Falta de salas de leitura, de bibliotecas e de internet, salas superlotadas, além de alimentação e transporte escolar precário são alguns dos problemas enfrentados por escolas quilombolas no Brasil. Segundo a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), a escassez de dados sobre a educação quilombola e a dificuldade de acesso a essas informações dificultam o monitoramento e a produção de políticas públicas.
“Não tenho dúvidas que a ausência de dados sobre quilombos tem impactado a produção, efetivação e monitoramento de políticas públicas. A ausência de dados só gera ainda mais invisibilidade e negação de direitos”, comenta a educadora Givânia Silva, coordenadora do Coletivo de Educação e cofundadora da Conaq.
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Lucineide Ribeiro de Melo, de 41 anos, tem quatro filhos e mora no Território Quilombola Kalunga do Mimoso, no município de Arraias, no Tocantins. Ela conta que as condições ruins das escolas de ensino fundamental e médio fizeram com que dois de seus filhos saíssem do território para buscarem educação de melhor qualidade em outro local.
A Escola Municipal Eveny da Paula e Souza atende uma média de 30 alunos da 1ª e 2ª fase do ensino fundamental. Conforme relatado pela comunidade e pela Coeqto (Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins), o prédio não tem estrutura para acomodar todos os alunos e parte deles assistem às aulas debaixo de um pé de manga. Quando chove, eles assistem às aulas em uma casinha de palha externa, cuja estrutura não é segura e tem risco de desabamento.
A outra sede escolar da comunidade é de responsabilidade do Estado do Tocantins e atende 18 alunos do ensino médio. Segundo os relatos, a instituição se encontra em condições semelhantes de precariedade de recursos mínimos para funcionamento.
“As escolas sempre tiveram esses problemas. Nunca teve banheiro. Na gestão passada, não tinha nem filtro de água gelada. O teto todo esburacado, onde a água passa e há calor imenso. As paredes todas mofadas. Nenhum prefeito que entra muda essa situação para trazer o conforto de um espaço adequado e maior. Só falam que vão melhorar, mas para eles conseguir colocar um filtro de água e uma internetzinha fraca já é o suficiente”, conta Lucineide.
Escola Municipal Eveny da Paula e Souza em território Kalunga do Mimoso | Crédito: Coeqto
A filha dela, de 16 anos, mudou-se para Goiânia para fazer o ensino médio em uma escola com melhores condições, assim como o filho, hoje com 18 anos, fez anos antes. “Os meninos da escola do estado estudam à tarde. Saem sem almoço, porque nem sempre os pais têm condições de fazer. Quando começam as aulas, a comidinha é fraca e a criança só chega em casa de noite. Minha menina ia de transporte público quase 50 km por dia, chegava em casa quase desmaiada passando mal e com dor de cabeça. Não quis deixar minha filha sofrer mais nessa situação”, conta Lucineide.
De acordo com Evandro Moura, coordenador de educação da Coeqto, a comunidade Kalunga do Mimoso conta com mais de 150 famílias que dependem da escola do território.
“A escola funcionando bem no território garante a existência da comunidade por meio da permanência dessas crianças e jovens que, quando saem muito cedo do território, muitas das vezes nem voltam mais. Isso é tudo que a comunidade não quer”, destaca Evandro.
Outro caso foi revelado em reportagem anterior, quando em setembro de 2021 a Justiça decidiu manter o fechamento da única escola quilombola de Peropava, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Na época, quilombolas denunciaram a decisão unilateral da prefeitura que obriga os estudantes a fazerem grandes deslocamentos para uma instituição distante do território.
A pedagoga e doutora em Educação Andréia Regina Silva Cabral Libório, de 36 anos, uma das lideranças da comunidade, relata que a escola do Quilombo Peropava permanece fechada e em condições de abandono.
Condições atuais do prédio onde estava escola de comunidade Peropava | Crédito: Tatiane Silva Cabral
“A estrutura das escolas que recebem os estudantes quilombolas [hoje] não é diferente daquela do território. São escolas rurais, com salas multisseriadas e infraestrutura física precária. O problema se repete, as crianças precisam acordar muito cedo, para irem à escola de ônibus, e retornam muito tarde para casa. Esse deslocamento é cansativo e pode até interferir no rendimento escolar”, acrescenta Andreia.
Divergência de dados
Segundo a professora e historiadora Silvane Silva, ex-vice-presidente do Conselho de Educação Escolar Quilombola do Estado de São Paulo, uma das maiores dificuldades para acompanhar as políticas públicas voltadas para as comunidades quilombolas é a ausência de dados oficiais.
