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Escravidão e o histórico genocida brasileiro

28 de setembro de 2017

O passado escravocrata e a desigualdade social são apontados como alguns dos combustíveis para o genocídio negro. O afro-brasileiro, base da sociedade escravista, continua nos piores patamares sociais mesmo depois da abolição da escravatura, em 1888, segundo o sociólogo Clóvis Moura.

Texto / Pedro Borges
Imagem / Johann Moritz Rugendas/Wikimedia Commons

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“A construção do Estado brasileiro é ocorrência direta de uma história de muita violência, de um colonialismo assassino e exterminador do povo indígena e africano”.

A afirmação é do historiador e coordenador da rede de cursinhos populares Uneafro, Douglas Belchior. Ele acredita que o Estado brasileiro se construiu para manter o poder na mão dos descendentes dos colonizadores.

“O Estado é a continuidade dessa estrutura de poder que nunca experimentou um rompimento”, explica.

A escravidão no Brasil e na América Latina teve início no Século XVI, durante o período do mercantilismo europeu. As expedições portuguesas e espanholas sobre o continente latino-americano vieram seguidas do aprisionamento e do trabalho forçado de várias etnias, que podem ser destacadas em dois grupos raciais, os indígenas e os negros.

Clóvis Moura, um dos principais sociólogos do país e autor do livro “Dialética Radical do Brasil Negro”, escreve em sua obra que 10 milhões de pessoas adentraram no Brasil na condição de escravo. Vale destacar que a população mundial naquele período histórico estava na casa das das 500 milhões de pessoas. Ou seja, 1/50 da população mundial foi deslocada para cá na condição de escravo.

O Brasil, último país a abolir a escravidão, vive sob esse regime de 1500, com a chegada de Pedro Álvares Cabral e a coroa portuguesa, até 1888, data da abolição.

Clóvis Moura analisa esse momento da história brasileira em dois período. O primeiro, de 1550 a 1850, é chamado do escravismo pleno, composto por duas classes sociais, os senhores de engenho, e os africanos e indígenas na condição de escravo.

Os escravismo era mantido no Brasil e na América Latina por meio de um pacto internacional, segundo o sociólogo.

A curta vida dos sujeitos escravizados por conta da intensidade do trabalho fazia o tráfico ser um negócio muito rentável, porque a demanda por “reposição” era sempre alta. A vida de uma pessoa escravizada oscilava de 7 a 10 anos.

Mais do que isso, a sociedade colonial e escravista era improdutiva, e necessitava explorar o negro para continuar a existir.

O africano na condição de escravo precisava trabalhar para garantir o sustento daquele modelo econômico, de maneira a permitir o ócio de parte da elite branca, o luxo da coroa portuguesa, e toda a infraestrutura da época, tanto dos engenhos, quanto dos navios de Lisboa.

A dependência à escravidão era tamanha, que mesmo revoltas e movimentos inspirados pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, apresentados pela Revolução Francesa, em 1789, não exigiam o fim da escravidão. Exemplos foram a Sabinada (1837), a Confederação do Equador (1824), e a Revolução Pernambucana (1817).

Esse período (1550-1850) é definido por Clóvis Moura como a plenitude da escravidão. É nessa fase, marcada pela morte e pelo extermínio de africanos e indígenas, que se origina a tradição violenta do Estado com relação à população negra.

A rotina de africanos e indígenas era marcada pelo açoite e pela tortura. Alguns dos castigos mais comuns eram as chicotadas, o corte de partes do corpo, como a língua e as orelhas, o regime de fome, e o próprio assassinato em si.

Basta lembrar que uma das categorias de escravos era a “reprodutora”, em que negras e negros eram obrigados a se relacionar sexualmente para a geração de novos escravos.

Adriana Moreira, doutoranda em literatura pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) e integrante da Frente Alternativa Preta, organização do movimento negro, acredita que é esse passado que vai naturalizar as violências cotidianas a que são submetidos os sujeitos a partir das perspectivas de raça, gênero e classe.

“As mulheres negras, nessa hierarquia, ocupam o lugar mais subalterno. Isto é, estão ‘naturalmente’ mais sujeitas a serem vitimadas das violências estruturais da sociedade”.

