É de tijolinho por tijolinho que Beatriz Santana constrói o seu futuro como influenciadora digital. Na laje de casa, blocos de tijolo são improvisados como um tripé para celular e um pedaço de tecido se transforma no cenário para a gravação de conteúdos para os seus ‘cocots’, apelido que dá aos seus pouco mais de seis mil seguidores nas redes sociais. De origem humilde e com pouco recurso financeiro, a jovem moradora da periferia de Marechal Rondon, em Salvador, viu na internet a possibilidade de transformar a sua realidade e usa os poucos recursos que tem para trilhar a sua carreira no mundo dos influenciadores digitais.
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O sonho de se tornar uma influenciadora digital surgiu em 2014, quando Beatriz começou no teatro e logo enxergou as redes sociais como uma aliada para a divulgação do seu trabalho. Mas foi com o passar dos anos e com a formação de uma consciência racial que a estudante de teatro passou a investir na criação de conteúdos, principalmente para o empoderamento e fortalecimento da autoestima das mulheres negras. No perfil no Instagram, a @beapretex, como é conhecida, compartilha penteados e cuidados com os cabelos crespos, além de conteúdos de beleza para a promoção da valorização da identidade negra.
“Junto com os penteados e junto com o que eu faço, eu costumo falar sobre a história, falar sobre empoderamento, sobre consciência racial porque estética sem essa carga histórica não vale de nada. É alinhar os dois e falar tanto da beleza, do cabelo, da forma estética, mas também entender que estética também é um ato político”.
Para gravar os vídeos, Beatriz se divide entre a laje de casa e um quarto, que foi reformado e transformado em estúdio com a ajuda de amigos. “Antigamente aqui era o quarto da bagunça. Meus amigos reformaram e me deram de presente porque disseram que a ‘blogueirinha’ deles tinha que ter um estúdio”, brinca a influencer enquanto mostra os detalhes do quarto com frases motivacionais espalhadas pelas paredes.
No quarto, também transformado em estúdio, Beatriz usa, ao menos, duas ring lights, equipamento de iluminação que se tornou popular entre os produtores de conteúdo. Porém, com o aumento da energia e da sua condição financeira, a influenciadora confessa que tem optado por fazer as gravações na laje, já que dispõe de iluminação natural e também reduz os gastos com a energia elétrica.
“É todo um perrengue que eu tenho enfrentado para conseguir gravar conteúdo: de não ter um lugar muito iluminado, de fazer o meu quarto de estúdio, que vira uma bagunça e não consigo nem dormir direito. […] Eu consegui comprar uma ring light com um tripé, mas foi com um preço de qualidade baixa, ou seja, já quebrou, e hoje eu tenho que improvisar fazendo ring light de tijolo, sabe? Então é esse tipo de estrutura que eu tenho para criar e produzir conteúdo hoje. Antes eu não tinha nada para apoiar, eu apoiava nas plantas de minha avó para conseguir gravar. Quando eu consegui a minha primeira ring light, eu gravava dentro do quarto, mas vi que luz está um absurdo de cara. É impossível ficar dentro de casa com a luz ligada e são tipos de conteúdo que eu preciso de iluminação de qualidade”, desabafa.
Para além das dificuldades estruturais, a jovem influenciadora também vê que a própria rede social tem limitado o trabalho de influenciadoras/es negras/os que já trabalham ou querem começar a trabalhar na internet. Para ela, o algoritmo das plataformas reproduzem estruturas racistas que impõe mais desafios para as pessoas negras que produzem conteúdo digital.
“As redes sociais foram criadas por homens brancos, com uma constituição branca. Quando você coloca em uma aba de pesquisa, a primeira coisa que aparece é uma pessoa branca. Então como uma pessoa preta se encaixa dentro disso? Como uma pessoa fora do padrão se encaixa dentro disso? Para mim é um desafio enorme estar dentro desse algoritmo, desse espaço racista e o que fortalece é a minha comunidade”.
Com o apoio da mãe, Juliana Bispo, e da avó, Maria dos Reis, a influenciadora digital espera reverter as estatísticas que o racismo que o racismo impõe e que o seu trabalho com a internet seja reconhecido. Para o futuro, Beatriz planeja oferecer melhores condições para a sua família e para a comunidade que criou dentro e fora da internet.
“Uma vez disseram para mim que eu não ia chegar a lugar nenhum, que eu não ia construir nada, que eu ia continuar morando na casa onde estou morando, que eu ia ter vários filhos e que era ali o meu lugar. Isso foi muito forte e hoje eu estou construindo a p*rra toda, tijolinho por tijolinho, colocando um tijolo em cima do outro para chegar no lugar onde eu quero chegar e que eu sei que mereço chegar”.
“A internet me permitiu não entrar nas estatísticas”
Assim como Beatriz, Ashley Malia (@ashleymlia), de 24 anos, vem da periferia e há anos vem construindo o seu espaço na internet. Jornalista e criadora de conteúdo há mais de dez anos, a influenciadora do bairro da Boca do Rio, comunidade de Salvador, começou no universo digital através dos blogs, com assuntos sobre o mundo geek, literatura, cultura pop, questões raciais e vivências pessoais. Na época, sem muitas condições financeiras, Ashley não tinha estrutura para produzir os conteúdos, mas foi a sua paixão pela comunicação que a impulsionou a dar os primeiros passos para iniciar como influenciadora digital.
“Comecei na internet com os blogs, escrevendo textos, artigos de opinião, de forma bem amadora porque eu não tinha muito conhecimento, nem de texto nem de internet. E eu nunca pensei que um dia na minha vida pudesse se tornar um trabalho”.