“Só em 2022, o IBGE realizou pela primeira vez na história do país uma pesquisa com recorte específico para a população quilombola”. Ela lembra que esses dados ainda não foram publicados. Silva também é coorganizadora do livro ‘Narrativas Quilombolas: Dialogar, conhecer, comunicar (Imprensa Oficial, 2017)’.
“Eu costumo dizer que a base de dados é feita mesmo para a gente não ter acesso. Eu tenho que me valer de um profissional que é caro pra poder tentar chegar naqueles dados e tentar ler e construir uma linguagem que outras pessoas também possam ler”, comenta Givânia Silva.
Condições atuais do prédio onde estava escola de comunidade Peropava | Crédito: Tatiane Silva Cabral
Um estudo organizado pelo Projeto Quilombos e Educação, realizado pela Conaq em parceria com outras organizações quilombolas, fez uma análise do Censo Escolar do Inep de 2020 e identificou que as escolas quilombolas estão em grau de desigualdade em estrutura em relação a outras escolas do país.
A Conaq identificou que no Censo Escolar de 2020 eram 2.526 escolas quilombolas em todo o Brasil, sendo 275.132 matrículas de estudantes e 51.252 docentes atuando nessas escolas.
Mas durante essa apuração, outro problema apareceu: a divergência de dados. Os números analisados pela Conaq, segundo o Censo Escolar de 2020, são diferentes dos expostos atualmente no painel Estatísticas Censo Escolar, do InepData. Segundo o painel, em 2020, foram encontradas 260.087 matrículas, 2.523 escolas quilombolas e 16.303 docentes.
De acordo com Givânia Silva, a diferença nas informações pode estar relacionada a recentes alterações nos dados pelo Inep. A reportagem procurou o órgão que informou que as bases de dados do Censo Escolar permitem o uso das estatísticas nos mais diversos recortes, utilizando os filtros específicos para analisar as situações particulares, de acordo com o interesse do pesquisador.
Crédito: Dora Lia Gomes/Alma Preta Jornalismo
O levantamento do Projeto Quilombos e Educação também identifica que, em 2020, houve uma queda de 10% no número de matrículas em relação a 2019, que tinha 306.131 registros. Houve também uma redução de 30 escolas da Educação Básica em comparação com o dado de 2019, que registrou 2.556 unidades de ensino.
Segundo o estudo das organizações quilombolas, em 2020, apenas 21% das escolas nas comunidades tinham bibliotecas ou salas de leitura e somente 11,8% contavam com quadras de esportes cobertas ou não cobertas.
Além disso, segundo os dados mais atualizados do painel do InepData, em 2021 havia 51 escolas em áreas remanescentes de quilombos sem abastecimento de energia elétrica, sendo todas unidades de ensino municipais. Além disso, havia 218 escolas sem esgoto sanitário, sendo 208 municipais, oito estaduais e duas privadas.
Acesso à internet, evasão escolar e pandemia
A análise da Conaq do Censo de 2020 identificou também que apenas 41% das escolas tinham acesso à internet. O valor é bem abaixo do menor índice entre as escolas do Brasil, que é o das unidades de ensino municipais, que tem 64,7% de escolas com acesso à internet dentro de um total de 78.046 instituições.
Além disso, apenas 3,2% dos professores das escolas quilombolas realizaram cursos voltados às temáticas das relações étnico-raciais e de cultura afro-brasileira e africana, assim como cursos voltados à interculturalidade e diversidade.
Segundo a mestranda em História Social, Taina Silva Santos, responsável pela pesquisa do estudo “Crianças e Adolescentes Quilombolas”, há um problema estrutural na formação de professores atuantes nas escolas quilombolas.
“A escola quilombola tem algumas questões de ensino que envolve a cultura local, envolve a relação dessa população com a terra, com o território, com a continuidade dessas comunidades. São conhecimentos a mais que vão estar nos currículos e os professores nem sempre possuem formação suficiente sobre”, comenta Taina.
Estrutura em que os alunos são colocados quando chove em território Kalunga do Mimoso | Crédito: Coeqto
Segundo Givânia Silva, possivelmente ainda neste primeiro semestre de 2023, também será divulgada nova análise do Projeto Quilombos e Educação com os últimos dados do Censo Escolar. Segundo ela, alguns pontos analisados serão o fechamento de escolas e o transporte escolar.
“As escolas do campo têm sofrido muito com a lógica da nucleação [fechamento de escolas e o deslocamento de seus alunos para centros maiores]. O processo tratou de desterritorializar as crianças das suas comunidades. Há crianças que saem às seis da manhã de casa e chegam três da tarde quando o ônibus não quebra. Esse é um problema da nucleação das escolas”, comenta Givânia.