Escravismo tardio

O escravismo tardio é mais curto, ocorre de 1851 a 13 de Maio de 1888, data da abolição da escravatura.

As coroas portuguesa e espanhola deixavam de ter o domínio da economia mundial. A Inglaterra, como resultado da Revolução Industrial, passava a se desenvolver de maneira intensa e a impor suas demandas no mercado mundial.

Defensores do livre comércio, os britânicos queriam pôr fim à exclusividade econômica entre as coroas e os países da América Latina, vistos como possíveis compradores dos produtos ingleses.

Com o tempo, os ingleses passam a importar o café nacional, e em troca, instalam manufaturas e vendem produtos industrializados no país.

Para que o negócio se torne rentável, é preciso que exista um mercado consumidor. A Inglaterra passa então a pressionar pelo fim do escravismo, e pelo início do trabalho assalariado.

Clóvis Moura também recorda que a resistência e a revolta da comunidade negra foram importantes para o fim da escravidão. Ele aponta para uma série de táticas utilizadas, como a construção dos quilombos, o assassinato de senhores de engenho, e a luta dos abolicionistas, que juntos criaram uma esfera de resistência interna ao modelo produtivo.

Diante da impossibilidade de manutenção da escravidão, as elites brasileiras decidem por acabar com o regime de maneira lenta e segura. Uma mudança repentina e a entrega de terras para aquela população açoitada e escravizada por 388 anos poderia ser perigoso. As elites temiam uma revolta escrava, nos moldes da Revolução Haitiana (1791), quando os escravizados tomaram o poder e assassinaram todos os senhores de engenho.

“Todos esses processos de mudança no país sempre foram momentos em que não houve ruptura daqueles que estavam no andar de baixo, de tomada de poder. Sempre foram transições pelo andar de cima, pela elite, por aqueles que mandam no nosso país”, afirma o presidente estadual do PSOL e coordenador do Círculo Palmarino, Juninho Jr.

Mercado de escravos no Rio de Janeiro em 1824 (Imagem: Edward Finden/Wikimedia Commons)

A primeira barreira concreta imposta ao tráfico internacional de pessoas foi a Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, que proibia a venda de escravos para o Brasil.

Essa legislação, sob a vigia da Inglaterra, que patrulhava o oceano Atlântico para garantir o fim do tráfico de seres humanos, mudou a lógica do comércio de pessoas.

Os preços aumentam e os fazendeiros passam a investir no comércio interno. Os barões do café, em ascensão no Sudeste, passam a comprar pessoas dos senhores de engenho de açúcar do Nordeste.

A Tarifa Alves Branco, de 1848, foi outro elemento importante para entender a transição, orquestrada pela elite branca, para se colocar fim ao escravismo no país. O Brasil passa a tarifar as exportações de açúcar para a Inglaterra com o objetivo de angariar recursos e construir a indústria nacional.

A medida criava a possibilidade de se ter um trabalhador livre em meio à sociedade escravista. Era o protecionismo para o imigrante europeu, que vai trabalhar na indústria de modo assalariado, e a garantia da exclusão do negro do mercado de trabalho.

“A elite brasileira pensou um projeto de nação no pós abolição da escravatura onde negras e negros não cabiam”, afirma Juninho Jr..

Outro pilar dessa transformação foi a Lei de Terras (1850). Antes dela, a única maneira de conseguir terrenos para o plantio no país era por meio da doação do Estado. A partir daquele momento, o Estado deixa de ser o distribuidor e passa a ser o vendedor de terras.

Sem qualquer possibilidade de acumular riquezas durante a escravidão, a comunidade negra continuou como estava, sem o direito à terra. O pagamento, no formato à vista, limitava a possibilidade de compra para aqueles grupos que já detinham fazendas.

Depois, os imigrantes europeus que aqui estavam, com o apoio das nações européias, exigiram a possibilidade de parcelamento para a compra de terrenos. O pedido foi atendido.

A Lei de Terras e a Tarifa Alves Branco garantiam ao Estado o seu objetivo central, uma modernização da sociedade, com a manutenção da hierarquia social escravista. O resultado desse processo é a abolição da escravatura, em 13 de Maio de 1888, e a continuidade da população negra na base da pirâmide.

