociais à população negra.

Em fevereiro deste ano, a deputada Olívia Santana (PCdoB), primeira deputada negra da Bahia, e o deputado Ubirajara Coroa (PT), conhecido como Bira Corôa, apresentaram um projeto de lei (PL) que busca proibir homenagens e monumentos a escravocratas, defensores do Golpe Militar, nazistas e neonazistas a bens públicos, escolas, prédios e rodovias da Bahia. Segundo os parlamentares, o mantimento de nomes que remetem à escravidão significa a manutenção do sofrimento e da violência praticados por séculos contra as pessoas negras.

“No Brasil o racismo é estrutural, fruto de nosso passado escravista. Ele nos legou uma cultura avessa às pessoas negras, com uma elite preconceituosa, que enaltece personalidades e autoridades ligadas a um passado escravagista e excludente”, argumenta a deputada Olívia Santana na apresentação do PL.

Um dos artigos do projeto de lei também pede a renomeação de prédios, locais públicos estaduais e rodovias cujos nomes estão ligados ao contexto tratado no PL, válido também para a retirada de estátuas e monumentos que prestam homenagem a escravocratas. Atualmente, o PL está encaminhado à Secretaria Geral da Mesa.

“A escravatura durou no Brasil quase 400 anos, marcada por toda sorte de violações de direitos humanos e práticas abomináveis de subjugação de vários povos africanos. Sua abolição não assegurou condições materiais de vida e de trabalho para os libertos, ao revés, gerou uma comunidade desprovida de condições mínimas de subsistência, fato que repercute até os dias atuais, em todas as esferas sociais, econômicas, políticas e no tratamento que a sociedade dispensa às pessoas negras”, cita a parlamentar.

Representatividade

O questionamento das figuras que são homenageadas pela cidade já tem causado mudanças na capital baiana. No início do ano, a prefeitura de Salvador sancionou um projeto de lei que alterou o nome da Avenida Adhemar de Barros para Avenida Milton Santos, em homenagem ao geógrafo baiano considerado como um dos principais intelectuais do século 20.

busto milton santos betto jr secom pref Além da mudança do nome, a Avenida conta com um busto em homenagem a Milton Santos, colocado na entrada principal do campus da UFBA | Foto: Betto Jr/Secom Prefeitura de Salvador

Nas redes sociais, a campanha Avenida Milton Santos defendia a alteração do nome, já que o político paulista Adhemar de Barros era uma figura problemática: foi apoiador do regime militar e teve a carreira repleta por escândalos de corrupção, além disso, ele não tinha nenhuma relação histórica com Salvador.

Para além da troca do nome, a alteração da Avenida Adhemar de Barros para Milton Santos trouxe mudanças simbólicas e representativas, isso porque a região abriga o maior campus da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde o geógrafo lecionou e dedicou grande parte dos seus estudos.

“Quando a gente fala em demarcar os espaços da história negra e indígena em Salvador, é dar uma outra narrativa dessa cidade para os povos negros que habitam aqui, que é de 80% da população”, completa o historiador Cândido Domingues.

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