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Em Salvador, trancistas buscam regulamentação da profissão

Entre as reivindicações das trancistas estão a inclusão da atividade na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) e o estabelecimento de um piso salarial
Ilustração mostra uma mão negra que trança o cabelo de uma pessoa negra

Foto: @sweetilustra/Alma Preta

29 de novembro de 2023

Considerado uma expressão cultural secular e ancestral, o trabalho das trancistas mantém vivo o legado da beleza, tradição e resistência da população negra e há anos tem se transformado em arte e fonte de renda, principalmente para as mulheres negras.

No entanto, as profissionais que realizam esse trabalho, muitas vezes feito de forma autônoma, ainda enfrentam desafios como a desvalorização do ofício e falta de medidas que garantam direitos a essa categoria.

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Diante disso, um movimento de trancistas de Salvador, em articulação com a vereadora Ireuda Silva (Republicanos) busca a regulamentação da profissão de trancista como forma de promover condições de trabalho mais favoráveis às profissionais.

Trancista e empresária, Denise Melo teve contato com as tranças ainda dentro da família. Enquanto uma criança negra, ela tinha os cabelos trançados pela avó e pela mãe quando teve o interesse de aprender a técnica e passou a fazer tranças no cabelo das primas e amigas.

Em 2015, após ser demitida, ela decidiu transformar a paixão pelas tranças em profissão e abriu o seu próprio negócio: a empresa Baiana Braids. Para divulgar seu trabalho, Denise saia pelas ruas de Salvador distribuindo cartões e banners. Atualmente, a empresária é considerada um dos grandes nomes do ramo de beleza afro e cursos de formação para trancistas da capital baiana.

Ganhadora do prêmio Trancista Master em 2021 e com mais de 2,5 mil alunos formados, Denise considera que o trabalho como trancista foi uma “salvação” na sua carreira. Para ela, é importante que a categoria seja reconhecida já que se trata de uma das profissões mais antigas e significativas para a cultura negra.

“Infelizmente, como não temos ainda essa regulamentação, ainda não temos esse reconhecimento como profissão e estamos lutando para que isso seja feito. Será importantíssimo para nossa categoria onde a gente vai poder assinar uma carteira, ter todos os direitos que um trabalhador normal tem, piso salarial, reconhecimento, um orgulho”, comenta a trancista e empresária.

Denise Melo (ao meio) é trancista e empresária na Baiana Braids. Foto: Arquivo Pessoal

Integrante do movimento que busca pela regulamentação das trancistas, Denise aponta que uma das reivindicações da categoria é a atenção à saúde das profissionais, que acabam contraindo lesões por causa do trabalho manual, além da determinação de um piso salarial.

“Algumas trancistas que trabalham na área têm uma certa dificuldade de colocar preço e precificar os seus serviços porque não temos um piso salarial, não temos um um valor exato para cobrar nas nossas artes, e acabamos tendo que aceitar o que as pessoas acham que é justo”, comenta.

Articulação

Desde outubro, a vereadora Ireuda Silva tem realizado reuniões extraordinárias com a categoria em busca de debater a importância cultural e econômica das trancistas no Brasil.

“Tudo começou há mais ou menos três anos, quando a empresária Anna Telles, que é uma profissional do ramo, me procurou propondo que eu contribuísse com as demandas das trancistas. Foi a partir daí que passei a estudar o assunto com mais atenção. Mas essa é uma causa que me toca profundamente como mulher preta há muito tempo”, afirma a vereadora em entrevista à Alma Preta Jornalismo.

A partir dos encontros, as trancistas elaboraram um manifesto que solicita a inclusão da atividade na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) e na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE).

“A inclusão na CBO e no CNAE representa um marco na regulamentação da profissão, possibilitando a estipulação de um salário base, assegurando direitos legais e promovendo condições de trabalho mais favoráveis. Além disso, essa medida oferece o respaldo jurídico fundamental para promover a dignidade das trancistas”, explica Ireuda.

A vereadora Ireuda Silva (ao centro, na primeira fileira abaixo) tem promovido encontros com a categoria. Foto: Divulgação

Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e vice-presidente da Comissão de Reparação da Câmara, Ireuda Silva também é autora do projeto de lei (PL) 277/2023, que tem como finalidade reconhecer a profissão de trancista como patrimônio cultural imaterial de Salvador.

“A arte trancista é patrimônio cultural imaterial há muito tempo, mas sem a devida oficialização. Com esse reconhecimento, acreditamos que o ofício ganhará maior visibilidade e apoio da sociedade, do poder público e até respaldo legal, considerando que as trancistas ainda lutam para ter os mesmos direitos que qualquer outro tipo de empreendedor ou trabalhador devidamente regulamentado no Brasil”, argumenta.