Apesar de produzir conteúdos sobre pautas raciais há anos, foi só em 2020 que a influenciadora viu o seu trabalho ganhar notoriedade. Com o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, uma nova onda de discussões raciais surgiu dentro e fora da internet, o que aumentou a busca por conteúdos antirracistas. O seu perfil, que em 2020 tinha três mil seguidores, hoje em dia já conta com quase 40 mil seguidores. “Muita gente começou a me seguir e isso também está totalmente ligado ao crescimento da discussão racial, nessa época que a gente teve uma nova onda do movimento vidas negras importam por causa do assassinato de George Floyd e foram acontecimentos fundamentais para que as pessoas começassem a buscar esses conteúdos”.
Com a credibilidade e visibilidade que ganhou com a internet, Ashley passou a investir na carreira de influenciadora e conseguiu ter independência financeira. Mesmo com a sua trajetória ainda marcada pelas dificuldades, hoje ela consegue ajudar a família.
“Nunca fui rica, nunca tive condições, sempre fui uma menina da periferia que a família tinha comida para dar, tinha roupa para vestir, mas era só isso […] A internet me permitiu não entrar nas estatísticas. Fui a primeira pessoa a me formar na minha família e eu sou a pessoa que os meus irmãos e a minha mãe olha para pedir ajuda e fico feliz em ser essa pessoa, de poder compartilhar o pouco que eu tenho com a minha família”.
Ashley conta que apesar da internet ter mudado a sua vida, o mundo virtual também reproduz barreiras que impedem a ascensão de influenciadoras/es negras/os e adoecem as pessoas negras. No início do ano, a influenciadora passou a receber ataques racistas e ameaças. Com a saúde mental abalada, descobriu que estava com depressão e decidiu se afastar das redes sociais. Hoje em dia, ela diz que passou a produzir conteúdos “mais leves” que também dialogam com questões raciais, porém, de forma menos nociva para a sua saúde mental.
“Eu resolvi voltar a trabalhar com um emprego mais formal e levar esse conteúdo na internet de forma mais paralela porque eu fui atacada diversas vezes, eu não conseguia mais produzir conteúdo, não estava mais conseguindo falar com as pessoas, não conseguia nem aparecer. Hoje eu tenho noção que entrei em um estado de depressão porque para mim não estava mais sendo prazeroso e ainda tinha o combo de me cobrar para produzir conteúdo, para ter publis para conseguir pagar as minhas contas. Foi um processo extremamente adoecedor para mim porque não é fácil ser atacada”.
“As pessoas só olham para gente, quando alguém morre. A gente está o tempo inteiro à sombra da morte. As pessoas não estão interessadas em seguir pessoas pretas em vida, elas querem lamentar pelas mortes, mas também não querem dizer um culpado, elas não querem culpar o sistema, o racismo, não querem culpar a instituição “Brasil”, as empresas que são racistas e produzem violências contra pessoas negras todos os dias. A internet vem sendo um espaço cruel”, completa.
Afinal, o que a influencer digital representa para as pessoas negras?
Mais do que estar na internet e compartilhar publicações, atualmente, ser influenciador digital representa ter status e credibilidade com um público específico, que vai variar de acordo com o nicho de cada criadora/r de conteúdo. Em um mundo marcado pelo consumo e pelas tecnologias (a quem pode acessá-las), ser influenciador digital também passou a ser visto como possibilidade de atuação em um mercado profissional, já que os criadores de conteúdo são cada vez mais valorizados por marcas que buscam por audiência e monetização. Afinal, o que essa atuação representa para as pessoas negras?
Segundo o professor Doutor em Difusão do Conhecimento e pesquisador em educação, religiosidade afro-brasileira, cultura negra e cibercultura, Lúcio André, dentro desse cenário, as pessoas negras passaram a se apoderar da influência digital como forma de reconfigurar os espaços de subalternidade em que eram colocados, sobretudo na mídia.
“Para negros/as que se inserem neste universo da influência digital, eles/as se aproveitam deste cenário descrito acima, e encontram outros/as negros/as que acessam as redes sociais a procura representações, pois querem se ver. Eles/as se sentem estimulados/as com a crescente representação negra positivada, através de filmes, novelas, comerciais e programas de TV. No contexto atual temos Lazaro Ramos, Tais Araújo, Erico Brás, Kênia Maria, Juliana Alves, dentre outros que despontam fazendo produções alternativas, para além daqueles/as papéis subalternos que a mídia brasileira historicamente forjou na sociedade”.
Quando se faz um recorte racial, é possível perceber como as redes sociais se configuram como uma ferramenta que alimenta o racismo estrutural, já que o algoritmo das plataformas, criado por pessoas – em sua maioria – brancas, limita e não dá engajamento aos conteúdos produzidos por pessoas negras. Reclamações de influenciadores digitais negros têm sido frequentes e, em junho do ano passado, o Instagram anunciou que iria tomar medidas sobre as denúncias de racismo. Já o Twitter admitiu que o algoritmo de recorte de fotos da plataforma tinha cunho racista e machista e chegou a oferecer uma recompensa em dinheiro para pesquisadores e hackers que conseguirem corrigir o algoritmo.
“Precisamos aprender mais e mais sobre internet, dominá-la, conseguir compreender o funcionamento de seus algoritmos e superar as bolhas que limitam o alcance de nossas postagens sobre o debate racial, o combate o racismo e as diferentes formas de discriminação. Negligenciar o que ocorre nas redes virtuais, achando que não tem efeito na vida off-line é uma bobagem e uma inverdade”, completa o especialista.