A política excludente da elite coloca às margens cada vez mais quem é periférico e negro na cidade de São Paulo
Texto / Anna Laura Moura
Imagem / Apu Gomes/Folhapress
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João Dória (PSDB) nos agraciou com um presente em São Paulo: fazer os ônibus chegarem a mais lugares e ampliar o número de assentos. De acordo com o prefeito, a ideia é economizar recursos para custear a compra de veículos mais avançados, com ar-condicionado, rede Wi-Fi e câmeras de monitoramento, além de ampliar a quantidade de ruas onde passam ônibus na capital. A promessa é que os usuários sejam comunicados 15 dias antes da efetivação. A mudança vai ocorrer, segundo a prefeitura, seis meses após a contratação das novas empresas e serão concluídas em até três anos.
Porém, aqui vai a contradição: isso vai acarretar na diminuição do número de linhas em circulação. De 1.336, a cidade passaria a ter 1.187 linhas, 149 a menos. Isso afeta quem mora nas periferias, pois essas pessoas dependem dessas linhas que serão modificadas. Alguns dos mais prejudicados, por exemplo, serão os moradores da Zona Oeste, com um total de 46 linhas modificadas.
Os residentes da favela de Paraisópolis sofrerão com as mudanças: a linha 6412, que faz conexão com a Avenida Paulista, será extinta, exigindo a locomoção para o Terminal Pinheiros, utilizando a partir daí outra condução para acesso do local. Outra linha encerrada será a 856R Lapa/Socorro, que depois da medida, vai exigir do passageiro três baldeações para fazer o trajeto, que antes era somente uma.
Essa mudança deixará nosso caminho ainda mais estreito. Quando digo caminho, além de toda a nossa caminhada política, eu me refiro literalmente ao caminho do cotidiano. Quem é trabalhador de periferia, sabe que andar espremido no ônibus lotado e encarar o trem no horário de pico já faz parte da rotina. A treta é que a gente nunca se acostuma.
Se eu, periférica, usuária junto aos 7,8 milhões de passageiros da CPTM, mas uma jovem de 23 anos que trabalha só 6h/dia já me canso, quem dirá Dona Betânia, moradora de Cotia, que aos 45 anos trabalha das 7h às 21h como diarista no Centro de São Paulo, em um bairro que preferiu não citar. Como se já não bastasse todos os direitos negados, Betânia sofre para ir e vir… aquilo que deveria ser o básico para qualquer cidadão.
O mandato de Dória só tem dificultado. “É hora de voltar pra casa, trabalhador só quer chegar bem”. Rincon Sapiência já havia passado a visão, que quem é rico não olha para o morro. Ainda não fui capaz de entender o conceito de “gestão” de Dória, tampouco seu método de governar. Em um mundo onde se vestir de gari é o máximo que se pode fazer para entender tal realidade, é claro que encurtar os caminhos do povo periférico para construir ônibus mais confortáveis parece ser uma solução viável. Pra eles.
De acordo com o IBGE, em uma pesquisa divulgada em 2016, o número de negros entre os brasileiros da classe alta fica entre 11,4% e 17,8%. Em contrapartida, a população branca ainda lidera esse dado: de dez inseridos na elite, oito são brancos. Aponto para um mais um dado: entre os mais pobres, três a cada quatro são negros. Mais um ainda? Grande parte da população brasileira (54%) é negra, e de cada dez negros de classe baixa, três são mulheres negras. Falando de Betânia, infelizmente inserida nesses dados, também faz parte dos 45,1% de mulheres dentro do mercado de trabalho na Região Metropolitana (periférica), onde mergulhado nesse número 95,4% são serviços domésticos. Mas não pára por aí: além da maioria ser de empregadas domésticas, 52,9% são mulheres negras. Parece que Betânia coleciona números, pena que são estatísticas excludentes e não cifrões em sua conta bancária.
É possível que para os tucanos e toda a elite branca, Dona Betânia seja apenas mais uma estatística ignorada. Para nós, não é só uma estatística, mas um dos diversos galhos de preconceito que somos obrigados a conviver. Betânia é negra, mãe solo de três filhos adolescentes, e, infelizmente, já foi vítima de assédio moral, sexual e físico, como toda mulher brasileira, principalmente as mulheres negras. A diarista pega todos os dias três ônibus, ida e volta, e a pergunta que fica é se o salário cobre pelo menos o preço do transporte que deveria ser público. Repito: quem é rico não olha para o morro.
Ainda temos que ouvir reclamações sobre a Paulista fechada para veículos aos fins de semana. Imagina então protestar na Consolação e fechar o trânsito, para cobrar transporte de qualidade e mais vias de acesso. Que isso! Atrapalhar o direito de ir e vir do cidadão trabalhador usuário da BMW? Afronta. Protesto tem que ser de fim de semana, num domingo à tarde, sem atrapalhar os cidadãos de bem. De ruim, temos nós e mais 4 reais de passagem. Façamos as contas: o salário mínimo em 2018 soma R$ 954,00. Juntamos esses 4 reais ida e volta, lembrando que Betânia utiliza três conduções partida/retorno. Depois, multiplicamos esse valor diário por dias trabalhados no mês. Quanto será que sobra?
Betânia deve perguntar a Deus todos os dias o motivo de não ter asas. Eu e Rincon também fazemos a mesma pergunta. Com a bolsa no ombro os dedos enrugados de lavar louça na água gelada, ela gesticula e diz para mim que é o que se pode fazer. Pergunto a razão, e ouço “não tive estudo, Deus nunca olhou pra mim. Fiz filho e agora tenho que correr atrás dos erros. Como vou estudar se mal consigo ler duas palavras”. Se Betânia soubesse que o erro é de tanta gente, menos dela… o machismo é tão grudento que somos ensinadas a culpar sempre a nós mesmas, nunca os outros, nunca o sistema. Está permitido se isentar, Betânia. Pelo menos dessa vez. A consequência só é transformada em causa pra quem não quer colocar a mão dentro da água suja na pia.
Quem não quer colocar a mão na pia e o pé no chão costuma ser grande admirador de aves, principalmente o tucano! Que ironia. Bicho colorido, bonito, dono de grandes feitos. Bico grande, que diz coisas sem pensar, reproduz pensamentos elitistas, acredita na privatização e se fantasia pra mostrar empatia. Não entrega o que foi prometido, amassa a população dentro de uma caixa de metal velha e diz que faz muito. Mas viver na pele da periferia ninguém quer. Ninguém de dentro do Corolla quer ser Betânia. Tem que ter coragem.
Briefing: Anna Laura Moura, 23 anos, estudante de Jornalismo e militante negra do Coletivo NegraSô (coletivo de negros e negras da PUC) e do Frente Preta Rainha Quelé (coletivo de negros do município de Franco da Rocha)