Atualmente, o texto do PL está em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça sob o aguardo da decisão do relator. Neste ano, a prefeitura sancionou o Dia da Pessoa Trancista em Salvador, comemorado em 6 de junho.

Reconhecimento

Assim como Denise Melo, a relação de Michele Reis com as tranças começou ainda na juventude. Sem oportunidade de emprego formal, a trancista passou a fazer os trabalhos a domicílio e depois resolveu abrir um salão.

Com a chegada da pandemia, ela teve que fechar o estabelecimento e decidiu criar o perfil “Fala Trancista” no Instagram, espaço onde começou com publicações de desabafos e experiências da sua vivência como trancista.

Atualmente com 149 mil seguidores, o perfil é considerado um porta-voz para as trancistas do Brasil e conta com um catálogo de indicação de profissionais em mais de dez estados. Além do trabalho na internet, Michele promove cursos e consultorias para as profissionais.

“Eu acho importante trazer esse reconhecimento para a regulamentação da nossa profissão para que muitas trancistas possam viver como profissional de verdade. A trança proporciona muitas coisas: eu paguei faculdade fazendo trança, eu criei a minha filha fazendo trança, ajudei a minha família e hoje, realmente, é uma profissão de verdade”, avalia a empresária.

A trancista e empresária Michele Teles é proprietária da página “Fala Trancista”, que conta com 149 mil seguidores no Instagram. Foto: Arquivo Pessoal

Uma das profissionais à frente da regulamentação das trancistas, Michele Reis pontua que é preciso que a prefeitura realize iniciativas voltadas para o reconhecimento desse público.

“Para mim, essa é uma mudança e tanta e deve ser levada em consideração porque a gente movimenta a economia do país e aqui em Salvador eu creio que essa regulamentação vai levar uma autoestima para essas trancistas para trazer mais confiança e fazer com que os clientes valorizem mais o nosso trabalho”.

Apoio

Diante das reivindicações das trancistas, a vereadora Ireuda Silva (Republicanos) esteve em Brasília (DF) em outubro deste ano e entregou ao ministro do Trabalho, Luiz Marinho, um manifesto e um abaixo-assinado com as demandas das trancistas que buscam pela regulamentação da profissão.

Na reunião, a vereadora citou a importância econômica e cultural das trancistas, além de medidas de amparo, incentivo e proteções legais para as profissionais. A ação também recebeu o apoio da deputada federal Rogéria Santos (Republicanos-BA).

“Ele [o ministro] recebeu as demandas, contidas em um manifesto assinado pelas trancistas, e prometeu se debruçar sobre a questão e dar encaminhamento o quanto antes. Agora, depende do governo federal. Esperamos ter uma resposta até o final do ano”, comenta a vereadora.

Processo

À Alma Preta Jornalismo, o Ministério do Trabalho e Emprego informou que o processo já está em análise pela equipe da Subsecretaria de Estatísticas Estudos do Trabalho (SEET) e que o procedimento dura, em média, de oito a 12 meses.

Segundo o Ministério, através da Subsecretária da SEET, Paula Montagner, a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) está prevista na portaria 671/21 e tem como objetivo “identificar e codificar as ocupações existentes no mercado de trabalho brasileiro, para fins classificatórios, sem efeitos de Regulamentação Profissional”.

A pasta pontua que o reconhecimento como ocupação não traz diretamente direitos/deveres ao trabalhador e que as informações são utilizadas em bases de dados voltadas para mapear as informações sobre o mercado de trabalho do país.

Durante o processo da CBO, a pasta realiza um painel de entrevista junto com as/os profissionais da área para mapear e descrever as atividades desempenhadas pela categoria, que são aprimoradas por instituições patronais, de trabalhadores e ensino de cada Grupo Ocupacional.

“Outros passos precisam ser avançados no sentido da construção de Associações Profissionais que representem os direitos das trabalhadoras, e eventualmente avaliar se a ocupação precisa de registro profissional e como estas profissionais poderiam buscar contribuir para o sistema de seguridade social, o que as beneficiaria em termos de acesso à previdência e assistência social”, explica o Ministério.

A pasta também explica que o processo de regulamentação profissional não é de competência do Ministério do Trabalho e é feito através de projeto de lei no Congresso Nacional e sancionada pelo Executivo.

“Vale lembrar que ao ser regulamentada, a atividade profissional passa a ter uma legislação própria, que define deveres e garantias para os profissionais, bem como a fiscalização de suas atividades”, cita um trecho da nota enviada à reportagem.

Já em relação à Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), o Ministério explica que o processo é de responsabilidade/competência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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  • Dindara Paz

    Baiana, jornalista e graduanda no bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade (UFBA). Me interesso por temáticas raciais, de gênero, justiça, comportamento e curiosidades. Curto séries documentais, livros de 'true crime' e música.

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