Texto: Coletivo Cultural Dijeje / Edição de Imagem: Pedro Borges
Nascer com a pele escura não nos torna negros, assim como nascer do sexo feminino, não nos torna mulheres. Tanto a identidade de gênero quanto a identidade racial são construções sociais numa sociedade como a brasileira, profundamente machista e marcadamente racista, onde carregar essas duas marcas não é a melhor tarefa do mundo.
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A minha trajetória pessoal, até o momento em que escrevo esse texto, é marcada por muita dor, mas também de crescimento e mudanças. E decidi compartilhar essa jornada com todas vocês, leitoras da Think Olga, por que acredito que, dividindo o peso, se torna mais leve e por que, juntas, vamos mais longe.
Em 2012, eu entrei no mestrado na PUC-SP, um dos melhores programas de pós graduação em Educação do Brasil. Foi nos elevadores da PUC, que eu entendi o que era ser negra e o valor social que isso tem. Toda minha família é negra, sim é verdade. Meus amigos e amigas de infância também, colegas de escola, as pessoas que eu mais quero bem, como meus filhos. Mas isso nunca, em momento nenhum da minha vida, foi motivo de dor ou vergonha, muito pelo contrário, sempre foi motivo de orgulho, a pele escura e os traços negroides no corpo. Até que, nesses dois anos, como mestranda numa das universidades mais elitizadas de São Paulo, eu entendi e aprendi o que quer dizer SER NEGRA.
Com muita frequência, as outras mulheres brancas, na grande maioria professoras e já senhoras, me perguntavam coisas sobre meu trabalho: “que horas você vai trocar o lixo do banheiro?, “avise para sua chefe que acabou o material de limpeza do banheiro” ou “por que você está sem uniforme?”. Eu não entendia bem de onde elas tiravam a ideia de que eu era faxineira, afinal, lá estava eu com meus livros, mochilas, notebook e olheiras, características típicas de qualquer pós graduando. Um dia, em um bate papo informal com uma professora do meu programa, eu ouvi o seguinte comentário: “Quanto é sua bolsa integral paga pelo Governo, só R$ 1.500? Nossa, minha doméstica ganha mais que isso e ainda é registrada, hein?”. Foi só depois de ouvir isso que entendi qual era a raiz da questão: eu mulher negra, só poderia estar naquele espaço, se fosse como serviçal, como faxineira, como doméstica. Não como uma aluna e nunca como uma professora.
Isso, para mim, foi uma chamada a realidade, uma chamada para a verdade: as mulheres negras no Brasil, valem quase nada, por que são nada. Quem liga para tia da limpeza ou a senhora do café?
Num primeiro momento, eu quis largar o mestrado, faltava menos de um ano para eu terminar, me doía muito voltar pra lá e ter aula com a professora que me humilhou tão duramente. De fato, não consegui terminar a disciplina dela. Mas eu precisava terminar, por que precisava da bolsa integral. Dos R$ 1.500 pagos pelo Governo Federal.
Eu terminei o mestrado com louvor, tirei 9,5 na banca final de defesa e comecei uma jornada em busca do autoconhecimento. Afinal, quem sou eu, mulher negra? Li muita coisa, pesquisei muito coisa, apesar de toda a dor, o mestrado me deu o gosto pelo fazer acadêmico. Nesse processo, conheci Angela Davis e que ler os textos dela é mais do que mera leitura. É um mergulho na visão de mundo dessa mulher extraordinária, ou melhor: dessa mulher negra extraordinária.
Existe no Brasil uma necessidade de aprofundamento sobre o pensamento da Angela Davis e meus dois anos de pesquisa sobre ela me deram um pequeno saber no campo. A partir disso, surgiram convites para palestras, debates e cursos, o que contribuir para o nascimento do Coletivo Di Jejê: um espaço de multiplicação de conhecimento sobre a mulher negra, feito por uma mulher negra, para as mulheres negras.
Em pouco tempo a procura triplicou: de uma turma de 7 pessoas, passei a atender 30 pessoas. Tudo na minha casa mesmo, na minha garagem/quintal. Em 2016, continuamos com os encontros “Vivências sobre a mulher negra” nos formatos presencial e a distância.
A cada encontro, todas aquelas mulheres negras, me traziam força, beleza e resistência para as minhas lutas diárias, para as minhas dores, para os meus medos, para os meus sonhos. Cada mulher negra que me procurava depois, pedindo orientação para sua pesquisa de graduação, para seu projeto de mestrado ou para desabafar uma dor, um sofrimento, alimentavam em mim a certeza de que, mesmo sem saber como, eu deveria continuar.
Me lembro de um curso que ministrei na Universidade Federal de Santa Catarina onde, no final, uma jovem negra da Baixada Fluminense, aluna de robótica, veio me dizer chorando que naquela semana ela havia pensando em se matar, mas que a minha palestra sobre Angela Davis, fez ela perceber que, se eu consegui, ela também vai conseguir superar suas dores. Devo confessar que escrevo isso chorando, por que, no auge das crises na PUC, eu também pensei em me matar.
Conto para vocês toda essa história para dizer que hoje o Coletivo Di Jejê precisa continuar existindo e crescendo, precisa do apoio e a colaboração de todas e todos que acreditam que o conhecimento liberta e emancipa. Liberta das amarras que a sociedade colocou em nossas cabeças, emancipa por que nos ajuda a entender quem somos e o que podemos ser.
Eu acredito nisso, eu vivo por isso. Essa tem sido minha luta, minha jornada nos últimos três anos. Ser a ponte que atravessa qualquer rio e que permite que outras mulheres negras marcadas, assim como eu, pela dor da invisibilidade social e histórica, possam significar suas vidas em prol do crescimento de si mesmas, de seus filhos, de suas comunidades.
Estamos agora iniciando nossa campanha de doação de bolsas para os cursos presenciais e a distância, que serão oferecidos pelo Coletivo Di Jejê em 2017. Você pode contribuir com nosso trabalho por meio de doações de bolsas de estudos ou patrocínio para nossos cursos. Basta preencher o formulário e entramos em contato.
*Jaque Conceição tem 31 anos, é mãe de dois meninos, professora e pesquisadora, filha de santo. Há três anos, fundou o Coletivo Di Jejêeu e, em 2016, é uma das Mulheres Inspiradoras do Think Olga.