Ela complementa com os dados de evasão escolar. “Em 2019, a gente tinha 306 mil estudantes na Educação Básica e, em 2020, a gente caiu para 275 mil. O que aconteceu com esses alunos que sumiram? Não foram registrados como quilombolas? Evadiram? O Censo não traz a causa” diz.
Em relação a ausência de dados detalhados sobre evasão escolar quilombola no Censo, o Inep informa que os percentuais da Taxa de Transição não são calculados por escola.
“A agregação é feita por município, para todas as escolas. Essa é a natureza do indicador, o que inviabiliza esse tipo de recorte. Contudo, há outro indicador educacional que analisa o rendimento dos estudantes e apresenta os percentuais de abandono. Nesse caso, os resultados estão disponíveis para todas as escolas, inclusive as que estão localizadas em áreas remanescentes de quilombos. Basta consultar o site do Inep na aba ‘indicadores educacionais‘”, diz o Inep.
Cobranças para o poder público
Em relação à condição das escolas do território Kalunga do Mimoso, uma reunião foi realizada no dia 21 de março com a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins (Coeqto), a Secretaria Estadual dos Povos Originários e Tradicionais (Sepot), representantes do Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública Estadual (DPE-TO), membros da comunidade quilombola Kalunga do Mimoso e a Prefeitura de Arraias.
Foi encaminhada pela Sepot a criação de um grupo de trabalho para acompanhar a pauta. Em nota, a Secretaria de Estado da Educação do Tocantins (Seduc) informou que, embora o prédio da escola que abriga os estudantes da rede estadual seja do município de Arraias, o processo de intervenção na unidade foi iniciado e a reforma e a construção de banheiros serão realizadas nos próximos dias.
“A equipe da Superintendência de Administração, Obras e Infraestrutura da Seduc entregou na sexta-feira, 24, materiais de construção e produtos para a execução das obras de reforma na escola da comunidade quilombola Kalunga do Mimoso, em Arraias. Para a reforma da unidade escolar, estão previstos os seguintes serviços: construção de banheiros, perfuração de poço artesiano com bomba submersa, execução do piso, reparos no telhado, colocação de forro, adequação da cozinha e pintura”, informaram.
Segundo a Coeqto, em relação à falta de banheiros na escola municipal Eveny, a Defensoria Pública Estadual e o Ministério Público Federal pontuaram que as demandas não atendidas serão tratadas judicialmente, obrigando o município a agir em caráter de urgência na resolução dos problemas.
Sobre o caso do fechamento da única escola quilombola da comunidade de Peropava, no Vale do Ribeira, a Alma Preta Jornalismo enviou um pedido de posicionamento para a Prefeitura de Registo. Até o fechamento da matéria, não houve retorno.
Em nota, o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) disse que aprimora, permanentemente, os instrumentos de coleta de dados das pesquisas estatísticas sob sua responsabilidade, como é o caso do Censo Escolar da Educação Básica. “Tal sistemática visa dotar o Ministério da Educação (MEC) de informações qualificadas para formulação da política nacional considerando as dimensões que caracterizam a diversidade brasileira”.
Segundo eles, nesse contexto, vale destacar que os dados são disponibilizados em diferentes formatos, apresentando informações sobre os estudantes, os docentes e as escolas. Dentro do Censo Escolar, a localização diferenciada da escola identifica as escolas das comunidades quilombolas. “Não é adequado, portanto, dizer que ‘há uma grande dificuldade de encontrar dados sobre educação quilombola’. Para obter os dados dessas escolas, basta aplicar o filtro apropriado no referido campo”, informam.
O órgão também responde que, dada a quantidade de dados coletados na pesquisa, é inviável explorar todas as possibilidades de desagregação no ato da divulgação. “Para estabelecer quais filtros serão aplicados nos produtos de disseminação, a equipe técnica utiliza como critério as demandas recebidas com maior frequência pela Autarquia. Entretanto, os microdados trazem um universo muito maior de informação, o que possibilita sua exploração com mais abrangência”.
O Inep destaca que mantém contato com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC) para viabilizar a produção de informações sobre grupos de escolas e estudantes mais vulneráveis, que constituem o público alvo da Secretaria. Inclusive, o Instituto recebeu uma solicitação de alteração na coleta de dados do Censo Escolar para apurar melhor, principalmente, tópicos referentes às Salas Anexas”.
“Por fim, cabe ressaltar que todas as informações do censo são utilizadas pelas diferentes instâncias de Governo para formulação das políticas públicas. Salienta-se também que o agente formulador da política nacional, o MEC, planeja suas ações com base nos dados das pesquisas do Inep”, complementam.
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*Texto atualizado em 6 de abril de 2023 às 16h50: foram incluídos os posicionamentos do Inep.