“A sociedade moderna brasileira, e até mesmo a contemporânea, tem no escravismo e no colonialismo a sua base estrutural”, afirma Juninho Jr.

(Imagem: Marc Ferrez/Wikimedia Commons)

O capitalismo brasileiro

Durante o século XX e agora, nas primeiras décadas do século XXI, a desigualdade social a que está submetida a comunidade negra continua evidente.

A divisão social do trabalho é ilustrativa. A herança escravocrata ofereceu às mulheres negras a continuidade no serviço doméstico e aos homens negros, serviços de força, como a construção civil.

Relatório do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) em seis regiões metropolitanas (São Paulo, Belo Horizonte, Distrito Federal, Salvador, Recife e Porto Alegre) aponta que, no Distrito Federal e em Porto Alegre, o percentual de negros no serviço doméstico é o dobro do número de brancos.

Outra continuidade fica visível na reportagem feita pelo Alma Preta sobre a carga tributária brasileira. É possível observar como a arrecadação de impostos no Brasil também serve para manter a população negra na base da pirâmide e aguçar as desigualdades sociais.

Renato Gomes, advogado tributarista e membro do Instituto Luiz Gama, afirma que o Estado optou por tributar de maneira mais sensível o consumo e a renda, o que para ele, colabora para a manutenção da comunidade negra na base da pirâmide social.

Dados da Receita Federal constatam que menos de 1% dos contribuintes têm cerca de 25% de toda riqueza declarada em bens e ativos financeiros no Brasil.

“Com menos recurso e sendo mais tributado, o negro tem menos dinheiro para se aperfeiçoar, para se divertir, para fazer tudo. E é óbvio que isso impede a ascensão social”, explica Renato Gomes.

Para ele, o peso tributário se torna ainda mais significativo quando a mulher negra é colocada em pauta. “É feita a análise de quanto a tributação impacta na renda das pessoas, e você vê o impacto significativamente maior nos 10% mais pobres do que nos 10% mais ricos. Existe uma gradatividade, e quando você vai analisar quem é essa população mais pobre, você vê que ela é majoritariamente negra. E entre os negros, a maior parcela é de mulheres negras”.

O que fica perceptível é que a população negra vai ser cobrada pelo Estado de maneira mais severa, na mesma medida em que é colocada na posição de maior vulnerabilidade, de acordo com Douglas Belchior, historiador e coordenador da rede de cursinhos populares, Uneafro.

“Todos os problemas sociais, quando você percebe o seu resultado, vão atingir de maneira desproporcional a população negra. É assim do ponto de vista do acesso à terra, do acesso à moradia, da necessidade dos serviços públicos mais básicos, entre outros”.

Para ele, um dos fundamentos do genocídio negro no Brasil é a ausência histórica de qualquer suporte por parte do Estado para a comunidade negra, que nunca chegou “perto das condições de dignidade humana”.

“Isso sem nenhuma dúvida promove o genocídio”, afirma Douglas Belchior.

Juninho Jr. concorda e aponta a desigualdade social como um dos combustíveis ao genocídio.

“O genocídio é um subproduto de um país altamente excludente, concentrador de riqueza, e a sua superação plena passa por enfrentar esses grandes problemas”.

A análise dos dois vai de encontro com um dos pontos da Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Genocídio, organizado em 1948, pela Organização das Nações Unidas. De acordo com o documento, “Impor ao grupo condições de vida que possam causar sua destruição física total ou parcial” é uma das características do processo genocida.

Mais do que impor uma condição de desigualdade aos afro-brasileiros, o país manteve outro ranço da escravidão, a violência estatal contra a comunidade negra.

A letalidade policial e o alto índice de mortes provocadas pelo Estado são representados pelo levantamento do SPTV, realizado em 2016. O documento estima que em 2015, cerca de um quarto dos assassinatos ocorridos na capital paulista foram efetuados pela Polícia Militar (PM) e que 72% das vítimas eram pretas ou pardas.

A condição de violência a que está posta a população negra, representada em 77% dos 60 mil assassinatos no Brasil, cria a impossibilidade de se pensar numa sociedade democrática.

Para Juninho Jr., enfrentar o genocídio “é acabar com a concentração de renda, é modificar a estrutura brasileira”.

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